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Joias no sótão: a (re)descoberta de álbuns de mulheres dos anos 70


Os anos 1970 foram palco de um grande boom da música folk, com artistas como Peter Seeger, Joan Baez, e, claro, Bob Dylan, rompendo a barreira do popular e consagrando esse momento como o American Folk Revival. No entanto, além das regravações de canções tradicionais, esse movimento trouxe consigo um novo gênero de artistas, que ficariam conhecidos como cantores-compositores, isto é, artistas solo responsáveis tanto pela criação como também pelas performances das canções.

A figura do cantor-compositor é especialmente importante para sua obra, uma vez que suas letras costumam apresentar um elevado grau de intimidade, contando bastante sobre sua própria vida e pensamentos íntimos – em outras palavras, é um gênero bastante confessional. Talvez seja esse um dos motivos que fizeram com que tantos nomes femininos, como Carole King e Joni Mitchell, ocupassem um lugar de tanto destaque, algo não tão comum no rock, por exemplo, um estilo que explodia na mesma época. No entanto, algumas cantoras-compositoras ficaram, por diversos motivos, esquecidas, só sendo descobertas (ou redescobertas) após os anos 2000.

É o que aconteceu com uma das pioneiras do gênero, Connie Converse, que começou a gravar algumas faixas em meados da década de 1950. É comum que ela seja referida como “a Bob Dylan mulher”, tanto pela combinação entre a pegada folk de seu violão e as letras intimistas, quanto pelo fato de os dois terem tentado se colocar no cenário musical por volta do mesmo tempo e no mesmo bairro de Nova York, Greenwich Village. Porém o destino de Converse seria bem diferente do de Dylan: enquanto ele rapidamente atingiu o sucesso, ela não conseguiu nem mesmo ter seu álbum lançado por uma gravadora. A cantora chegou a fazer uma apresentação televisiva em 1954, graças ao contato do cartunista Gene Deitch, que participou nas gravações de Connie como engenheiro de som com a CBS – mas, mesmo com a exposição, não houve interesse pelas canções, tidas como pouco comerciais.

Após tantas tentativas frustradas, Connie Converse se muda de Nova York para Michigan, para ficar perto do irmão, e consegue um trabalho em um jornal, onde escreve diversos artigos relacionados ao ativismo político, sobretudo como aliada na luta pelos direitos civis das pessoas negras nos EUA. No entanto, aquela não era a vida que Connie almejava, o que a deixou profundamente deprimida. A família e os amigos tentaram reanimá-la, levando-a em diversas viagens, mas tudo isso só a deixava mais cansada.

Seu esgotamento teve seu ápice em 1974, quando, dias após seu aniversário de 50 anos, a cantora desapareceu, deixando apenas cartas para a família e pessoas próximas. Não se sabe o que aconteceu com Connie, nenhum corpo – e nem mesmo o seu carro – foram encontrados, mesmo com os esforços da família. A história e a arte de Connie Converse ficaram esquecidas até 2004, quando Gene Deitch tocou a faixa “One by One” no rádio. A canção chamou atenção de dois ouvintes, Dan Dzula e David Herman, que partiram em busca das gravações de Connie. A pesquisa dos dois culminou no lançamento de How Sad, How Lovely, uma compilação com 17 faixas lançada em 2009. A música de Connie Converse atravessou, silenciosamente, gerações e, quando pôde finalmente ser escutada pelo grande público, foi recebida com espanto e admiração, sendo fonte de inspiração para diversas vozes atuais, como Laurie Anderson, Karen O e Laura Marling.


Outra artista que teve um lançamento tardio foi a alemã Sibylle Baier. Ainda que possuísse afinidade com diversos campos das artes, foi pela atuação que ficou inicialmente conhecida. Seu trabalho mais proeminente foi uma aparição rápida no filme Alice in Cities (1978), de Wim Wenders, no qual ela aparece rapidamente cantando uma canção de sua autoria, “Softly”, em um barco. Diferentemente de Connie Converse, Sibylle Baier não tinha intenção de se tornar uma cantora conhecida pelo público. Suas canções de cunho íntimo e reflexivo foram gravadas em um gravador de rolo na sala de casa entre os anos de 1970 e 1973, apenas com um violão e sua voz quase sussurrante.

A carreira como atriz de Baier acaba quando ela se muda da Alemanha para os Estados Unidos, para se dedicar à criação dos filhos e ao cuidado da família. Suas canções chegaram até nós graças a seu filho, Robby Baier, que, em 2004, encontrou a fita com as canções da mãe e as compilou em CD, dando uma cópia para J Mascis, da banda Dinosaur Jr., que entregou o disco para a Orange Twin Records, pela qual as músicas de Sibylle foram lançadas no álbum Colour Green, em 2006.

Ao saber do lançamento do álbum, Wim Wenders convidou Baier para cantar em seu novo projeto. O convite resultou na canção “Let us Know”, que faz parte da trilha sonora de Palermo Shooting, de 2008. Sibylle ainda é viva; no entanto, parece pouco provável que ela lance novas canções: no site dedicado à mãe, Robby escreve que Sibylle está um pouco perplexa com a atenção que o álbum ganhou e que a Internet a deixa tonta – ela prefere apenas estar com sua família.


Algumas cantoras conseguiram lançar seus álbuns ainda nos anos 1970, como é o caso de Vashti Bunyan. Inglesa, foi numa viagem a Nova York onde descobriu a música de Bob Dylan que Vashti decidiu que queria perseguir uma carreira musical. Retornando a Londres, ela foi apresentada ao empresário dos Rolling Stones e, sob a direção dele, Bunyan gravou “Some Things Just Stick in Your Mind”, escrita por Mick Jagger e Keith Richards. O lançamento tinha um lado B contendo uma composição própria, a canção “I Want to Be Alone”. Pouco tempo depois, a artista lançou “Train Song”, uma de suas canções mais conhecidas atualmente.

Na época, nenhum dos lançamentos de Vashti chamou muita atenção do público. Após algumas pequenas e raras apresentações, a cantora e seu namorado partiram em uma viagem para se juntar a uma comuna de artistas criada pelo cantor-compositor Donovan. Durante a viagem, Bunyan começou a escrever as canções que viriam a integrar seu primeiro álbum, Just Another Diamond Day. O álbum foi gravado com o produtor Joe Boyd, que colaborou também com artistas como Pink Floyd e Nick Drake, e lançado em dezembro de 1970 pela Philips Records. No entanto, pouquíssimas cópias foram vendidas e Vashti, frustrada com o fracasso das vendas, se afastou da cena musical para cuidar de seus filhos.

Vagarosamente, o álbum começou a ganhar notoriedade, tornando-se uma raridade procurada, levando a uma unidade sendo vendida por mais de 3.000 dólares. Nos anos 2000, Just Another Diamond Day foi relançado em CD, o que levou uma nova geração a conhecer a música de Vashti Bunyan, incluindo uma nova geração de artistas, mais notoriamente Devendra Banhart, Animal Collective e Piano Magic, que a convidaram para projetos.

Essa lufada de ar fresco em suas canções empoeiradas fez com que Vashti voltasse a produzir músicas, levando ao lançamento de um segundo álbum, Lookaftering, em 2005 – 35 anos depois do primeiro. O álbum conta com a participação de artistas contemporâneos que expressaram sua admiração pelo trabalho de Bunyan, como Joanna Newsom, Adam Pierce e o próprio Devendra Banhart, além da capa desenhada pela própria Vashti. Em 2014, Vashti lança seu terceiro álbum, Heartleap, o qual ela escreveu e produziu quase inteiramente sozinha. Ela explica essa decisão:

“A motivação por trás do álbum foi de finalmente aprender uma forma que me permitisse gravar a música que está na minha cabeça, sozinha. Eu não leio ou escrevo música, nem toco piano com mais de uma mão ao mesmo tempo, mas eu amei ter conseguido fazer tudo funcionar e fazê-lo soar do jeito que eu queria. Eu construí essas canções por anos. O álbum não teria acontecido de outra maneira”


A trajetória de Linda Perhacs lembra bastante a de Vashti Bunyan. Linda trabalhava como dentista, tocando violão e compondo em seus momentos livres. Certo dia, ela mostrou algumas de suas canções para um de seus pacientes, Leonard Rosenman, compositor da música de filmes como Star Trek IV: The Voyage Home e Barry Lyndon (pelo qual ganhou um Oscar). Interessado pelo som, em pouco tempo Rosenman conseguiu um estúdio para que Linda gravasse seu primeiro álbum, Parallelograms, lançado em 1970.

Talvez pelo seu som experimental – classificado como folk psicodélico – e suas letras bastante herméticas, o Parallelograms não obteve sucesso e Linda Perhacs, desencorajada, continuou a trabalhar apenas como dentista, carreira na qual permaneceu por 30 anos. No entanto, em 1998, o álbum acabou caindo nas mãos de uma gravadora, a Wild Places, que, interessada na música de Linda, passou dois anos tentando reencontrar a cantora. O reencontro fez com que o álbum fosse relançado, apresentando Perhacs para um novo público.

Nos anos 2000, algumas músicas de Linda foram sampleadas por alguns artistas, sobretudo rappers, como Jadakiss e Lowkey, e sua canção If I Were my Man foi incluída no filme do duo francês Daft Punk, o Electroma. Já na década seguinte, em 2014, Linda Perhacs, já com 70 anos, lança seu segundo álbum, The Soul of All Natural Things, e, em 2017, o terceiro, I’m a Harmony. Ela também fez aparições nos trabalhos de vários outros artistas, como Devendra Banhart e Mark Pritchard.


Infelizmente, algumas grandes artistas não puderam ver suas músicas finalmente encontrando admiradores. Esse é o caso de Judee Sill, que sofreu uma morte prematura. Com uma vida turbulenta desde a infância, ela passou por um ambiente familiar violento e se envolveu com o crime ainda na escola – o que a levou para um reformatório, onde teve seu primeiro grande envolvimento com a música, tocando órgão. Já na faculdade, continuou a tocar piano e se apresentar com uma banda de jazz. Foi também nessa época que Judee começou a usar drogas, as quais seriam, poucos anos depois, a causa de sua morte precoce.

Sua carreira foi bastante promissora, tendo seu despontar quando Sill passou a abrir shows de Graham Nash e David Crosby. Além disso, ela também escreveu para outros artistas, como a banda The Turtles, que conta com músicas de Judee como Lady-O. Essa projeção fez com que a gravadora Asylum Records se interessasse por ela e fosse responsável pela gravação de seu primeiro álbum, autointitulado Judee Sill, lançado em 1971. O álbum, ainda que criticamente elogiado, não obteve sucesso em vendas. Ainda assim, Sill gravou um segundo álbum pela gravadora, o Heart Food, que saiu em 1973 – mas obteve o mesmo destino que seu antecessor.

Em 1974, Judee chegou a começar gravações para um novo álbum, mas seu problema com as drogas, além de outros problemas de saúde, fizeram com que o projeto fosse abandonado. A artista chegou a abandonar a música em seus últimos anos de vida, tendo trabalhado como cartunista em um estúdio de animação. Em 1979, Judee foi encontrada morta devido a um abuso de cocaína e remédios para dor. Mais de 25 anos depois de sua morte, as gravações de 1974 foram compiladas em um álbum, o Dreams Come True, lançado em 2005. Depois disso, outros arquivos da cantora também vieram a público: de 2006, sob o título Abracadabra: The Asylum Years, estão reunidas as canções e as demos de seus dois álbuns; no ano seguinte, gravações para a BBC, feitas em 1972 e 1973, também saíram; e, já em 2018, mais materiais de Judee foram lançados em Songs of Rapture and Redemption: Rarities & Live.

Referências




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Giulia Benincasa
Nasceu em 1999, é carioca e formada em Letras na UFRJ. Ama livros, filmes, praia, música, circo, macarrão e rolês que acabam cedo. Escreve poemas que podem ser encontrados pela Internet e também em seu livro, Ecolalia, que saiu em 2021 pela editora Urutau.

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