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Lady Susan, a vilã mais amada de Jane Austen

Ela é uma das personagens mais icônicas, autênticas e interessantes de Jane Austen. Em primeira análise, ela pode ser descrita como atraente, inteligente, eloquente, educada e dona de uma presença impactante. Mas se engana quem imediatamente pensa na icônica Elizabeth Bennet de Orgulho e preconceito ou na enérgica Emma Woodhouse de Emma. A dona de tantas alcunhas sedutoras é ninguém mais ninguém menos do que a vilanesca Lady Susan, protagonista da novela de mesmo nome publicada após a morte da autora. O assombro que nos comete ao conhecer uma vilã dotada de tantas características agradáveis é uma das engenhosidades mais interessantes de Austen e evidencia muito bem a genialidade de sua escrita, que continua a surpreender o público mais de dois séculos após a sua morte. 

Estruturada de forma epistolar, Lady Susan é uma história relativamente curta se comparada aos trabalhos posteriores de Austen, e só veio a ser conhecida em 1871, quando foi publicada pelo sobrinho de Jane, James Edward Austen-Leigh, como um apêndice em The Memoir of Jane Austen. Um dos grandes mistérios que perdura sobre Lady Susan é o fato de não sabermos exatamente em que ano da vida de Austen ele foi composto. Estima-se que a janela de tempo em que ele tenha sido escrito varie entre 1794 e 1810, sendo este último ano a data limite. A pesquisadora Mary Poovey, por exemplo, situa a criação a novela entre 1793 e 1794, mas tal datação não é unânime entre os estudiosos de Austen. Muitos o consideram um trabalho de transição entre a juvenília da escritora e seus trabalhos adultos, já que Lady Susan possui características irônicas muito comuns aos escritos adolescentes de Austen, mas também demonstra traços perspicazes de observação crítica e social, marcas inconfundíveis de seus livros mais famosos publicados posteriormente. Como bem aponta Poovey, “Lady Susan ocupa a área cinzenta entre a sátira e a crítica social direta"

O fato é que Lady Susan traz em si características que o posiciona também como um trabalho escrito durante uma mudança de tempo social. Jane Austen viveu no meio da crise de valores que aconteceu entre a passagem do século XVIII e XIX, crise essa que promoveu alterações na hierarquia tradicional da sociedade e lançou sombras sobre os papéis preestabelecidos. Austen, criada no âmago da classe média e uma observadora cuidadosa das teias sociais, inseriu na novela muito dessa transitoriedade de valores e autoridade. 

Outras características que situam bem o livro neste período transicional é o fato de Lady Susan ser escrito de forma epistolar, característica favorita dos autores finisseculares em voga naquele momento, e ter como protagonista uma “coquete”, termo muito usado ao longo de todo o século XVIII e que descrevia uma mulher que usava de artifícios variados para atrair a admiração e afeição masculinas. Mas é claro que com Austen, uma mestra em brincar com camadas de significados, há muito mais por trás de Lady Susan do que um simples trabalho cômico satirizando uma coquete maniqueísta. 

A performance social: o uso de cartas para manipular a realidade 

Na trama, Lady Susan Vernon é uma viúva recente na casa dos 30 anos, que vai desvelando sua personalidade através de uma série de correspondências. Na carta que abre a narrativa, ela expressa ao cunhado, irmão de seu falecido marido, seu desejo de passar um tempo com ele e a família em Churchill. Aqui, ela mostra a sua faceta eloquente e polida nos dando a impressão de que seus afetos são sinceros e sua relação com a família, agradável. Logo depois, na segunda carta para a melhor amiga, Mrs. Johnson, ela demostra uma personalidade totalmente oposta ao contar sobre um escândalo amoroso que a obrigou a se mover para um “lugarzinho insuportável” (Churchill), em direção ao cunhado que ela considera “objeto da minha aversão”. As duas cartas, tão antagônicas, logo fisgam a atenção do leitor e Austen, inteligentíssima, nos faz cúmplices das palavras de Susan. A partir daí não nos resta nada, se não a acompanhar suas maquinações e imaginar se darão certo ou não. 

Aqui vale ressaltar o brilhante emprego de Austen das cartas como dispositivo narrativo e as implicações do uso delas dentro da sociedade. Ao expor a voz de diferentes personagens através de cartas privadas, a autora nos dá um vislumbre da rotina interna de cada um, além de nos mostrar que as cartas são performances sociais, usadas para criar ou alterar realidades. Austen abre uma pequena janelinha de seu tempo e nos deixa antever o quanto a rigidez social e moral daquele tempo criava um abismo entre verdades e mentiras. O código social exigia polidez, cortesia e educação mesmo entre inimigos, como é o caso de Susan e Catherine Vernon, sua cunhada. Quando juntas, as duas performam a etiqueta social da Regência, mas, nas cartas, desvelam suas verdadeiras opiniões e intenções. Por mais que deteste Susan, Catherine nunca age diretamente contra ela porque o código moral a impede. A cartas são, portanto, um veículo que escancara para o leitor (daquele tempo e do nosso) o abismo entre aparência e realidade e a hipocrisia de todas as relações. Sabemos que Susan performa e finge decoro, mas ela não é a única. 

“Se tenho orgulho de alguma coisa, é da minha eloquência. A consideração e estima com certeza seguem o comando da linguagem, assim como a admiração acompanha a beleza, e nisso tenho oportunidade suficiente para o exercício de meus talentos, já que a maior parte do meu tempo é gasta em conversas.”

Outra análise igualmente interessante da troca de cartas é ver como Austen expõe a agência feminina através das correspondências. Em uma sociedade repressiva que não permitia que na esfera pública elas expressassem abertamente opiniões ou agissem diretamente, é curioso ver as mulheres fazendo o uso das cartas para criar narrativas, persuadir maridos e irmãos, espalhar notícias e atingir objetivos. Não apenas Susan tenta manipular afetos através de suas correspondências, como também vemos sua cunhada, e talvez única rival à altura, Catherine, habilmente tentando desmascarar Susan e afasta-la de Churchill. E são as cartas, ao final, as responsáveis por destruir os planos da protagonista já que as correspondências privadas (principalmente as da cunhada) são o único terreno onde Susan não consegue pisar. Ela tem poder sobre as próprias palavras, mas não sobre as palavras alheias trocadas em segredo. Como bem ressalta Poovey, os alvos dela apenas “escapam do sistema fechado de sua retórica conversando entre si"

“A ingenuidade jamais funciona em questões de amor”: Lady Susan e as questões de poder 

“Há um prazer especial em subjugar um espirito insolente, em fazer uma pessoa predeterminada a desgostar, reconhecer nossa superioridade.”

Não há dúvidas de que Lady Susan é uma personagem manipuladora, narcisista e inescrupulosa em suas conexões familiares e afetivas, e ela não faz nenhum esforço para esconder isso nas cartas particulares que troca com a melhor amiga, mas o fato de o leitor se ver continuamente seduzido por ela, a despeito de seu mau-caratismo, demonstra a habilidade de Jane Austen em inserir significados semiocultos que saltam ao subconsciente durante a leitura. Ainda que a vilania de Susan não possa ser desculpada (principalmente em relação à filha, Frederica, que ela caracteriza como cansativa e tola), há uma interessante reflexão que pode ser feita em relação à personagem e sua escolha de ações. O que fica implícito de forma muito clara é que, para ela, essas maquinações são formas de demonstrar poder. E aqui cabe uma análise sobre o tipo de poder que Susan manipula e por que ela o faz. 

Durante a Regência, período em que o romance é situado, a mulher tinha pouco ou quase nenhum poder. Não lhe era permitido ter propriedades, manejar dinheiro, administrar heranças ou bens. A tutela de sua existência era legada a um parente masculino: pai, irmão, marido ou primos. A sobrevivência de uma mulher solteira (como a própria Austen) ou viúva estava nas mãos da caridade ou bondade de um membro masculino da família. Era, de certa forma, uma existência sem agência direta. Lady Susan, por mais altiva que seja, ainda é uma mulher em um mundo onde ela não pode gerenciar a própria vida financeira a não ser através de uma tutela masculina. Sua posição de autoridade é um engodo que ela não admite nem para si mesma, mas que transparece para o leitor atento. Não é à toa que no início da história ela tenta reatar laços com o cunhado, a quem no fundo detesta. Quando o marido de Susan morre deixando-a em uma situação financeira complicada, ela sabe que é importante estar nas boas graças dele, bajulando-o e à sua família. Acorrentada ao gênero e convenção social, Susan, como as outras mulheres da narrativa, continua à mercê de homens que têm poder legal sobre elas e que, ao final, darão a última palavra. Não há escapatória. 

Suas contínuas intrigas relacionadas a tentar casar a filha com um homem que esta não deseja e as tentativas de conseguir para si uma união com um homem rico também evidenciam essa insegurança que ela maquia e esconde atrás de sua posição petulante e pretensiosa. Um dos piores defeitos de Frederica, para Susan, é ser ingênua em relação às questões do amor. Susan é cínica em relação ao sentimento porque sabe que o casamento é uma segurança econômica e deve ser muito bem planejado e executado. Qualquer movimento em falso pode levar uma mulher à instabilidade ou ruína financeira (situação em que ela se encontra). Por isso, por mais que ela use os homens para se divertir, sua bússola está sempre apontada para o lado do casamento vantajoso. 

“Subjuguei-o por completo apenas pelo sentimento e por uma conversa séria, e o deixei, posso me arriscar a dizer, pelo menos meio apaixonado por mim, sem a aparência do flerte mais comum.”

Susan, de certa forma, entra no jogo do individualismo que estava em ascensão no final do século XVIII, e manipula o sistema masculino em benefício próprio. Não é surpresa que a pessoa que melhor percebe o seu jogo de espelhos é Catherine Vernon, outra mulher que também manobra a estrutura rígida para atingir seus próprios objetivos. Em um mundo em que nada sobrava para as mulheres a não ser contar com a boa vontade de um parente masculino, não é surpresa Lady Susan se vangloriar de suas conquistas amorosas e de como pode subjuga-las quando quiser. Quando o poder é pouco, qualquer parcela dele que se tenha é lucro e deve render.  Assim, ela calcula, coloca em ação e mexe as cordas que estão à sua disposição. E quando algo ou alguém se interpõe em seu caminho ou atrapalha o curso das suas ações, ela se vinga. 

“Ainda não me tranquilizei o bastante para ver Frederica. Ela não vai esquecer tão cedo dos acontecimentos deste dia; vai descobrir que verteu seu terno amor em vão, e que se expôs para sempre ao desprezo do mundo inteiro, e ao severo ressentimento de uma mãe ferida.”

Mesmo que Susan não seja um exemplo a ser seguido, é impossível não notar o olhar bem-humorado da autora ao dar a ela, se não um final feliz, um final satisfatório e não punitivo. Ao contrário da tradição sentimental que castigava as protagonistas transgressoras para que elas se tornassem exemplos a não ser seguidos, Susan não se converte em uma penitente e nem em uma arrependida. Ela se casa com um pretendente muito rico (assim como sua filha) e segue com sua vida. Se ela vai ser feliz ou não, isso fica por conta de nossa imaginação. Nunca saberemos o real motivo de Austen ter se negado a punir uma personagem tão contraventora, mas quando lembramos que a inexistência de propriedade (seja financeira ou de agenciamento), a insegurança e a falta de perspectivas das mulheres (sejam elas boas ou más) foram temas constantes nos trabalhos posteriores de Austen, podemos brincar com a ideia de que, para ela, talvez Lady Susan não fosse a única vilã daquela sociedade. 


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Referências 




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