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Era a Criatura um homem? Uma análise filosófica sobre o Ser em Frankenstein

“Oh! que vergonha para a estirpe humana!
Firme concórdia reina entre os demônios:
E os homens, na esperança de alcançarem
A ventura do céu, vivem discordes,
A racional essência desmentindo!”

(Paraíso Perdido, de John Milton)

A grande obra de Mary Shelley, Frankenstein, de 1818, que foi até considerada por muito tempo como sua única, é um clássico monumental na literatura de horror e ficção científica, e se consolidou como uma das histórias mais amadas, adaptadas e, infelizmente, incompreendidas. Com várias adaptações, principalmente cinematográficas, que distorcem a plot e seus personagens, ela acabou sendo vista como a história de um monstro, que erroneamente chamam Frankenstein, criado por um cientista velho e louco, com ajuda de maquinários tecnológicos, chuva e raios, e até um assistente, Igor, que vive na sombra do mestre obcecado. No texto de Shelley, essa não é a história, e na verdade seguimos uma narrativa que nos traz questionamentos profundos e filosóficos sobre o ser humano e sua essência, sua racionalidade e sentimentalismo, e até onde podemos considerar um ser um homem e onde ele se torna algo a mais. 

A história verdadeira (sem raios nem parafusos)

No romance seguimos um relato por cartas, escrito por um navegador no Ártico, que encontra um homem vagante à beira da morte. Este homem, nosso protagonista, Victor Frankenstein, relata ao navegante sua história: obcecado pela ciência e pela criação da vida, ele se envolve em vários estudos sobre química, física, anatomia, medicina em geral, e acaba por fazer uma fórmula que criaria vida. Ao testá-la, ele concebe uma criatura nova, de forma humana, mas que pode se questionar se é mesmo humana. Horrorizado com sua criação, que ele descreve ter feições horripilantes, ele renega a criatura, e esta foge dele e começa a espalhar caos por onde passa, mesmo que sem intenção para tal.

Eventos variados e muitos infortúnios levam os dois a se encontrar, e a Criatura aparece a Victor dotada de intelecto e personalidade que adquiriu em estudos possibilitados pelo convívio indireto, e às escondidas, com uma família no campo. A Criatura se mostra cheia de desejos, sensações, emoções, fala muito bem, se expressa de maneira clara e poética, mas não é compreendido e é visto como um monstro aonde quer que vá. Quando ele pede ao seu criador que lhe faça uma criatura semelhante, uma fêmea, em troca de depois sumir no mundo e jamais incomodar Victor e sua família novamente, o cientista de primeira aceita, mas depois teme que ou a fêmea não aceite a criatura ou que eles criem uma nova raça de seres que possa acabar com o mundo. Victor então nega o desejo da criatura, que se revolta espalhando mais caos e destruição. 

No final, voltamos ao começo, pois o momento quando Victor é encontrado pelo navegante é o momento em que ele sai à procura da criatura depois de negar a ele sua fêmea, buscando matá-lo ou morrer tentando. 

O nascimento de Mary em berço filosófico 

Shelley teve ao longo de toda sua vida acesso a muitos livros, e provavelmente tinha os grandes pensadores na ponta da língua, dado que até seu próprio pai era um filósofo político e sua mãe, uma teórica feminista que movimenta questões políticas e filosóficas em sua tese. O que podemos argumentar na obra Frankenstein é uma perspectiva de questionamento sobre o ser e sobre o homem no meio da razão e do sentimento, que se mostra em muitas nuances filosóficas que a autora talvez tenha tido a intenção de colocar ou talvez não, mas uma coisa não se nega: Frankenstein questiona o homem como ser no mundo. 

Romantismo e Iluminismo: os opostos complementares

Shelley vem de uma época em que o Romantismo imperava como movimento artístico, e seu próprio marido, Percy Bysshe Shelley, é reconhecido como um dos maiores poetas do Romanticismo. Mas este veio, principalmente como movimento literário, para se justapor ao movimento Iluminista. Enquanto os iluministas que vieram antes viveram um século de iluminação científica, em a razão era o centro, e tudo se baseava nas regras, no progresso, na ciência e nas ideias claras e distintas de René Descartes, o filósofo mais importante da modernidade, que praticamente cunha o movimento científico dentro do âmbito filosófico com seus métodos de investigação, os românticos mostram que algo faltou para o Iluminismo, e isto foi o sentimento, o emocional e todo o âmbito da arte e do sentir. O Iluminismo mira na racionalidade do ser e se esquece de seus sentimentos. Isso, para os Shelley, não é aceitável. E então, temos na obra de Mary um certo embate entre o racionalismo científico iluminista e o emocional romântico, partes do ser humano que deveriam coexistir em harmonia porque ambas são importantes para o homem, mas acabam sendo opostas em muitas considerações, principalmente nas feitas na época de Shelley. 

Victor e a Criatura constituem dois opostos do espectro de humano em sua época: de um lado, o iluminista racionalista, o cientista buscando respostas na teoria e na prática científica, o estudioso obcecado pela razão e a ciência palpável. De outro lado, um idealista, um humanista, que se educa através da literatura de Goethe, Plutarco e John Milton, todos também considerados filósofos, e que busca identificação com o mundo e com os outros, que busca ser tão humano do que o humano que o criou. A Criatura apela muito mais para o sentimento que a racionalidade, enquanto o criador busca respostas na ciência.

“Mal consigo descrever os efeitos desses livros. Eles foram produzindo em mim uma infinidade de imagens e sentimentos que, às vezes, proporcionavam-me o êxtase, mas quase sempre a mais profunda depressão [...]

Enquanto eu lia, porém, debrucei-me sobre meus próprios sentimentos e condição. Percebi que eu era parecido, mas ao mesmo tempo estranhamente diferente dos seres de que tratava minha leitura e daqueles cujas conversas eu ouvia.”

(Frankenstein)

Os gregos antigos e a questão do ser

Mesmo com os elementos de humanidade encontrados tanto em Victor quanto na Criatura, o último é reduzido ao estatuto de "algo" no mundo, sem ter definição. Um ser sem ser, mesmo que isso não pudesse ser possível de um ponto de visto ontológico, principalmente tomando a maior referência filosófica de Percy Shelley, que foi Platão. O famoso pensador ateniense desenvolveu seus escritos em forma de diálogos, e em um deles, chamado O Sofista, argumenta contra a perspectiva de outro pensador grego, Parmênides, que escreve sobre a absoluta impossibilidade do não-ser. Platão argumentaria que existe a questão da alteridade não considerada por Parmênides, na qual pode haver um não-ser na questão de uma diferença em relação a um outro ser. O que era uma questão de contrários e de negação se torna para Platão apenas um outro que pode ser um não-ser em relação aos outros seres. Justamente como é a Criatura apenas um outro, e não um não-ser somente por não podermos atribuir com precisão questões como seu gênero e sua espécie.

Aristóteles foi o primeiro dos pensadores a atribuir, dentre as categorias do mundo, o gênero e a espécie. Se tomamos os indivíduos humanos, o nosso gênero é animal e a nossa espécie seria homem. Além disso, o filosofo grego também abre a sua obra Metafísica com a seguinte afirmação sobre o homem:

“Todos os homens tendem, por natureza, ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações.”

Quando ele diz "sensação", se refere mais aos sentidos como visão, olfato, paladar etc. Poderíamos ver aqui então um apelo ao racionalismo, ao saber científico. Mas não só a ele cabe o saber, pois o próprio Aristóteles escreve e investiga as noções sobre a arte, a alma, o amor, ainda dentro de uma perspectiva filosófica e de conhecimento racional verdadeiro e, de sua forma, científico. Portanto, considerando esses aspectos, a Criatura estaria plenamente inserida em ser, e em homem. 

Dentro daquela classificação de gênero e espécie, a nossa principal diferenciação de outros animais é a racionalidade. Mas então, se a Criatura tem tudo isso, e também tem tendência ao conhecimento que adquire com tanta vontade, por que não é considerada um homem como seu criador e por seu criador? A Criatura está à parte da humanidade, e, no entanto, seus instintos e desejos a mostram tão humana quanto. 

Milton e o paraíso perdido da Criatura

Claro que, dentro da nossa realidade, não precisamos considerar um ser criado a partir de partes de outros seres e que vem à vida através de uma ciência complexa, provavelmente alquímica, e desconhecida. O homem cunhado, forjado, criado, não é exatamente algo que nos concerne neste momento, mas o que é ser um ser humano, o que é a essência, o que é o ser é uma discussão que atravessa os tempos e que se ressignifica a todo momento. No ponto que Mary Shelley escreve Frankenstein, o homem está em embate com a razão e o sentimento. O Iluminismo, como vimos, nos fez voltar ao estatuto de animal racional e adicionou o científico para a definição. O Romantismo em que Mary Shelley se encontra é uma resposta indicando que não somos apenas mente racional, somos mente sentimental. E assim sendo, buscamos reconhecimento e pertencimento em um mundo que se acostuma cada vez mais com o afastamento do emocional e acolhimento do racional.

A Criatura percebe que está sozinha e não tem reconhecimento. E então a percebemos, a partir de seu relato, como um homem e como homem ele também se vê, usando da personagem de Adão como mostrado no Paraíso Perdido, de John Milton, ele deseja ser homem como Adão, mas esculpido da ciência ao invés de barro e do sopro de vida espiritual do Deus cristão. 

“Mas Paraíso Perdido trouxe-me emoções distintas e mais profundas [...] Com frequência tomava como referência para várias situações a minha própria, espantado com as semelhanças. Assim como acontecera com Adão, aparentemente nenhum laço unia-me a qualquer outro ser existente...”

(Frankenstein)

Ele até busca uma companheira, alguém como ele, sua Eva, que julga ser o seu direito. Mas a partir do momento que ele se percebe como ser não reconhecido em seus sentimentos e humanidade, ele os renega, passando a se ver como Lúcifer no Paraíso Perdido, trazendo uma imagem de um anjo caído, um ser outro que homem, até mesmo superior a ele, mas que agora carrega um desprezo pela humanidade.

“Quando relembro a cadeia de minhas iniquidades, não posso crer que sou a mesma criatura cujos pensamentos eram antes repletos de sublimidades e de visões do bem. Mas é justamente assim. O anjo decaído se torna demônio. Entretanto, mesmo aquele inimigo de Deus e do homem tinha amigos e seguidores. Eu sou sozinho.”

(Frankenstein)

Renegado por seu criador, jogado fora do paraíso e impossibilitado do conhecimento divino, Lúcifer busca e cria para si um novo status de ser. A Criatura de Shelley faz o mesmo. Nessa transição de se reconhecer como homem, animal racional, para se identificar com o anjo caído, ele percebe que é algo diferente, algo que é ser, mas que não é homem. Ele está à parte da humanidade e agora se vê como tal. Mas, diferentemente de Lúcifer, a Criatura não tem amigos e seguidores e clama por companhia. 

Hegel: uma breve consideração sobre reconhecimento

Há um momento em Hegel, na Fenomenologia do Espírito, em que ele descreve dois seres, chamados de "consciências", que lutam pelo reconhecimento um do outro, reconhecimento tal que iria lhes garantir a certeza de que eles são seres, iria lhes garantir a confirmação de si mesmos como consciência e como algo superior na natureza, superior, até mesmo, à própria vida biológica. O problema desse embate é que essas consciências estão dispostas a lutar até a morte pelo reconhecimento. Mas percebem a tempo, e ainda bem, que a morte do outro não lhe garantiria o seu reconhecimento necessário, já que a morte seria a impossibilidade de qualquer reconhecimento da parte do outro. 

Pensemos, nessa perspectiva, na Criatura buscando reconhecimento do seu criador e dos outros seres humanos com quem encontra em seu caminho, tal como a família no campo, e buscando a confirmação de ser no mundo, disposto a acabar com a vida dele e com a própria, se necessário, para adquirir o seu status de Homem. Quando, ao final do livro ele percebe que não obterá reconhecimento algum do criador e nem dos outros, ele passa a preferir sua própria morte quando é impossibilitado de sua luta. 

O que Shelley nos mostra claramente na Criatura é a necessidade de se conectar com o outro, de ser reconhecido, de ser amado e poder amar livremente, e também nos mostra que a ciência não é capaz de resolver todos os problemas da humanidade. Vez ou outra, nos cabe recorrer ao sentimento.

Por que pensar o ser?

Mary Shelley coloca nas entrelinhas de seu texto uma nova perspectiva de uma questão filosófica antiga e respondida de várias formas: "o que é o ser?". Se dizemos que o ser é algo constituído de matéria, forma e substância, temos na Criatura um ser, isso não poderíamos negar de maneira alguma. Se consideramos sua racionalidade, temos um homem. Isso torna o conceito de homem mais extraordinário do que o que conhecemos. A questão se complexifica quando, ao analisar o seu próprio ser, a Criatura se vê como um outro em relação à humanidade; mesmo que suas características gerais possam perfeitamente a encaixar como humano, seria isso mesmo o que a Criatura quer?

Não temos no texto de Shelley uma negação do ser da Criatura no sentido de “ela não existe”, pois esse “ser” investigado não concerne à existência, mas encontramos uma dificuldade de interpretar o que ela é em essência, já que suas partes constituintes parecem ser suficientes para dizer “é um homem”, mas sua mente nos diria o mesmo? Assim, entra o horror na filosofia. Pensando logicamente, na nossa realidade, não haveria possibilidade da existência da Criatura, mas quando ela vem à vida, é tratada como um algo além, sem definição. Seu respiro de vida lhe é dado de forma forçada, sua própria existência é uma corrupção da natureza, mas assim o é se pensarmos mais pela perspectiva religiosa e não tanto pela perspectiva científica, já que esta última firma a impossibilidade desse ser e, portanto, não haveria tal corrupção. Não podemos criar um homem inteiro a partir de partes de outros homens já mortos. Mas o horror pode afirmar a possibilidade do ser de tudo. 

Neste ponto, a literatura, o horror e a imaginação têm primazia, e nos mostram como a imagem é tão poderosa quanto a realidade palpável e a liberdade de criação e de humanização do “monstro”. Isso é, se assim ele quiser ser, se lhe for cabível tal definição. Mas se algo a mais foi reservado para a Criatura, não saberemos. Só sabemos que não se pode negar que há algo a mais a respeito dela, e que sua humanidade é como a nossa. A Criatura mostra de maneira crua as nuances da humanidade, expressando desejos e descontentamentos sem segurar as rédeas da reprimenda de expressão que muitas vezes sofremos, ou nos impomos. 

Muitas outras questões poderiam ser levantadas acerca dessa obra, sejam de cunho filosófico ou não, mas ao começar com o questionamento da humanidade da Criatura, termino com o questionamento da nossa, na realidade. Que pensemos nosso papel no mundo e como abordamos o papel dos outros. Que pensemos nosso ser, sem negar o ser do outro, e que pensemos a lição de lidar com as diferenças sempre de maneira mais gentil. Isso poderia ter mudado o rumo da história de Frankenstein, mas também pode mudar o rumo da nossa. 

Referências




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Comentários

  1. Incrível! O livro de Mary Shelley é repleto de camadas e esse texto me fez enxergar outras, ainda mais profundas.

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