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O Exorcista III: punição para a bondade e angústia perpétua

Em 1973, foi lançado um filme que mudaria a história do cinema e não apenas do gênero de terror. Mesmo após 50 anos, o longa baseado no livro de William Peter Blatty, lançado em 1971, segue sendo insuperável no que se propõe a fazer: ser memorável em todos os sentidos. O filme dirigido por William Friedkin, protagonizado por Ellen Burstyn, Jason Miller, Max von Sydow e Linda Blair conta a historia de Chris McNeil e o tormento por que passa com sua filha Regan após a menina ser possuída por um demônio conhecido como Pazuzu. Este é um demônio sumério antigo e poderoso, que toma o corpo de Regan de tal forma que a afeta física e emocionalmente não apenas a moça, mas todos ao seu redor. A carga dramática que toda a trama carrega envolve os personagens não somente em questões religiosas, mas também científicas, em especial a respeito da saúde mental, principalmente no que diz respeito ao personagem do padre Damien Karras, um homem torturado pelas suas escolhas de vida, pela crescente crise que enfrenta a respeito de sua fé, e como tudo isso desencadeou na perda de sua mãe. 

O padre Karras não é apenas um padre em um filme de possessão, mas sim um dos personagens mais complexos da história do cinema e da literatura. Como psiquiatra, Karras procura entender a mente humana e buscar explicações lógicas para ajudar a quem necessita não apenas de uma oração. Como padre, ele tenta a todo custo recuperar sua fé, não apenas em Deus, mas na instituição de que faz parte e que o afastou de sua mãe; como homem, Karras se encontra tão deprimido quanto seus pacientes e tão desesperado quando a menina Regan possuída. No final do filme de 1973, acreditamos que Karras finalmente encontrou sua paz, mesmo que de forma violenta. Karras não queria apenas ajudar Regan, mas também encontrar um fim para o seu sofrimento. Entretanto, no filme O Exorcista III, lançado em 1990 e baseado no livro Legião, também de William Peter Blatty, descobrimos que não foi bem assim, e que o horror de Karras prosseguiu. Uma tortura agoniante representada de forma brilhante em um filme tão genial quanto o primeiro, que mesclou investigação policial com possessão demoníaca e conta com atuações impecáveis que não receberam seu devido reconhecimento.

Breve defesa a O Exorcista II: O Herege

Como dito acima, Legião é a adaptação direta do livro de William Peter Blatty, mas o livro foi lançado em 1983. Sendo assim, não há motivos para enxergar como intruso o filme que foi lançado em 1977. Não apenas não existia uma continuação direta, como também isso não quer dizer que o cinema tem de seguir apenas uma fórmula, fazer tudo de novo e de novo, até a exaustão, apenas porque deu certo da primeira vez. Isso é uma forma de aprisionar a arte e o artista, fazendo-o se sentir preso e sem a possibilidade de demonstrar seu próprio estilo e suas ideias. Principalmente no cinema de terror, no qual a liberdade para contar histórias de forma singular é, desde o início desse gênero, uma forma de tornar essas histórias tão únicas e especiais para os fãs. 

Um pesadelo não precisa ser racional; na verdade, é justamente o contrário. Durante o sono, nosso subconsciente consegue produzir imagens, tramas e monstros nunca antes vistos ou imaginados no mundo desperto. O pesadelo lindo e psicodélico que o cineasta John Boorman desenvolveu em O Exorcista II: O Herege proporciona algo único, belo e assustador e, ao mesmo tempo que não parece se levar a sério, oferece ao público uma oportunidade de experimentar uma nova forma de entretenimento, entendendo que a arte não pode e não deve se manter em um roteiro e forma de conceber pré-ditados. A trama, que se passa 4 anos após o primeiro filme, consegue dar à personagem central Regan (Linda Blair) uma chance de cogitar e recuperar sua própria história, demonstrar que após um ciclo de terror as coisas não voltam a ser como antes, e que na verdade podem nunca voltar a ser. Linda Blair entrega uma Regan que possui seus traumas pessoais, mas que não deixa que isso afete sua vida e seus relacionamentos como um todo. Ela procura ajuda para entender o que aconteceu consigo mesma, ao mesmo tempo que procura ajudar aos outros, sendo uma adolescente normal que, acima de tudo, quer fazer as pazes com seu passado. Tudo isso em meio a uma espécie de transe psicodélico, jogo brilhante de espelhos que brinca com a percepção do espectador, e viagens astrais em gafanhotos. Goste ou não, é impossível não admitir que O Exorcista II: O Herege é um filme corajoso, principalmente pela coragem de ir em uma direção contrária do sucesso do primeiro, e que o desafia diretamente. Querendo ou não, o filme de 1977 tem muita originalidade e em nada afeta a trama da sequência que veio a seguir.

Meu nome é Legião, porque somos muitos.

A trama de O Exorcista III é relativamente simples, e, por essa simplicidade, o filme impressiona por conseguir ser também tão complexo e instigante, assustador e carismático. O tenente William Kinderman (George C. Scott) retorna, assim como o padre Joseph Dyer (Ed Flanders). A amizade que ambos começaram no primeiro livro e filme permaneceu por 15 anos, assim como o vazio da perda de Karras, que ainda afeta a ambos. Mesmo sendo um filme de investigação, ele possui doses de humor muito bem balanceadas entre os atos monstruosos praticados pelo assassino em série que Kinderman investiga, o chamado Geminiano. 

A trama muda completamente após o assassinato brutal do padre Dyer. A morte de Dyer afeta Kinderman profundamente, e é o pontapé inicial para fazer o investigador entender que ele está mais envolvido com o Geminiano do que imagina, e que atos que aconteceram 15 anos antes não estão terminados. Um novo exorcismo precisa ser realizado, mas, dessa vez, a vítima da possessão é o próprio padre Karras. O assassino Geminiano que Kinderman pensava estar morto, interpretado brilhantemente por Brad Dourif, continua a cometer os mesmos crimes mesmo internado e isolado em uma clínica psiquiátrica, mas como? E o mais importante: o que Karras tem a ver com tudo isso? Jason Miller é o único ator do filme original que retorna nesta sequência, e isso é importante não apenas pelo reconhecimento de ter o ator original interpretando novamente o padre Karras, mas também porque Miller entende o personagem melhor do que ninguém, e todo aquele desespero silencioso que Karras carregava no filme de 1973, agora finalmente é ecoado aos quatro ventos, expondo o desespero de um homem que teve seu descanso eterno negado, possuído e atormentado há mais de uma década. A salvação de Regan foi apenas o início da tortura de Karras. Ao oferecer seu corpo para que Regan tenha o dela de volta, Karras se tornou receptáculo de criaturas agressivas, que se alimentam de seu desespero, que respondem bondade com tortura perpétua. 

Uma das partes geniais de O Exorcista III é a atuação de Jason Miller intercalada com a de Brad Dourif. Eles podem parecer que são a mesma pessoa, afinal, apenas um homem está internado isolado na ala psiquiátrica, mas eles definitivamente não têm a mesma personalidade, e a atuação não apenas de Miller é brilhante em expor o tormento de Karras, como a Dourif também é ao expor a insanidade da mente de um assassino traumatizado. Dourif também apareceu no episódio Beyond the Sea, na primeira temporada de Arquivo X. Na trama, ele interpreta um assassino preso no corredor da morte que insiste que suas visões podem ajudar na resolução de um dos casos de Mulder e Scully. A magnitude da atuação de ambos os atores transforma o tormento de Karras e do próprio assassino Geminiano em uma possessão que afeta a todos ao seu redor, assim como aconteceu com Regan tantos anos antes, fazendo com que o ápice do exorcismo aqui seja não apenas uma esperança para a vida, mas que traga também a paz da morte.

O Exorcista completou 50 anos em 2023, e segue sendo uma obra de referência para todas as que vierem a seguir. Entretanto, ele não é o único filme da sequência que merece reconhecimento. O Exorcista II: O Herege é um filme com muito estilo e coragem, que literalmente tem o nome "herege" no título; John Boorman não estava interessado em fazer o que já havia sido feito. E O Exorcista III chega para demonstrar que uma trilogia não precisa seguir a mesma trama, tampouco a mesma fórmula. A trilogia original de O Exorcista é única em cada um dos longas que a compõe; por conta disso, ainda instiga o público mesmo décadas depois de seus lançamentos. E ao que tudo indica, continuará a instigar por muitas décadas a mais, seja com novas histórias que fazem parte do mesmo universo, seja na revisitação desses clássicos.

Referências




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Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

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