últimos artigos

Entre pincéis e pesadelos: o sobrenatural nas obras de Dalí e Ernst

Os anos que compreenderam o período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, chamados de “os anos loucos”, levaram a Europa à sombra da incerteza acerca da paz iminente. Foi nesse contexto de inquietação e contradições que nasceram as vanguardas europeias, representando um rompimento audacioso com as convenções artísticas estabelecidas até então. Nesse momento, movimentos como o Dadaísmo e a pintura metafísica de Giorgio de Chirico (1888-1978) prepararam o terreno para o surgimento do Surrealismo.

O Surrealismo foi uma das vanguardas artísticas europeias que surgiram em Paris no início do século XX, como uma resposta radical ao racionalismo e ao materialismo da sociedade ocidental. Originado nas cinzas da Primeira Guerra Mundial, encontrou solo fértil entre artistas e escritores que ansiavam por escapar de convenções sociais e mergulhar nas profundezas de seus próprios subconscientes. Figuras como André Breton e René Magritte se destacaram como mestres da exploração surreal, criando obras que desafiavam a compreensão convencional e provocavam a mente do espectador a questionar a própria natureza da realidade. Porém, a maneira como Salvador Dalí e Max Ernst expunham seus pensamentos mais obscuros chamou ainda mais a atenção não apenas dos profissionais das belas-artes, mas também do público geral.

O sobrenatural como elemento surrealista 

O sentimento no Surrealismo é uma mistura de realidade e sobrenatural, criando uma sensação estranha e alucinatória que ultrapassa os limites da realidade cotidiana e da lógica racional. O próprio termo "surreal" representa a síntese entre o real e o irreal, aproximando-se da realidade ao incorporar elementos sobrenaturais. 

A dimensão sobrenatural é fundamental no movimento e é vista como a única e mais genuína maneira de comunicação duradoura entre as pessoas, diferentemente da busca artificial e falsa do mistério. O Surrealismo, ao invés de buscar eficácia imediata, abraça elementos que seguem a estética do insólito, e, dessa forma, valoriza a imaginação como fonte de conhecimento e ação. Nesse contexto, desafia a explicação racional do mundo, refletindo o desejo humano e a irracionalidade do acaso objetivo. Ela se manifesta por meio de dois efeitos poéticos: o maravilhoso e o fantástico.

Apesar de ambos darem visibilidade ao sobrenatural em suas obras, Ernst e Dalí utilizavam diferentes técnicas para tal. Os dois artistas compartilhavam a crença de que o sobrenatural era uma porta de entrada para o inconsciente coletivo e uma fonte de conhecimento mais profundo sobre a psique humana. Eles desafiaram a explicação racional do mundo, convidando o espectador a explorar os cantos mais obscuros de seu subconsciente por meio de suas obras.

Salvador Dalí é reconhecido por seu método paranoico-crítico. O artista encontrou sua primeira (e talvez mais recorrente) fonte de inspiração para o Surrealismo no trabalho de Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise, ao ler A Interpretação de Sonhos. A partir disso, o precursor do movimento artístico mergulhou em obras recheadas de elementos perturbadores. “A Face da Guerra” (1941), por exemplo, é uma das obras mais simbólicas de Dalí. A caveira com infinitas outras caveiras em seu interior enche a tela de morte de maneira perturbadora e reflete os sentimentos do artista no período pós-Guerra Civil Espanhola e pré-Segunda Guerra Mundial.

A face da guerra, por Salvador Dalí (1941)

Max Ernst também abordava sonhos e cenários imaginativos em suas pinturas, mas seu método era voltado para a sugestão do mistério do inconsciente e a transformação perturbadora do real. Em “O Triunfo do Surrealismo” (ou “O Anjo da Lareira”, como foi inicialmente denominada), Ernst representa uma metáfora visual que se refere tanto à situação delicada que a Europa enfrentava na época quanto ao contexto da Guerra Civil Espanhola. O personagem da obra em questão pode ser interpretado como uma personificação do caos e da desordem que ocorreram durante a Guerra Civil Espanhola, e, como consequência, das tensões políticas e sociais na Europa da época.

A representação do sobrenatural vai além da estética

A presença do sobrenatural nas obras de Salvador Dalí e Max Ernst é um traço distintivo que vai além da mera estética artística. Essa característica serve como um meio pelos quais esses artistas buscavam explorar os domínios da imaginação e do inconsciente humano. 

Tais representações tinham o objetivo de transcender as fronteiras do pensamento lógico e da realidade tangível. Com isso, os artistas pretendiam criar um espaço onde o espectador fosse confrontado com o inexplicável e o enigmático. Isso permite que os observadores se afastem das convenções da vida cotidiana e mergulhem em um estado de contemplação e reflexão.

O triunfo do Surrealismo, por Max Ernst (1937)

Essa abordagem teve um impacto profundo na visão do público sobre a arte. As obras de Dalí e Ernst desafiaram as expectativas tradicionais, e, dessa forma, incentivaram (e ainda incentivam) as pessoas a questionarem a realidade e a considerarem o papel do subconsciente na criação artística. As temáticas e abordagens de suas obras provocaram discussões sobre os limites da razão e da compreensão humana, bem como sobre o papel do irracional na arte.

Além disso, a presença do sobrenatural nas obras de Dalí e Ernst contribuiu para a evolução da história da arte. Eles foram pioneiros no movimento Surrealista, que abriu caminho para uma série de experimentações artísticas ao longo do século XX. A busca pelo sobrenatural como tema artístico inspirou outros artistas a explorarem o subconsciente e a criarem obras que tinham como objetivo desafiar as noções convencionais de representação visual.

Suas representações desafiadoras do irracional e do enigmático ainda servem como catalisadores para a exploração contínua da mente humana por meio da criatividade e da arte. O legado desses mestres surrealistas é uma lembrança constante de que a arte pode transcender as fronteiras da realidade, convidando-nos a questionar, a sonhar e a abraçar o inexplicável em nossas próprias vidas.

Referências 




O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e cogite ser um apoiador. ♥

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)