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Hamnet, uma ode shakesperiana

"Se em algum dia em teu peito me abrigaste
priva-te por um tempo da ventura
e respira cansado mais um pouco
neste mundo tão duro, para a todos
contares minhas história"

(Hamlet - Ato V, cena II)

Conhecida  como uma das tragédias mais famosas de William Shakespeare, Hamlet é o romper de um novo tempo, principalmente de uma transição regencial, entre o elisabetano e o jaimesco, entre o medievalismo e o homem do novo mundo. Todo esse movimento pode ser percebido no que rege a trama. Um pai que também é rei, um homem medievo que é traído e deixa para o filho, um homem do novo mundo, uma missão quase que transcendenta, vingar a sua  morte injusta, fruto da traição conduzida pelas mãos de seu próprio irmão.

Hamlet, nesse jogo de traições e represálias, começa a perder a si mesmo e tudo aquilo que ama. Esse herói sombrio, através de uma loucura fingida, configura uma desconstrução do que era um herói tradicional e protagoniza um novo gênero, como chama Bárbara Heliodora (1995), a “tragédia de vingança”. A autora exemplifica as características do gênero na peça do bardo e cita a aparição do fantasma do rei a Hamlet, seu pedido de vingança, o fingimento da loucura, a culpa na vingança que Hamlet sente, o próprio ambiente corrompido e etc. como formadores desse novo gênero.

É dessa forma que a primeira das grandes quatro tragédias Shakespearianas foi difundida, uma história de vingança e traição, mas que não esgota-se apenas nisso; através de um novo prisma pode-se vislumbrar em Hamlet uma história ainda mais delicada, uma história de luto. Por baixo de muitas camadas encontramos um filho que vive a morte precoce e injusta de seu próprio pai e rei. O luto corrói Hamlet assim como a obrigação de ser um herói vingador. 

É pela perspectiva do luto, ou melhor, de uma pergunta de “e se?” que Maggie O’Farrell tece a trama de Hamnet, um romance lançado em meados de 2020, que reescreve pelas lacunas da história a vida precoce de um filho que tinha um pai que escrevia peças; um dramaturgo e, principalmente, uma mãe que amava a natureza.

Um pequeno adendo biográfico

Pouco se sabe a respeito da vida de William Shakespeare. Sabe-se que nasceu em Stratford-upon-Avon, em Londres, e que o famoso dramaturgo casou-se com Anne Hathaway, com quem teve três filhos, dentre eles um casal de gêmeos, Judith e Hamnet. Hamnet, o menino que viria a falecer ainda em sua infância por motivos pouco conhecidos, e o que resta de sua vida são números; 1596 e, talvez, por meio de alguma especulação, uma peça escrita quatro anos após a sua morte por seu pai, que contém como herói e como título uma variação de seu próprio nome, Hamlet.

Foi essa coincidência que chamou a atenção da romancista Maggie O’Farrell e a impulsionou na escrita de Hamnet. A autora, nesse jogo de “e se?” proporcionado pela ficção, dá vida a personagens históricos e abre todo um cenário, através de uma escrita sensível e detalhada, para uma reflexão sobre a maternidade, a natureza e o luto.

O enredo

Na narrativa de O’Farrell, somos apresentados, em um primeiro momento, a um menino que procura por sua mãe, esse menino que conhecemos como Hamnet, em desespero diante da doença que assola a sua irmã gêmea, Judith. Nesse momento, temos o primeiro plano da narrativa, o presente. No segundo plano, temos um prelúdio à construção dessa família, a apresentação de um jovem tutor de latim, filho de um luveiro em decadência com uma dinâmica familiar conturbada, e temos também a apresentação de Agnes, nome que funciona como uma espécie de pseudônimo para Anne.

Agnes é apresentada com um “quê” de fruto proibido na narrativa, ela cativa o tutor de latim e todos ao seu redor, porém, esse espírito de fascinação amedronta a todos na cidade. Órfã de uma mãe que desafiava os padrões daquele círculo social, Agnes herdou toda a fama deixada por ela, e a capacidade de prever o futuro pela palma de uma mão, de curar através dos remédios naturais etc. Sua ligação quase que vital com a natureza a transformava no perigo, e a sua liberdade selvagem ainda mais.

"Havia uma lenda nesses arredores sobre uma moça que vivia no limite da floresta.

As pessoas perguntavam umas às outras, você já ouviu falar da moça que vivia no limite de uma floresta?, quando se sentavam em volta do braseiro à noite, quando faziam massa de pão, quando cardavam lã para tecer. Essas histórias, claro, aceleravam o passar da noite, acalmavam uma criança indócil, distraíam uns e outros de suas preocupações.

No limite da floresta, uma moça.

[...]

Assim, numa casa bem no extremo da floresta, moravam a moça e seu irmãozinho. As árvores podiam ser vistas das janelas nos fundos das casas, balançando suas copas inquietas em dias ventosos, sacudindo seus punhos nus e retorcidos no inverno. A moça e o irmão nasceram sentindo o chamado da floresta, seu poder de atração."

Nesse encontro entre um tutor que nunca é nomeado e Agnes, temos o segundo plano da história de Hamnet, o que seria o encontro entre Shakespeare e Anne. Na alternância dos focos narrativos, entre o passado e o presente, torna-se possível perceber que nosso herói na verdade é uma mulher, Agnes, a heroína de Maggie O’Farrell.

De volta ao presente, Hamnet descobre nos seus primeiros momentos da narrativa o que é a solidão e o desespero ao achar que sua outra metade, sua irmã gêmea, pode falecer, mas é o filho que ainda tão jovem é vítima da peste. Agnes, com toda a sua sina de vidente, sempre soube que perderia um filho, ou melhor, uma filha, Judith, a criança que nasceu natimorta, sempre doente e que no início da narrativa está acamada, o que faz seu irmão Hamnet, de saúde de ferro, buscar por ajuda. É na reviravolta do destino que Agnes perde seu filho que nunca deveria ter partido, e que um dramaturgo processa o luto através da escrita de seu herói mais profundo, Hamlet.

O luto

Na grande tragédia Shakespeariana, o jovem Hamlet deve processar a perda de seu pai e, consequentemente, a perda de toda uma estrutura familiar. O seu tio usurpa o trono, agora é rei; a sua mãe, Gertrudes, desaparece da sua posição de mãe e mantém a coroa ao casar-se com o próprio cunhado. Hamlet perde junto à sua figura de admiração tudo o que conhecia como lar. O homem que foi ao novo mundo não reconhece mais a terra que o criou.

Hamlet é órfão, deve executar uma vingança, e por isso é tão atormentado. O fantasma de seu pai, materializado ou não, não o deixa. Tudo lembra o seu pai e o seu dever. A aparição que o atormenta, metaforicamente, pode ser encarada como a manifestação do luto do nosso herói.

Já com O’Ferrall, nossa heroína, Agnes, vive a perda de seu próprio filho, o desfragmentar da sua família, e a percepção de que o mundo continua, a natureza transforma-se a cada dia, o pão é feito toda manhã, suas filhas crescem, o tempo passa, mas a memória, ou o fantasma da criança, do homem, do que poderia ter sido continua a assombrar uma mãe. O peso da ausência, do luto de um filho e de um irmão é sentida por todos daquela família.

"Agnes é uma mulher em pedaços, e esses pedaços estão espalhados por todo lado. Não se surpreenderia se baixasse os olhos num dia qualquer e visse um dos pés num canto, um braço largado no chão, uma das mãos caída no corredor. Com as filhas dá-se o mesmo. O rosto de Susanna vive crispado, as sobrancelhas franzidas numa expressão que lembra raiva. Judith só chora, chora sem parar, silenciosamente; as lágrimas vazam dela e, ao que parece, jamais cessarão.

Como se haveria de saber que Hamnet era o alfinete que os prendia? Que sem ele todos se fragmentariam e desmontariam, como uma xícara quebrada no chão?"

O luto é sentido principalmente por Judith, a irmã gêmea e a outra parte de Hamnet. Entre as várias formas de sentir, temos o pesar de uma criança. A figura dos gêmeos no senso comum sempre trouxe uma ideia de subsistência, de que uma parte compõe a outra e de que só nessa composição é possível permanecer. É dentro desse pensamento que encontra-se Judith, agora sem o seu duplo; o que seria ela além de uma lembrança daquilo que tudo que Hamnet já foi? Semelhança física, gestos, um lembrete da ausência do outro. 

"Como se chama, pergunta Judith à mãe, alguém que foi gêmeo, mas não é mais? A mãe, mergulhando um pavio dobrado, duplo, no sebo aquecido, faz uma pausa, mas não se vira.

 Quando uma mulher é esposa, prossegue Judith, e o marido morre, ela vira viúva. Quando os pais morrem, um filho vira órfão. Mas qual é a palavra para o que sou agora?

Não sei, responde a mãe.

Judith observa o líquido escorrer das extremidades dos pavios para dentro da tigela.

Talvez não exista uma palavra, sugere. Talvez, diz a mãe."

O romance brilha nas descrições das emoções, nas imagens que as palavras constroem, a natureza tem um pulsar no romance, descrita por sentenças tão bem escolhidas pela autora. No parto de Susana, a filha mais velha de Agnes, a floresta e a natureza surgem como a personificação de sua própria mãe, como se segurasse a mão de Agnes, uma terceira margem naquela história. Agnes abandona a todos, o único conforto de que ela precisa é da natureza, de sua mãe.

"Agnes se agacha na terra, que está seca, debaixo da árvore desenraizada, sobre um tapete de pinhas. Sente que mais uma contração vem chegando, se aproximando dela, cada vez mais perto, como um trovão sobre um vale. Vira-se, agacha-se, resfolega no compasso da dor, como sabe que deve fazer, agarra-se com força a uma raiz [...] Ergue a cabeça e vê, do outro lado da clareira, o tronco prateado e as folhas delicadas de uma sorveira, também conhecida como árvore de rowan. Apesar dos pesares, sorri. [...] Agnes, de quatro, planta as mãos na terra e, como uma loba, se rende a mais uma contração. [...] O rosto da filha está úmido, acinzentado, com uma expressão aborrecida. A menina ergue os punhos, um de cada lado da cabeça, e emite um grito [...] Quem haveria de pensar que o cordão fosse tão grosso, tão forte, ainda pulsando como um longo coração listrado? As cores do parto impressionam Agnes: o vermelho, o azul e o branco. Ela puxa o vestido, despindo o seio e erguendo o bebê até ele, observando, maravilhada, enquanto a boca da filha se abre e ela abocanha o bico e começa a sugar. Agnes deixa escapar uma risada. Tudo funciona perfeitamente. O bebê sabe o que fazer, sabe melhor que ela."

O livro de Maggie O’Farrell é uma espécie de ode à tudo que é belo, natural e doloroso. Uma ode a Shakespeare, sua história e ao brilhantismo de sua peça, de seu grande herói Hamlet. No romance, ele nunca é nomeado, mas a sua presença é marcada em cada capítulo. No fim, o dramaturgo de O’Farrell produz uma peça que tira Agnes do sonambulismo deixado pelo luto e a faz entender que apesar de o mundo continuar após a morte de seu filho, a memória permanece, e a memória de seu filho vive por séculos através de uma sutil troca, o que era Hamnet transforma-se em Hamlet. 

"Hamlet, nesse palco, é duas pessoas: o jovem, vivo, e o pai, morto. Está ao mesmo tempo vivo e morto. O marido o trouxe de volta à vida, do único jeito que é capaz. Quando o fantasma fala, ela percebe que o marido, ao escrever o texto, está assumindo o papel do fantasma, trocou de lugar com o filho. Pegou a morte do filho e a tornou sua; pôs a si mesmo nas garras da morte, ressuscitando o menino em seu lugar. “É horrível, sim, muito horrível!”, murmura a voz fantasmagórica do marido, relembrando a agonia da própria morte. Ele fez, compreende Agnes, o que qualquer pai gostaria de fazer, trocar o sofrimento do filho pelo seu, tomar seu lugar, oferecer-se em sacrifício em prol do filho para que o menino pudesse viver."

Referências 




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