últimos artigos

Erik, Quasímodo, Fera e a monstruosidade masculina na literatura francesa


Desde os primórdios, os monstros parecem despertar o interesse da humanidade. Aliás, o que diferencia um homem de um monstro? E por que há esse fascínio a respeito de seres criados pela própria mente humana? O filósofo José Gil diz que esse interesse se justifica uma vez que o homem se define em oposição ao monstro. Ou seja, nos diferentes recortes de tempo e espaço, podemos ver como o próprio ser humano se enxerga a partir das representações de monstruosidade que ele cria.

Para começar a entender o conceito de monstro, primeiro é necessário perceber que sua existência é contrária à norma vigente de determinado período, lugar e cultura. Assim sendo, a figura do monstro é mutável, dependendo de diversos fatores para se criar no imaginário social. Monstros são, em suma, aquelas que fogem do padrão. Quanto mais fora da regra e diferente daquilo que é estabelecido pela sociedade como “normal”, mais monstruosa a criatura.

Em “A cultura dos monstros: sete teses”, Jeffrey J. Cohen discorre sobre o conceito de monstro e o modo como esses seres são reflexos da mente humana. Em sua tese quarta, intitulada “O monstro mora nos portões da diferença”, ele diz: “O monstro é a diferença feita em carne; ele mora no nosso meio”. E ainda: “O processo pelo qual a exageração da diferença cultural se transforma em aberração monstruosa é bastante familiar”.

De fato, ao longo da história, características físicas consideradas grotescas eram usadas como desculpa para fazer um pré-julgamento de caráter. Um exemplo, dado pelo próprio Cohen em suas teses, seria o rei Richard III, que foi descrito como um monstro desde seu nascimento por sua coluna deformada, o que seria um indicativo claro da sua moralidade duvidosa, opinião dada com afinco por aqueles que não compartilhavam da mesma visão política que ele.

Deformações físicas, em especial durante a Idade Média, eram vistas como castigos divinos e indicativos claros de uma alma corrupta e diabólica. Se o monstro é a diferença da carne, como Cohen descreve, a sociedade tomou o papel de trazê-la à luz através de discriminação e preconceito. Aliás, de que outro modo seriam acolhidos os populares freak shows do século XIX, famosos por expor pessoas com anomalias genéticas e diferenças físicas visíveis como animais em um circo, se essas mesmas pessoas não fossem, de fato, monstros?

Tal discussão, abordada no meio acadêmico, também pode ser vista pela ótica da literatura. Em especial na literatura francesa, com obras famosas por retratar a monstruosidade masculina e os desdobramentos que adquire ao ser entrelaçada com o conceito de amor.

Além do mais, um monstro continua sendo um monstro quando é amado?

O homem animalesco 


A francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve foi a escritora da versão mais antiga do famoso conto A Bela e a Fera, de 1740. Apesar dos estúdios Disney terem adaptado a história original para uma versão mais adequada ao público infantil em 1991, a base da fábula continua a mesma: a bela filha de um comerciante assume o lugar do pai como prisioneira em um castelo assombrado por uma criatura que, apesar de parecer um animal por fora, se comporta como um homem. Depois de algumas reviravoltas, a moça percebe que independentemente do exterior monstruoso, a Fera é gentil e boa para com ela, fazendo com que novos sentimentos floresçam e a maldição seja quebrada, revelando um belo príncipe no lugar de onde antes havia um monstro.

“– Ah! – exclamou Bela, quase fora de si. – Saiba que eu daria minha vida para conservar a dele e que esse monstro, que só é monstro na aparência, tem um caráter tão humano que não deve ser punido por uma deformidade para a qual não contribuiu em nada.”

(A Bela e a Fera)

Na edição do livro A Bela e a Fera da editora Zahar, o tradutor Rodrigo Lacerda conta que Villeneuve pode ter se inspirado no caso real do espanhol Pedro González para escrever sua história. Pedro nasceu com o corpo coberto por pêlos espessos, condição rara denominada hipertricose, e por isso era visto como um selvagem incapaz de aprender e se comportar como um ser humano. Frustrando as expectativas e sob a proteção do rei Henrique II da França - para quem Pedro foi enviado como um animal de estimação exótico -, ele cresceu e se tornou um homem de educação exemplar e bons modos. Mais tarde, foi oferecido em casamento a Catarina, uma bela moça filha de um serviçal da corte, pela própria rainha, que se considerava excêntrica e queria ver com os próprios olhos que tipo de “criatura” resultaria do casamento de Pedro com uma mulher. É dito que a identidade do futuro marido foi escondida dela até o dia da cerimônia, e segundo relatos, Catarina desmaiou ao vê-lo pela primeira vez. Felizmente, o susto inicial deu lugar a um casamento feliz em que ambos se amavam. Catarina e Pedro viveram juntos pelo resto da vida e tiveram muitos filhos, inclusive alguns que herdaram a rara condição genética do pai.

Pedro González (1580)

Para além da fonte histórica, contos nos quais a redenção da monstruosidade masculina se dá através do amor de uma mulher boa e bela se tornaram comuns ao longo do tempo. Tal subgênero dos contos de fadas é chamado animal bridegroom, e, apesar de ensinar que o amor é a maior das virtudes e cresce para além da aparência física, também pode ser problematizado uma vez que os casamentos de conveniência, tão comuns nos séculos passados, nem sempre favoreciam a mulher, que devia ser ensinada que o amor e devoção para com o marido poderia transformar mesmo o mais difícil dos homens, o redimindo diante da pureza e bondade feminina. E que jeito melhor de espalhar essa ideia, mesmo que furtivamente, para tornar mulheres em esposas dóceis, que não os contos de fadas?

Quasímodo 


Quase um século depois da publicação de A Bela e a Fera, também na França, Victor Hugo escreveu aquele que se tornaria um dos seus livros mais célebres: O corcunda de Notre Dame.

No livro, Quasímodo é um rapaz que foi abandonado aos pés de Notre Dame e acolhido pelo arcebispo Claude Frollo, que o cria nos confins da catedral e lhe oferece o trabalho de sineiro. Quasímodo é descrito como repulsivo, devido às suas más formações que o deixaram com o rosto desfigurado e corcunda, além de ser surdo pelo trabalho constante com os grandes e barulhentos sinos do santuário parisiense.

Quasímodo é julgado o tempo todo por sua aparência. Ele é visto como uma criatura grotesca por todos à sua volta, sendo renegado aos cantos escuros de Notre Dame para que os olhos de outros não caíssem sobre ele. Apesar disso, o rapaz não se coloca como vítima diante da sociedade, mas se revolta contra ela. A natureza o tornou diferente, mas foram as pessoas que depositaram sobre ele a roupagem de monstro por essa diferença. Assim, Quasímodo “odiava o povo por se sentir odiado”, como Hugo afirma na narrativa. O personagem faz da catedral seu templo, e, apesar de não ter uma só palavra gentil dirigida a ele em toda a sua vida, Quasímodo se revela um homem bondoso e íntegro ao se apaixonar pela bela cigana Esmeralda e tentar salvá-la da morte diversas vezes.

Une larme pour une goutte d'eau, por Luc-Olivier Merson (1903)

Hugo mostra a dualidade entre a monstruosidade física e moral no decorrer do livro. Apesar de Quasímodo ser considerado feio por fora, a narrativa é construída para que o leitor enxergue que o verdadeiro monstro ali é Claude Frollo, com seu caráter corrupto e diabólico, mesmo sendo um homem da fé.

Assim como Bela e Fera, Esmeralda e Quasímodo são antitéticos, mas, ao contrário de Bela, Esmeralda não consegue corresponder aos sentimentos românticos que Quasímodo nutre por ela, fazendo com que o personagem se torne ainda mais consciente das suas limitações físicas.

“Jamais vi minha feiura como agora. Quando eu me comparo com você, tenho muita piedade de mim, pobre monstro infeliz que sou! Devo lhe parecer uma besta, diga. – Você, um raio do sol, uma gota de orvalho, um canto de pássaro! – Eu, eu sou algo assustador, nem homem, nem animal, um sei lá o que mais duro, mais pisoteado nos pés e mais disforme que um pedregulho!”

(O corcunda de Notre Dame)

Erik 


O Fantasma da Ópera, um romance gótico escrito por Gaston Leroux em 1909, compartilha muitas semelhanças com as duas obras citadas anteriormente.

Também se passando na famosa capital francesa, Leroux, ao contrário de Hugo, escolhe outra magnífica e misteriosa construção de Paris como cenário principal da sua narrativa: o Ópera Garnier, com suas passagens secretas, escadarias suntuosas e túneis obscuros.

Assim como Quasímodo, Erik, o Fantasma da Ópera, se esconde da vista de todos por possuir uma aparência fora do comum.

Descrito como magro e de estrutura esquelética, com dois buracos negros e profundos no lugar dos olhos, Erik nasceu diferente dos demais e por isso foi renegado pela própria mãe, o que o fez fugir de casa muito jovem e acabar chegando, mais tarde, em Paris, onde se escondeu nos túneis da Ópera Garnier. O mundo não foi compreensível com Erik, pois ninguém conseguia enxergá-lo para além da sua aparência física, o que, ao contrário do que acontece com Quasímodo, o tornou frio e até mesmo perigoso para aqueles à sua volta.

Le fantôme de l'Ópera, por André Castaigne (1911)

Quasímodo não se ressentia de Esmeralda por ela amar outro homem ao invés dele, mas, quando Erik se apaixona por Christine, não hesita em tentar eliminar Raul do caminho, desistindo no último momento por causa dos apelos e da afeição que nutria pela soprano.

“Se eu sou o fantasma, é porque o ódio do homem me fez assim. Se devo ser salvo, é porque teu amor me redime.”

(Erik, O Fantasma da Ópera)

Em ambos os livros, vemos que o comportamento de Quasímodo e Erik são reflexos do ódio que o mundo depositou sobre eles por um fato de que não tinham o menor controle: suas aparências físicas. Embora a escolha de ser bom ou mau e todas as tonalidades de cinza que existem entre os dois extremos seja de cada um individualmente, é possível julgar Erik, ou Quasímodo, por odiarem o mundo com a mesma intensidade com que o mundo os odiou?

Por nascerem diferentes, já eram vistos como inferiores. Eles fugiam da norma, eram algo a ser escondido e reprimido e não mereciam compaixão. Por suas deformidades, as pessoas só os enxergavam como maus, não deixando margem para dúvida e entrelaçando, de maneira indissociável, caráter e aparência. Diante disso, com que perguntas se depararia a mente humana ao perceber que aqueles que apontavam como monstros eram capazes de atitudes muito mais humanas do que os que se dizem possuir alma incólume?

Se fosse um verdadeiro monstro, Bela nunca teria amado a Fera. Nem Esmeralda poderia confiar em Quasímodo e chamá-lo de amigo, ou Christine nutrir compaixão e solidariedade para com Erik. Eles se esconderam porque não tinham escolha, odiaram porque apenas isso lhes era oferecido e provaram para o mundo que eram bem mais do que diziam deles ao se permitirem sentir a emoção mais humana de todas: amor.

Mais do que falar sobre a aparência exterior, essas três histórias, cada uma escrita em um século diferente, por pessoas diferentes, falam sobre a alma. A alma do homem, a alma do monstro e como, muitas vezes, as duas não passam de uma só.

Referências 




O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥

Comentários

  1. Adorei o texto! Nunca tinha parado pra pensar nessa característica comum a esses personagens vilanizados. Acho que se a gente for parar pra analisar em algumas obras isso acontece até hoje

    ResponderExcluir

Formulário para página de Contato (não remover)