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Romeu + Julieta: entre atos e telas

Considerada como uma das primeiras peças trágicas de William Shakespeare, Romeu e Julieta é uma obra conhecida universalmente como a maior história de amor de todos os tempos. Embora seja uma das produções mais conhecidas do bardo, a história polêmica entre dois jovens que escolhem a morte como único terreno fértil para o amor não é considerada o maior trabalho, no que diz respeito à qualidade, do autor.

Apesar disso, a obra respingou na história do ocidente e consolidou-se como um dos maiores nomes a protagonizar a literatura universal. A trama acabou fazendo parte do imaginário social, através do tempo, com diversas adaptações para o audiovisual, palcos e demais suportes. A não leitura da obra na íntegra não implicou no conhecimento do enredo por parte do público comum. 

Os atos 

Dois jovens de famílias rivais, cuja briga não tem um início ou motivo explicitado, são vítimas da cegueira acometida pela paixão. O palco é Verona, cidade localizada no norte da Itália. As famílias, os Montéquios e os Capuletos. 

Ambas as famílias são abastadas. Romeu é um Montéquio que delirava de paixão por Rosalina, sendo ele um rapaz extremamente sensível e entregue à espiritualidade do amor. Julieta é uma Capuleto, jovem demais para pensar em casamento, mal completou 14 anos, trocar votos com um senhor é uma honra em que nunca ousou pensar.

Em um desencontro, os jovens esbarram-se e o amor surge de forma instantânea Nesse momento já está traçada a tragédia que viria a redimir a violência das famílias rivais, o fim de Romeu e Julieta.

Na esperança de uma eternidade de amor, o falso veneno engana a morte e as famílias, mas Romeu desavisado junta-se a Julieta em seu falso leito de morte. Julieta então deve seguir, pelas próprias mãos, o destino de seu grande amor.

Omitindo alguns detalhes, nada parece escapar do conhecimento geral sobre a peça, esta que foi replicada incessantemente durante os anos. Fato interessante é pensar que Shakespeare não criou inteiramente o enredo, mas realizou também um trabalho de adaptação. A história em si vinha de um ciclo longo de circulação pela Europa e chegou à Inglaterra na forma de um poema narrativo. 

Shakespeare não adaptou somente o formato e a estrutura, mas o próprio enredo que, através de suas palavras, deixou de lado o tom moralista e passou a criticar a sociedade elisabetana, os casamentos arranjados e a violência, um dos temas principais da peça. 

Aa telas 

São diversas as adaptações de Romeu e Julieta, seja para o teatro, para a música e principalmente para o audiovisual. O cinema, com sua linguagem cheia de especificidades, abraçou a obra de Shakespeare e suas produções são incontáveis, entretanto, a maioria carrega sempre um mesmo teor, um mesmo cenário que busca a todo tempo aproximar-se, voltar à origem do texto escrito. 

A semelhança dá-se nas vestimentas, no retrato do medievo e dos trejeitos sociais. Às vezes podemos nos questionar: o valor de uma adaptação está puramente na cópia, na repetição do texto primeiro?

É dessa forma que Baz Luhrmann destaca-se, o mesmo diretor de Moulin Rouge (2001), produzindo William Shakespeare's Romeo and Juliet (1996), uma adaptação que mudou toda a dinâmica. O cenário agora é Verona Beach, uma espécie de simulacro de uma Los Angeles decadente por conta do capitalismo selvagem e da violência urbana.

Romeu + Julieta (1996)

Luhrmann pouco a pouco vai ressignificando os signos deixados por Shakespeare, os cavalos passam a ser carros conversíveis, as espadas passam a ser armas de fogo, pistolas de 9mm e os símbolos religiosos mais uma vez apresentam-se, mas nas tatuagens e nos letreiros em neon. Tudo isso seguindo uma estética considerada “brega”, com cores gritantes e amareladas banhado a muito exagero e violência.

Essa tradução entre linguagens que o diretor propicia baseia-se na ideia de transformação a fim de trazer algo novo, o que vai de encontro com o conceito de originalidade que muitas adaptações baseavam-se  até então. Um exemplo prático é a cena de abertura do filme em paralelo com o prólogo da peça, do texto na íntegra.

Na peça, o prólogo é anunciado pelo coro; estes deixam claro sobre o que trata-se o que está por vir:

"Duas casas, iguais em seu valor.
Em Verona, que a nossa cena ostenta,
 Brigam de novo, com velho rancor,
Pondo guerra civil em mão sangrenta.
Dos fatais ventres desses dois inimigos
Nasce, com má estrela, um par de amantes,
Cuja derrota em trágicos perigos
Com sua morte enterra a luta de antes.
A triste história desse amor marcado
E de seus pais o ódio permanente,
 Só com a morte dos filhos terminado,
Por duas horas em cena está presente.
Se tiverem paciência para ouvir-nos,
Havemos de lutar para corrigir-nos."

Já na adaptação de Baz Luhrmann, somos teletransportados para a contemporaneidade por meio de uma TV que apresenta-se em um fundo preto. Na TV quem anuncia a tragédia dos dois amantes é uma repórter, em um típico noticiário sensacionalista do horário nobre. Esse é um dos exemplos da tradução que o diretor pratica. 

Outra forma de trazer a contemporaneidade para dentro de um texto super canônico foi através dos suportes da sua linguagem específica, a linguagem do audiovisual. Luhrmann buscou nos enquadramentos e movimentos de câmeras uma forma de demonstrar a urgência do fim dos anos 1990, a estética do videoclipe da MTV, com cortes rápidos e quadros fechados.

Para além das transformações, algumas coisas permaneceram; as famílias continuam a rivalizar mesmo sem uma motivação específica, Romeu (Leonardo DiCaprio), um Montéquio, continua a se apaixonar por Julieta (Claire Danes), uma Capuleto, culminando na tragédia que todos conhecem, a morte do casal. As famílias continuam abastadas, mas agora são donas de monopólios rivais, como uma espécie de máfia, completamente inseridas no jogo do capital.

Um dos pontos que mais chama atenção no longa é a linguagem. O diretor, em uma espécie de jogada, escolhe utilizar a mesma linguagem da peça, um inglês rebuscado e que respeita as construções sintáticas do século XVI. O diretor cria então uma dicotomia, ele atualiza a obra por meio da estética cheia de signos ressignificados, mas preserva a linguagem da peça, o texto da peça apresenta-se na íntegra.

O texto primeiro nunca perde-se, a tradução atualiza-o, mas não pode apagá-lo. Assim, a adaptação existe de forma completa, carregando originalidade própria e, principalmente, existindo em um contexto, um tempo e em uma cultura. 

Referências 




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