Talvez você não saiba, mas antes de ficar mundialmente conhecido por seus conselhos em O Príncipe, Nicolau Maquiavel foi um dramaturgo muito famoso na Itália, na época do Renascimento. Traduziu e adaptou diversas obras do teatro latino, além de ele mesmo ter escrito muitas comédias que foram encenadas nos pátios mais opulentos da nobreza.
Maquiavel possuiu uma boa educação humanística. Estudou latim e sua mente era repleta dos muitos clássicos que compuseram a rica biblioteca de seu pai. Mesmo nos seus primeiros trabalhos, já era possível perceber a característica que mais marcaria todas as suas obras: aquela visão crítica afiada com a qual nos chamaria para observar a sociedade.
Ainda jovem, faz a transcrição da peça latina Eunuco, de Terêncio, bem como, anos mais tarde, a tradução de Andria para a língua vulgar florentina (vale lembrar que naquele tempo ainda não existia o que hoje chamamos de “língua italiana padrão”). O teatro que emergiu no período do Renascimento era muito voltado aos modelos da Antiguidade; na verdade, muitas apresentações eram recitadas em latim e apenas depois em volgare (a língua que era falada e, apesar de vir do latim, se diferia dele por razões regionais). Por causa disso, muitos dramaturgos não apenas se inspiraram nas peças clássicas dos gregos e latinos, como também plagiaram as tramas, alterando apenas detalhes que confeririam à peça uma conexão com o contexto da Itália renascentista.
Foi neste meio que Maquiavel publicou La Sporta, uma imitação da Aulularia, de Plauto. Um tempo mais tarde, essa mesma peça teatral de Maquiavel foi plagiada por outro homem, Giovan Battista Gelli (1498–1563). Entretanto, o que marcou fortemente sua carreira no teatro foi a peça Mandrágora, considerada por muitos como sua obra-prima. Francesco de Sanctis, um grande historiador e crítico literário italiano, descreveu Mandrágora como uma peça que é a base de toda a literatura. Seu mundo é móvel e vívido, dominado pelo acaso, e onde variedade, rapidez e curiosidade habitam em uma constante efusão.
1ª edição de Mandrágora, de Maquiavel |
Trata-se de um trabalho original, que não foi traduzido ou imitado a partir de nenhum autor da Antiguidade, tampouco plagiado de algum contemporâneo seu. Mandrágora é sua única obra na qual recebe reconhecimento ainda vivo. Assim como em seus Discursos e em O Príncipe, essa peça carrega fortemente a presença de uma alegoria política; é um reflexo irônico da sociedade florentina. Mandrágora provoca no leitor um riso amargo e cáustico, no qual as situações em que acontecem nem sempre são livres de reflexão e dúvida. Afinal, seus personagens não são nem bons, nem maus, mas possuem gradações e são completamente voláteis. O caráter do personagem é moldado pela oportunidade.
Na verdade, no mundo de Mandrágora, vencem os espertos. Ela caminha justamente no terreno dúbio do engano, e seu final feliz está, com toda certeza, entre aspas: cada personagem, dentro da peça, recebe seu próprio final feliz, não de acordo com uma realidade universal, mas acreditando, cada um, em sua própria felicidade tal qual lhes aparenta. Não é à toa que Sanctis disse: “Se você conhece bem os personagens, acerta o final da peça”. O mundo em Mandrágora é um grande jogo de apostas, e aquele que melhor jogar, é o vencedor. Também é representado como consequência, cujos princípios estão no espírito ou no caráter; nas forças que o movem. E quem souber calculá-los melhor, ganha.
Escrita em prosa e composta por cinco atos, a peça, em certa medida, é uma versão irônica da trágica história latina de Calímaco e Lucrécia. Entretanto, os personagens apresentados estão em posições diferentes. Começamos com o jovem Calímaco, que decide voltar de Paris para Florença depois de saber relatos da grande beleza de Lucrécia. Enquanto isso, o marido de Lucrécia, o velho Nícia, está convencido da infertilidade de sua esposa e afundado em amargor.
Calímaco e seu parceiro oportunista Ligúrio pensam: como conseguir uma noite com a virtuosa Lucrécia se a moça está casada? Tramam, então, o seguinte plano: inventam uma poção de mandrágora que, segundo eles, deixará Lucrécia grávida. Porém, também fizeram Nícia acreditar que esta poção tinha consequências mortais para o primeiro homem que se deitasse com ela pela primeira vez. A partir de então, toda a peça se sucede em ludíbrios para fazer tanto Nícia quanto Lucrécia aceitarem de bom grado esse plano. O final da peça, entretanto, surpreende a todos: Lucrécia, ao se encontrar com Calímaco, descobre todo o plano e, longe de ficar abismada, percebe que o jovem Calímaco era muito melhor que seu velho marido e decide ela mesma manter com toda a enganação.
As duplas características de seus personagens nos revelam a visão de mundo de Maquiavel, na qual, segundo ele, não há virtude absoluta no homem. Todos, sem exceção, apresentam uma convergência de aspectos. Suas vontades é que determinam quais passos serão tomados e não há, no mundo, um lugar que esteja livre de interesses.
Natalino Sapegno, crítico literário italiano, definiu o autor de Mandrágora como um observador frio e implacável. Ele os observa do alto, sem louvá-los nem condená-los, deixando claro que não acredita numa possibilidade de redenção ou de melhorá-los. O que lhes restava, portanto, era somente a zombaria e o sarcasmo, um riso não livre de ironia e, em certa medida, de reflexão.
Ler Mandrágora, portanto, é acompanhar de perto como os vícios e as virtudes do ser humano se misturam e como algumas pessoas, movidas por seus desejos, traçam caminhos pelo mundo através de uma lábia engenhosa. A habilidade cortante do autor de O Príncipe revelou, com certo humor ácido, a facilidade com que o homem participa de sedutores jogos de interesse, nos quais quem vence nem sempre é o mais virtuoso, mas o que tem a capacidade de mudar seus próprios valores em prol da vitória.
Referências
- Storia della letteratura italiana (Francesco de Sanctis)
- Compendio di storia della letteratura italiana (Natalino Sapegno)
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