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O adultério feminino na literatura oitocentista

Desde a época de obras como A epopeia de Gilgamesh, a temática do adultério perpassa a literatura, assim como faz com as relações interpessoais dos seres humanos. Na literatura grega, por exemplo, através de Homero, observamos os entreveiros de Zeus e Hera, no qual um é sempre adúltero, e a outra, sempre vingativa para com as demais mulheres. Em nossa sociedade, a infidelidade é encarada como um ato grave. 

No entanto, é por volta do século XIX que, com o advento das transmutações sociais e políticas, ocorre a instauração e consolidação de fato da burguesia como ideologia, e os tentáculos de seus princípios e objetivos alcançam a ordem familiar. A partir de então, leis da ordem social, matrimônio e adultério passam a reger o cenário das vidas públicas e privadas. Um novo modelo de núcleo familiar se consagra: o homem torna-se o pai e o chefe da casa, por consequência responsável pelo sustento dos dependentes; a mulher, por outro lado, vira a senhora do lar apenas em caso de ausência do marido, e suas obrigações se estendem pouco além da gestão da casa e dos laços da maternidade, sendo a vida pública quase que inexistente. Essa sociedade de costumes conservadores e patriarcais preza, portanto, por um bom casamento e pela manutenção do lar – nada além disso. 

Ainda que censurada e vista como inferior de acordo com os valores estabelecidos, o comportamento da mulher burguesa era de fundamental importância para a imagem que a família (e, principalmente, o homem) quisesse passar, representando, desse modo, uma simbologia estereotipada da elite colonial a ser alcançada, objetificando delinear as distinções entre a burguesia e os pobres. Mulheres pobres estas que, por outro lado, eram muito mais subjugadas por necessitarem do trabalho – função até então designada somente ao sexo oposto –, pois isto interferiria diretamente na sua condição única e exclusiva de mãe. 

O casamento, portanto, aparecia como uma condição de continuidade ou de ascensão social, permitindo que os bens financeiros se mantivessem (ou, dependendo da classe social de ambos os parceiros, fossem conquistados). Ademais, diante das poucas opções, era, na maioria das vezes, a esperança de fuga do domínio paterno, e a garantia de vantagens econômicas acarretava em um destino insatisfatório e infeliz para os pares femininos.

Dentro destas condições, observamos facilmente o papel do adultério: os valores jurídicos, religiosos e sociais definiram, durante bastante tempo, o ato de infidelidade como crime e pecado. O adultério feminino, mais ainda, era tratado como uma doença repugnante, crime que levaria até a prisão, visto que se tratava de um ato não apenas contra o cônjuge, mas contra toda a estrutura familiar burguesa, contra o papel social que lhes fora concedido – de prezar pelo bem-estar moral de sua família através das regras de boa conduta. Uma mulher infiel na sociedade era uma mancha no nome do marido, e “promiscuidade” vira quase que sinônimo de “anti-burguesia”. 

Disto, passemos ao romance. O romance, enquanto gênero literário, é um produto eminentemente burguês, consolidado no século XVIII, e atingindo seu ápice no século XIX. O Romantismo, enquanto escola literária, tinha como característica a valorização da idealização do real em detrimento da realidade material. A mulher era um dos elementos centrais desse ideal romântico, o que acabava sendo inatingível, uma vez que as expectativas buscadas na figura feminina existiam apenas nos sonhos dos homens. Portanto, em uma sociedade onde o papel feminino foi, durante mais de um século, de omissão, a busca por alegria e satisfação se mostrava libertária. 

O Realismo, por outro lado, assume características contrárias: positivismo, universalismo, evolucionismo, não-objetificação da mulher, heróis problemáticos, passivos de fraquezas. Nas produções deste gênero, observamos as críticas sociais que revolvem todo o comportamento abordado até então, pondo em evidência, através dos romances, as verdades do dia a dia que a burguesia tanto se esforçava para encobrir.

Hester Prynne

Em A letra escarlate, obra do escritor estadunidense Nathaniel Hawthorne, publicada em 1850, lemos o caso de adultério envolvendo Hester Prynne e o pastor Arthur Dimmesdale, que, acreditando que o marido desta havia falecido, tomara-a como sua amante. No entanto, o relacionamento dos dois é desmascarado quando a gravidez de Hester é descoberta, e Pearl passa a ser vista como fruto desse envolvimento pecaminoso. A população de Boston se reúne para assistir à pena de Hester, especialmente as mulheres mais jovens, para que o ocorrido lhes sirva de lição e sejam orientadas a não seguirem o mesmo caminho. Sua pena consiste em ficar exposta no palanque, sendo alvo dos maus olhares da sociedade, ouvindo julgamentos de todos, e é imposto que esta use a letra A (de "adúltera") em escarlate visível em suas vestes. O próprio corpo social feminino, porém, classifica a pena dos magistrados como branda, e que não cumpriria sua função de doutrinação para as demais, o que reflete o comportamento destas que, por serem unicamente mulheres, se veem sujeitas a carregar a culpa e a desonra da infratora – quase como uma mimetização da história de Eva, que trouxe o pecado para os homens, e que todas as mulheres, fruto desta, carregam também consigo a culpa do pecado original. Afinal, a culpa é o tema central de ambas as narrativas, e o pecado e o crime aqui se unem a ponto de serem confundidos, mostrando que Estado e Religião também se confundem nesta sociedade retratada. 

“Afirmavam que o símbolo não era apenas um tecido escarlate, tingido em uma tina comum, mas que de fato continha as chamas do inferno e cintilava sempre que Hester Prynne caminhava pela rua à noite. Cumpre-nos dizer que abrasava tão profundamente o seio de Hester que talvez o rumor contivesse mais verdade do que a nossa incredulidade moderna esteja disposta a admitir.”

Ao cometer adultério, Hester tem sua humanidade destituída de si, bem como sua feminilidade, assim como sua filha, sempre desprezada tal qual a mãe. Assim, a obra que se passa no século XVII traz à tona uma versão mais brutal da cena do adultério feminino. Convencida de que deveria cumprir sua sentença, Hester prefere permanecer em Boston, ao invés de procurar levar uma vida longe de tudo o que acontecera ali.

Hester Prynne e Pearl, por Mary Hallock Foote (1878)

Emma Bovary

Madame Bovary, ao criticar os “costumes de província” da vida burguesa da sociedade, fez com que Gustave Flaubert, seu autor, fosse processado em 1857 por ofensa à moral pública e ofensa moral à religião, dadas as questões moralistas envolvendo o adultério e o suicídio presentes em sua obra. A ofensa à moral pública está contida nas imagens lascivas do romance, enquanto a ofensa religiosa se detém nas imagens voluptuosas relacionadas ao sagrado, sendo a obra, como um todo, uma “glorificação do adultério”. 

Madame Bovary marca, acima de tudo, o movimento de passagem de um novo estilo literário: o Realismo. Com sua obra, há o desmonte do ideal romântico acerca da figura feminina. Agora não mais idealizada, a personagem principal, Emma, passa a ser uma mulher comum e medíocre, buscando ressaltar traços como o egoísmo, a mentira, a astúcia, o assassinato e o adultério – especialmente o feminino. 

Em um panorama aparentemente simples, encontramos o casal Bovary em diferentes localidades dentro do relacionamento: ele, feliz como não se via há anos, verdadeiramente apaixonado; ela, infeliz desde sua lua de mel. Emma, vinda de um mundo de fantasias românticas, acreditava que amava Charles, e que, ao casarem, sentiria a felicidade plena tão almejada desde criança – mas isso não aconteceu. A partir disso, buscando compreender os significados da felicidade e do amor, a protagonista sente o tédio vivaz que é a companhia de seu marido. 

“Ela desejava saber o real significado das palavras ‘felicidade’, ‘paixão’, ‘exaltação’, que lhe pareciam tão belas nos livros.”

Primeiro, Emma se envolve com Rodolphe Boulanger, um rico proprietário de terras. Depois, León Dupuis, jovem estudante de direito, seduz a personagem. Com seus relacionamentos extraconjugais, Emma passa a ter gastos exorbitantes, especialmente com presentes para Rodolphe, acreditando que assim o fará feliz, e, portanto, levará seu tédio embora. No entanto, seus planos não são efetivados, e o jovem parte, deixando Emma adoentada e mergulhada em dívidas. Atônita diante de sua situação, ela toma o arsênico e morre lenta e dolorosamente.

Emma Bovary e Rodolphe, por Carlo Chessa e Alfred de Richermont (1905)

Para Flaubert, a burguesia era seu vilão coletivo. Ao proferir, durante o julgamento do livro, “Madame Bovary sou eu”, Flaubert teve como objetivo diminuir o escândalo e as especulações envolvendo sua história, levando a crer que Emma se tratava de si mesmo, que era oriunda apenas de sua imaginação artística. Porém, não é difícil perceber que tudo se tratava de uma dura crítica à sociedade francesa de sua época; afinal, quem lia Madame Bovary? O público-alvo do romance acabou sendo as jovens, geralmente mulheres casadas. A transgressão aparece aqui camuflada pela provocação que a obra causou: curiosidade, escândalo, abalo da ordem feminina social, do matrimônio e da liberdade. 

O impasse de Emma Bovary, todavia, não está intrinsecamente ligado à Charles. Muito de seu comportamento é reflexo não das falhas dos demais, – Charles, Léon, Rodolphe –, mas sim de um vazio existencial dentro de si. Observamos em Emma uma personalidade sonhadora, materialista e supérflua, que projeta no outro uma idealização inalcançável, e a busca por algo que não é tangível torna-se demasiado frustrante. 

“Emma Bovary é inteligente, sensível, comparativamente bem-educada, mas tem uma mente rasa: seu encanto, sua beleza e seu refinamento não impedem que possua um veio fatal de filistinismo. Seus devaneios extravagantes não a eximem de ser, no fundo, uma burguesa do interior, aferrando-se às convenções ou cometendo uma ou outra violação convencional das regras convencionais, sendo o adultério um modo bem convencional de escapar do convencional.”

(Vladimir Nabokov, Lições de literatura)

Emma comete suicídio, uma das formas de reprodução baseada em um imaginário; tirar a própria vida é arquétipo da visão dos romancistas desde o século XVIII – vejamos o fim de Werther, por exemplo, e o impacto que teve entre os jovens alemães. Com o suicídio, Emma por fim alcança o ideal vivido pelas heroínas de seus romances, reproduzindo seu enredo. 

A “madame” Bovary não subverte as ordens do patriarcado; ela as articula, para que, numa inversão de papéis, ela mesma se apresente como opressora, sem, portanto, lutar contra a opressão. Hoje, “bovarismo” denomina a patologia de insatisfação com a própria existência.

Anna Kariênina

“Agora tudo mudara. Sua paixão por Vrónski é um clarão de luz branca que faz o mundo anterior parecer uma paisagem morta num planeta morto.”

(Vladimir Nabokov, Lições de literatura russa)

O adultério também é um dos temas centrais da obra Anna Kariênina, lançada em 1877, pelo consagrado autor russo Liev Tolstói. Sob o mesmo prisma, observamos o desenrolar de dois personagens adúlteros: a própria Anna e seu irmão, Oblónski. Aqui, ficam claras as diferenças socioculturais fomentadas pela burguesia que ambos os personagens perpassam com seus relacionamentos extraconjugais. 

“Do lado dos homens, a morte [...] toma a forma do assassínio. [...] Quanto às mulheres, apesar de serem eventualmente mortas, é muito maior o número daquelas que recorrem ao suicídio como a única saída de uma desgraça extrema.”

(Maneiras trágicas de matar uma mulher, Nicole Loraux)

Anna Kariênina é uma vítima do patriarcado. Se a obra for analisada sob a perspectiva de um sermão moral, então a misoginia e o machismo do autor entram em evidência ao dar o trágico fim para a personagem – ou melhor, ao ver no suicídio de Anna uma punição, até mesmo redenção, de seus atos imorais. 

No entanto, Vladimir Nabokov defende que “Anna não foi punida por seu pecado, nem por violar as convenções de uma sociedade”. Pelo contrário, o autor afirma que a “mensagem moral” transmitida por Tolstói se dá ao fato de que a união de Anna e Vrónski se fundamenta apenas no amor carnal, e não na concepção metafísica do amor enquanto sacrifício. “As normas da sociedade são temporárias; o que interessa a Tolstói são as eternas exigências da moralidade”, escreve o autor na sua obra Lições de literatura russa, publicada em 1980.

Anna Kariênina e Vronsky, por Elmer Boyd Smith (1899)

Nabokov conta, ainda, que o personagem Liévin é o que mais se aproxima da personalidade do autor, e que, sendo inspirado nele, portanto, é através de sua relação com Kitty que o amor “autêntico e cristão” triunfa, retratando as morais de Tolstói. A impressão que fica é a ideia de que o amor romântico, enquanto amor verdadeiro, é uma ideologia, uma herança dos ideais românticos em nosso imaginário.

Há ainda um outro personagem que é envolvido em adultérios, como já comentamos. Oblónski, logo no início da narrativa, é perdoado por Dolly (através de uma intervenção da própria Anna), tendo em vista o zelo por sua família. Sobre ele, Nabokov pontua que seu “estado de espírito infiel é uma paródia grotesca do destino de sua irmã”. Em uma dicotomia, Oblónski já não se sente mais satisfeito em seu casamento, antes mesmo de consumar a traição. Dolly, sua esposa, já não era mais por ele amada, e seu marido acreditava que isso fosse natural; Anna, por outro lado, se sente atraída por Vrónski sabendo que aquele sentimento não deveria existir, tendo plena consciência de que não é correto: da atração, nasce o inerente sentimento de culpa que vai delinear o caminho da personagem. 

A culpa de Anna em relação à Karenin, seu marido, e Serioja, seu filho, somada ao medo de não ser mais amada por Vrónski, faz com que ela sucumba a acessos de ciúmes e de pensamentos negativos; do mesmo modo, a tentativa de causar em Vrónski esse mesmo sentimento de culpa por não a amar mais faz com que Anna cometa suicídio, atirando-se em frente ao simbólico trem. A falta de culpa de Oblónski, por outro lado, se justifica, dentro da prosa, pela falta do amor romântico, da negligência de sua mulher e filhos. O adultério cometido pelo homem, portanto, é visto com maior estima, enquanto a mulher devia ser punida. 

“Ela escandaliza a sociedade hipócrita não tanto por seu caso de amor, mas por desafiar abertamente as convenções. [...] Enquanto Anna suporta o peso da ira da sociedade, é desprezada, insultada e posta no ostracismo, Vrónski, como homem, [...] não é atingido pelo escândalo: recebe convites, vai a lugares, se encontra com os velhos amigos, é apresentado a mulheres aparentemente decentes que não ficariam um segundo na mesma sala com a desonrada Anna.”

(Vladimir Nabokov, Lições de literatura russa)

Sras. Emma e Anna

Ambos Madame Bovary e Anna Kariênina trazem consigo elementos da desmitificação dos padrões da sociedade burguesa oitocentista: a quebra da harmonia do laço matrimonial pelo adultério; mulheres que antes recebiam prestígio social são encaradas como marginalizadas, e que, por fim, encontram saída dessa vida a qual elas já não mais pertencem no suicídio.

À medida que Emma Bovary é representada pelo vazio que a preenche, Anna Kariênina é representada pela tomada de uma paixão avassaladora. Para Emma, os amantes significam a representação do amor romântico, da paixão arrebatadora que tanto lera enquanto adolescente. Inicialmente, o casamento parece ser uma solução para essa busca, deixar de ser filha para então ser esposa. No entanto, o tédio também perpassa a situação conjugal.

Se, por um lado, na obra de Flaubert as personagens manifestam a tolice e a imaturidade da vida sem brilho, na obra de Tolstói, as figuras da narrativa adquirem a consciência do contexto em que se inserem, de como os acontecimentos as afetam e de suas reais falhas e aspirações. O verdadeiro elemento trágico de Anna Kariênina se estabelece na sua infidelidade para com as normas morais da sociedade, na sua busca por individualidade. Com o suicídio, Anna atinge essa busca, deixando para trás a vida de esposa e de mãe para viver a paixão de Vrónski. 

“Ela [Anna] não é Emma Bovary, uma sonhadora de província, uma rapariga nostálgica que se esgueira junto a muros em ruínas para chegar à cama de amantes substituíveis. Anna dá a Vrónski toda a sua vida, consente em se separar do filhinho adorado — apesar da agonia que lhe causa não o ver — e vai viver com ele, de início no exterior, na Itália, e depois em sua propriedade na Rússia Central, conquanto esse romance ‘aberto’ faça com que a rotulem como uma mulher imoral aos olhos de seu círculo também imoral. (De certo modo, pode-se dizer que ela realizou o sonho de Emma de escapar com Rodolphe, mas Emma não teria sentido a dor de abandonar o filho, nem havia complicação moral alguma no seu caso.)”

(Vladimir Nabokov, Lições de literatura russa)

Torna-se observável, portanto, que, em Madame Bovary, o trágico se relaciona intimamente com a questão da configuração social; a tragédia da protagonista, expressa em seu suicídio, é a manifestação de uma cisão interna à própria configuração social representada na narrativa, não a afirmação de uma individualidade contraposta a esta ordem. Em Anna Kariênina, o trágico faz referência à individualidade, ensejada, obviamente, pela configuração social.

Referências




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Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

Comentários

  1. Excelente texto, Ana! Lembrei de como nos primórdios do romance inglês era imprescindível que a protagonista transgressora fosse punida com a morte para servir de exemplo social. Muito legal perceber o quanto a literatura acompanha ou quebra com os padrões sociais, né? Um beijoooo

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