Dante Alighieri revolucionou a literatura ao abandonar o latim e usar a "língua vulgar" em seus livros. Conhecido como o "pai do italiano", nasceu em 1265 e desafiou as regras ao escrever A Divina Comédia em florentino. Apenas "A Comédia", quando escreveu, viria a se tornar a base da língua italiana atual.
No século XIII, o latim era a regra para a escrita de livros, tanto por ser considerada a "língua franca" quanto pela restrição de acesso à leitura. Apenas uma pequena parcela da população, considerada superior em comparação aos outros, tinha acesso a livros. Mas Alighieri queria que o máximo de pessoas pudesse ler sua obra, para que pudessem compreender e repassar o conhecimento de suas ideias, majoritariamente religiosas.
Pode-se, então, distinguir a propensa generosidade em três coisas, as quais o vulgar proporciona e o latim não teria proporcionado. A primeira é doar a muitos, a segunda é doar coisas úteis e a terceira é doar algo sem que tenha sido solicitado.
Não há dúvidas sobre a importância de A Divina Comédia desde que foi "lançada". Considerando a magnitude do conteúdo do livro, foi Giovanni Boccaccio, autor de O Decamerão, quem deu a ideia de colocar o adjetivo "Divina" no título da obra. Boccaccio era seguidor do autor conterrâneo e escreveu uma breve biografia sobre a vida de Dante. Além disso, A Divina Comédia inspirou a própria Igreja (especialmente em suas descrições do inferno), pintores como Sandro Botticelli e Salvador Dalí e, depois de séculos, ainda influencia a cultura contemporânea, inspirando videogames como Dante's Inferno e Resident Evil, por exemplo.
Dante e Virgílio no inferno, de William Bouguereau (1850) |
Ao escrever sua magnum opus na língua vulgar, como o próprio autor chamava tudo o que não fosse o latim, Dante rompeu com o status quo. Outros escritores seguiram seus passos, como Boccaccio e Francesco Petrarca, contribuindo para um "movimento intelectual e artístico" de valorização da língua vulgar em detrimento do latim, a "língua dos anjos".
Três são as razões que brevemente isso justificam e que me moveram a elegê-lo em detrimento do latim: uma é movida pela cautela contra uma inconveniente conduta; a outra pela propensão à generosidade; a terceira, pelo amor natural à própria língua.
Dante não só queria que mais pessoas pudessem compreender sua obra, ele também tinha orgulho de sua língua materna. Isso foi algo revolucionário para a literatura e que, anos após, serviria como base para que os autores do ocidente escolhessem escrever seus livros em idioma nativo. As implicações são óbvias: maior acesso à literatura e a possibilidade de mais livros, mais escritores, mais pessoas contando suas histórias e criando uma rica cultura literária.
O latim era a língua dos eclesiásticos, da aristocracia e dos estudiosos. Como Dante diz em Convívio (obra escrita durante seu exílio entre 1304 e 1307), era a língua mais próxima de Deus. Porém, nem todos (leia-se quase ninguém) tinham acesso ao aprendizado do latim e, portanto, não tinham acesso aos livros escritos na época. Resumidamente, apenas pessoas "escolhidas" tinham acesso à literatura. Os pobres, os civis ou a plebe eram todos indignos, e pessoas indignas não sabiam e nem poderiam aprender a ler. É importante notar que a maior parte da literatura do século XIII era religiosa, e mesmo os livros considerados não religiosos ainda envolviam Deus e a religião.
No entanto, Dante, um fervoroso cristão e político, viu hipocrisia nisso. Os indignos ainda possuíam fé, mas como eles se tornariam pessoas melhores, como eles seguiriam os passos corretos do caminho do céu se eles nem faziam ideia de como fazer isso? Se a eles não era dado o acesso ao conhecimento? Para o autor italiano, o conhecimento científico e religioso eram unidos e todos tinham fome dele. A ciência e a religião estavam juntas, não separadas. Essa junção era o alimento da alma pela qual todo homem estava faminto. Entretanto, mesmo sendo progressista nessa visão, nem todos poderiam compartilhar desse conhecimento que ele pretendia dividir. Os "doentes da alma", ou seja, as pessoas consideradas ruins, não eram benquistas no seu "banquete de sabedoria". Apenas as pessoas impedidas de obter conhecimento pelos deveres da vida ou as preguiçosas poderiam se servir desse alimento.
Assim como diz o Filósofo, no início da Primeira Filosofia, todos os homens por natureza desejam saber. A razão de que assim pode ser, e é, porque todas as coisas movidas pela providência da primeira natureza tendem à sua própria perfeição; desse modo, uma vez que a ciência é a última perfeição da nossa alma, na qual está a nossa última felicidade, estamos todos sujeitos, por natureza, a desejá-la.
Conforme o Convívio, os cuidados familiar e civil eram preocupações da maioria dos homens e, assim, não poderiam se dar ao luxo da meditação e alcance do conhecimento. Por isso, nesse livro, dividido em quatro tratados (inicialmente eram onze), Dante quis trazer o conhecimento para essas pessoas. Se aproximando da ciência e de Deus, elas poderiam escolher o caminho do bem.
Dante, por Agnolo Bronzino (1530) |
A Divina Comédia é sobre uma pessoa (o próprio autor) que está afastada do caminho correto. Dessa forma, ela conhece o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, e testemunha o que acontece com as pessoas que se encontram nesses planos. Ela então decide trilhar o caminho do cristianismo e da pureza. Ainda assim, o autor sabia que esse conhecimento era apenas uma pequena parcela, pois
o latim é perpétuo e incorruptível, e o vulgar é instável e corruptível. (...) Portanto, a língua mais bela é aquela em que mais se correspondem devidamente os vocábulos; e os vocábulos mais se correspondem devidamente em latim do que em vulgar, porque o vulgar depende do uso, e o latim, da arte. Assim, este é reconhecido como mais belo, mais virtuoso e mais nobre.
Pelo mesmo motivo, Alighieri refere-se ao conhecimento que ele passa na linguagem vulgar como "pão de grãos", enquanto o latim é o "pão de trigo".
Mas que venha para cá quem permaneceu na fome humana pelos cuidados familiar ou civil, e se sente a uma mesa com outros igualmente impedidos; aos seus pés, ponham-se todos aqueles que se acomodaram por preguiça, pois não são dignos de mais alto assento; e ambos se sirvam da minha comida e do pão que lhes fará degustá-la e digeri-la.
Apesar da maior parte das ideias religiosas de Dante estarem ultrapassadas (e serem absurdas), o fato de que ele queria compartilhar conhecimento em uma época tão contrária a isso é impressionante e resultou em uma mudança que fez com que ler em nossa própria língua se tornasse algo corriqueiro, algo tão natural que é até estranho pensar que, em algum momento, as coisas não eram assim.
Arte em destaque: Caroline Cecin
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