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O Piano, Circe e a mulher silenciada


O Piano é um filme de 1993 escrito e dirigido por Jane Campion. Ainda que Campion já tivesse certo reconhecimento por obras anteriores, foi a partir desse filme e suas diversas indicações ao Oscar que a diretora consagrou-se como uma das maiores cineastas contemporâneas, sua obra entrando, inclusive, como número um na lista de 100 melhores filmes dirigidos por mulheres, da BBC. 

Isso não é à toa: além do excelente trabalho de câmera, roteiro impecável e dominação da arte de dirigir atores, Jane Campion nos conta uma história que, através de muitas metáforas, dialoga com a condição da mulher na sociedade. Sua protagonista parece, a princípio, alguém comum: uma mulher do século XIX, aparentemente uma jovem viúva, já que veste o luto, com uma filha de cerca de nove anos de idade. Uma mulher dada em casamento através de um contrato que seu pai fizera - pai esse ausente, de quem só sabemos por poucas menções - com um explorador de terras nativas na Nova Zelândia, um britânico vivendo em meio a população indígena local. Em simples resumo, a história não é tão diferente de tantas outras que conhecemos sobre mulheres do período vitoriano, que eram jogadas da casa do pai para a casa do marido, mesmo que não o conhecesse, numa transação de casamento. Mas é o olhar de Jane Campion, o olhar perscrutador de uma mulher, que nos conta a narrativa de outra forma, uma forma que pode até mesmo ser chamada de insólita para quem não está acostumado a filmes de mulheres que falam sobre mulheres. A delicadeza esperada de uma jovem mulher da sociedade vitoriana não faz parte de O Piano. O que encontramos lá é a força intacta de alguém que sabe que possui muitos desafios no mundo, mas que está disposta a encarar cada um deles. 

Uma das inspirações mais claras do filme é o conto de fadas O Barba Azul, inclusive representado numa peça, com fantoches, durante o mesmo. Contudo, ainda que essa seja uma inspiração clara e óbvia, não é a única. 

Nosso subconsciente trabalha com narrativas. Os mitos, sejam eles de quaisquer regiões, serviram, ao longo dos séculos, como forma de entretenimento e também de compreensão do mundo e de nós mesmos. A imagem de um grupo de pessoas sentada em volta de uma fogueira ouvindo histórias sobre Atena pode parecer romântica e distante, mas não é necessariamente uma coisa ou outra. Nós também temos nossos mitos, temos histórias e pessoas a quem reverenciamos, em maior ou menor grau. Somos criaturas de histórias, e encontrar no outro, mesmo que fictício, um par que corresponde a nossos temores, dores e desafios possui um efeito catártico. Aí há a sensação de não estar sozinho no mundo, de pertencer a algum lugar. Talvez por isso contemos histórias. 

Seja de forma consciente ou não, O Piano nos fala sobre alguns arquétipos da mulher ao longo da história. Dentre eles, a mulher cujo poder, por estar "corrompido" - longe do ideal da sociedade -, representa uma ameaça e, em consequência disso, é mandada para longe. Claro que essas transações sempre revelam um micropoder familiar: é mandada, sim, para longe, mas há vantagem para a parte masculina que a despacha. Se livrar da vergonha e do perigo e ainda ganhar, seja alianças, seja financeiramente, em cima disso era a lei. Não é diferente do que acontece com Ada (Holly Hunter), a personagem principal do filme. Mas também não difere muito de um dos mitos mais antigos da palavra escrita: Circe, a bruxa de Odisseia

Em muitos aspectos, O Piano pode ser lido como uma releitura de Circe. Antes de Madeline Miller e seu livro famoso, Campion explorava os recônditos de uma mulher marcada pela tragédia, apegada a apenas um dom: o talento para a música, seu piano. A protagonista de Campion é muda porque lhe tiraram a voz. Nada acontecera aparentemente e ninguém realmente compreendia por que não podia falar. Mas fora silenciada desde o princípio. Uma filha bastarda, fora do casamento, lhe acompanha a uma jornada que a leva até uma ilha remota, para onde seu pai a mandou após uma negociação que lhe traria benefícios. Lá ela conhece homens, violentos e gentis, não adaptando-se totalmente ao local e à sua solidão enquanto não encontra alguém que consegue enxergá-la como mais do que uma mulher enjeitada por sua família e pela sociedade, mais do que uma talentosa pianista, mas uma mulher, um ser humano com defeitos e qualidades, não a megera que acreditavam que fosse. Sua fúria é conhecida de todos, e poucos são os que têm acesso a seus carinhos. 

Se olhamos para a história de Circe ao pensar na protagonista de O Piano não é à toa: mesmo que Jane Campion não tenha se inspirado diretamente nela, não é difícil pensar nas vidas de tantas mulheres que foram condenadas a passar a eternidade numa ilha, emudecidas por seus pais, suas famílias, a sociedade - ainda que, ou justamente por, tivessem um dom único, que as distinguisse. Homens escreveram Circe da maneira mais torpe possível, vestindo-a com roupas de vilã. Madeline Miller foi por outra abordagem, enxergando nela o reflexo de tantas mulheres subjugadas por seus pais, não importa o quão inteligentes e repletas de coisas boas fossem. Suas vontades não eram ouvidas jamais. Então, elas se calaram. É uma história universal, e o mito de Circe, a terrível bruxa de Homero, é perpétuo justamente por isso. 

Assim como Ada, Circe foi mandada para uma ilha estranha por seu pai, num acordo político. Assim como Ada, a voz de Circe sempre foi motivo de zombaria - sua falta de força, de tom, de uma voz potente. Isso é metafórico e literal: ambas as protagonistas não têm voz, e só a encontram quando também percebem onde estão suas palavras de poder e centram-se em seus objetivos. Em Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos, Martha Robles afirma que:

Diversamente aos costumes de nosso tempo, a Antiguidade se caracteriza por figuras másculas que soluçam, pranteiam e derramam lágrimas abundantes quase que por qualquer motivo. É a mulher, ao contrário, que domina suas emoções, conserva sua firmeza perante a dor ou, em seu desassossego, pode gritar e se indignar, mas dificilmente se abandona aos extremos sentimentais em que incorrem os homens, sejam eles guerreiros, deuses ou reis.

Os deuses podem ser muita coisa. Para uns, uma religião. Para outros, histórias fascinantes. E há aqueles que buscam entender o mundo através de seus mitos, de suas jornadas. Se entendemos algo do mito de Circe - e da história contada por Jane Campion - é que a libertação de uma mulher só pode advir de si mesma. Nem o mais bem-intencionado homem (cujas intenções sempre devem ser postas numa balança) pode fazer algo por uma mulher que precisa se conhecer para se libertar. Não é o poder do amor, não é seu dom, não são suas maldades ou conquistas que a definem, mas ela mesma precisa definir a si própria. É um desafio, e um que todas precisamos enfrentar no mundo, de uma maneira ou de outra. O olhar masculino pode nos enxergar como vilãs, mas a complexidade de nossas ações conta outra história - e que história é essa, cabe a nós escrever. 

Talvez Madeline Miller, ao escrever Circe, tenha se inspirado na história de Ada e seu piano. Talvez não. Se fato ou percepção desta autora, tanto faz. Porque o que realmente importa é que tais padrões - de mulheres sendo silenciadas, jogadas em lugares distantes, e mesmo assim encontrando sua força, seu poder e seu propósito através de jornadas de solidão - são atemporais. Grécia Antiga ou Nova Zelândia no século XIX - ou até mesmo aqui, no nosso Brasil do século XXI -, as vidas das mulheres seguem sendo utilizadas como joguetes nas mãos de homens que tentam dominar os nossos corpos, já que não podem conter nossas mentes. Se somos diferentes, somos ameaçadoras. E se perturbamos a ordem, devemos ser caladas. 

Aí reside a força de O Piano, de Circe, dos mitos de mulheres e da feitura de arte pelas mãos de mulheres. Olharmos para suas vidas, ainda que fictícias, nos faz sentir intuitivamente os paralelos que existem com nossos próprios desafios. São narrativas que nos acompanham, mitos que se repetem ao longo dos séculos. Embora haja quem enxergue algumas dessas histórias como histórias de amor, já que certas protagonistas acabam com uma pessoa como companhia romântica, em geral, as histórias que acompanham o arquétipo da mulher silenciada são sobre autoconhecimento e autonomia. Quem é Ada? Quem é Circe? São todas mulheres cujas histórias ouvimos ao longo do tempo, seja pela literatura ou pela escrita, e que nos inspiram a alçar novos voos quando somos jogadas em lugares estranhos e inóspitos, quando tentam nos tirar a voz. 

Referências 

Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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