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Sade: entre o divino e o profano

"Eu só me dirijo às pessoas capazes de me entender e estas me lerão sem perigo."

(Marquês de Sade)

A obra do Marquês de Sade sempre dividiu opiniões: renegado, julgado e encarcerado por seus contemporâneos, o autor foi incompreendido por aqueles com quem partilhava o conturbado século XVIII francês. Passou completamente esquecido durante o século XIX. Redescoberto, serviu de inspiração para muitos autores e foi divinizado pelos surrealistas no século XX, o que não lhe privou de ser novamente julgado. Estaria o século XXI finalmente preparado para o filósofo da alcova?

O divino Marquês

Donatien Alphonse François de Sade foi um membro da aristocracia francesa, que por certo tempo levou uma vida sem grandes excessos. Nascido em meados do século XVIII, foi a partir de 1763 (mesmo ano de seu casamento) que começou a sua fama, ao ser preso por 15 dias sob a acusação de extrema libertinagem. Dentre os seus mais escandalosos atos, temos a prática da sodomia, que lhe rendeu uma condenação de morte à revelia, a acusação de agressão pela prostituta Rose Keller e o caso dos bombons cantaridados, no qual foi acusado de tentar envenenar integrantes de uma orgia, sendo também condenado à morte e queimado por efígie.

Além dos escândalos referentes à sua sexualidade, outro grande problema era seu posicionamento político em um dos períodos mais conturbados de seu país: a Revolução Francesa. Para mais, o autor estava preso na Bastilha durante o início da Revolução e muito se diz de sua ligação com a tomada e queda da prisão francesa ao gritar, por meio de canos, que presos eram ali estrangulados, acirrando ainda mais os ânimos da população, mas, além do aspecto fantasioso do gesto, ele já não estava mais na Bastilha no momento da queda.

Em seu estudo sobre Sade, presente no livro A literatura e o mal, o teórico francês Georges Bataille reproduz parte de uma correspondência do Marquês, de 1791, no qual o fidalgo deixa explícita a sua opinião controversa sobre a política nacional:

"Sou antijacobino, odeio-os mortalmente, adoro o rei, mas detesto os antigos abusos; amo uma infinidade de artigos da constituição, outros me revoltam, quero que devolvam à nobreza seu lustre, porque tirá-lo dela não leva a nada; quero que o rei seja chefe da nação; não quero uma assembleia nacional, mas duas câmaras, como na Inglaterra, o que dá ao rei uma autoridade mitigada, equilibrada pelo concurso de uma nação necessariamente dividida em duas ordens, a terceira é inútil, não quero saber dela. Eis minha profissão de fé. O que sou atualmente? Aristocrata ou democrata? Vós me direis, por favor..., pois, de minha parte, não faço ideia."
Por isso é tão necessário ressaltar que, perseguido pelo Antigo Regime, pelos revolucionários e até mesmo por Napoleão Bonaparte, suas prisões se devem mais aos seus pareceres e textos políticos do que às suas condutas morais.

Os 120 dias de Sodoma

Tendo passado um bom tempo de sua vida enclausurado, foi na prisão que escreveu parte de suas obras, entre elas Os 120 dias de Sodoma. Sem ter acesso ao material necessário para produzir seus textos, Sade escrevia em pequenos pedaços de papéis que ia emendando, resultando, assim, num rolo de 12 metros de comprimento. O manuscrito sumiu durante a queda da Bastilha e só foi reencontrado no início do século XX, na Alemanha, retornando definitivamente para a Biblioteca Nacional da França somente em 2014, depois de arrecadados oito milhões de euros para sua aquisição.

Considerado um dos livros mais controversos do autor, a obra foi escrita em 37 dias, tendo seu início no dia 22 de outubro de 1785. Já em seu primeiro parágrafo, Sade contextualiza o momento em que se passa a história e o meio do qual surgiram esses quatro protagonistas e suas riquezas, deixando entrever sua crítica à política e às autoridades francesas:

"As guerras consideráveis que Luís XIV travou durante seu reinado, espoliando as finanças do Estado e os recursos do povo, enriqueceram secretamente uma multidão de sanguessugas sempre atenta às calamidades públicas, que provocam e nunca aplacam, para tirar proveito com maiores vantagens. O fim daquele reinado, por sinal tão sublime, talvez tenha sido uma das épocas do império francês em que mais surgiram dessas fortunas obscuras que não resplandecem senão por um luxo e devassidões tão nefastas quanto elas."
Temos, em Os 120 dias de Sodoma, quatro homens ricos que decidem reunir 46 pessoas para terríveis orgias, por quatro meses, em um afastado castelo; também participam do grupo quatro prostitutas que deverão narrar cinco paixões diferentes por dia, totalizando um catálogo com 598 paixões devassas. 

Edição de 1904

Os personagens dos quatro senhores libertinos reuniam os grupos que dominavam a França, bem como seus vícios, sendo eles: o Duque de Blangis, “que aos dezoito anos já era dono de uma fortuna imensa, a qual só fez aumentar em razão de suas extorsões fiscais”; seu irmão, o Bispo de Blangis, que compartilhava com o duque a mesma “negrura da alma, assim como o pendor para o crime, o desprezo pela religião, o ateísmo, a velhacaria”; o Presidente de Curval, “que levara uma vida muito libertina, todos os tipos de desregramentos eram-lhe familiares e seus próximos desconfiavam muito que sua imensa fortuna se devia a dois ou três assassinatos execráveis”; e, o banqueiro Durcet, que “quando em sociedade, se comporta muito bem, embora sua cabeça seja no mínimo tão depravada quanto a de seus confrades”.

Dentre as inúmeras paixões que ali serão narradas, Sade expõe seu leitor à pedofilia, ao incesto, à coprofagia, à sodomia e a numerosos assassinatos absurdamente cruéis, mas não sem antes alertá-lo: “Agora, amigo leitor, prepara o teu coração e teu espírito para o relato mais impuro já feito desde que o mundo existe”

Como dito, o manuscrito de Os 120 dias de Sodoma foi perdido, mas outros livros e textos, como Justine e Juliette, também expunham a controversa filosofia sadeana, circulando de forma clandestina. Incompreendida, a obra de Sade foi renegada e esquecida. Redescoberta tempos depois, a lembrança do autor, graças aos seus livros e somado com o desconhecimento de sua vida, desdobrou-se em dois caminhos: na psiquiatria, resultou em termos como "sadismo", termo médico para uma patologia psiquiátrica, e "sádico"; nas artes, serviu de fonte e incentivo para poetas malditos e para o surrealismo, como Pierre Klossowski, Maurice Blanchot, Algernon Charles Swinburne, Charles Baudelaire, Guillaume Apollinaire, André Breton, Paul Éluard e Friedrich Nietzsche. Porém, não foram só os surrealistas que se interessaram pelos escritos do divino Marquês.

Também no século XX, dois grandes autores e estudiosos franceses tentaram, cada um à sua maneira, compreender o complexo sistema literário criado por Sade. Em 1955, Simone de Beauvoir lança um ensaio intitulado “Deve-se queimar Sade?”; Georges Bataille publica, em 1957, o já mencionado A literatura e o mal, no qual dedica um capítulo a Sade e, ainda no mesmo ano, outros dois estudos sobre o autor figuram em seu livro O erotismo. Talvez seja correto afirmar que ambos tiveram o mesmo intuito: desendeusar a imagem de Marquês de Sade, sem profaná-la.

A defesa, por Simone de Beauvoir e Georges Bataille

Em “Deve-se queimar Sade?”, Simone de Beauvoir estende-se mais pela nebulosa vida do Marquês, mas com consciência das deturpações históricas que esta sofreu, e pretende mostrar como ele, a partir e de acordo com sua vida, transformou o erotismo e a violência, representando a sexualidade como um fato social em vez de biológico. A autora argumenta que a crueldade tem um sentido complexo na obra de Sade e que uma das ações mais extremas de seus textos, o assassinato, seria “a reivindicação exasperada de uma liberdade sem lei e sem temor”. Podemos observar, em um recado do narrador de Os 120 dias de Sodoma, parte dessa filosofia que relaciona gozo com o crime:

"[...] nenhum libertino minimamente ancorado no vício ignora o império do assassinato sobre os sentidos e o quanto este determina voluptuosamente um esporro. Eis uma verdade que o leitor haverá de guardar em mente antes de empreender a leitura de uma obra que busca tanto desenvolver esse sistema."
Entretanto, Beauvoir explica que o autor não só tinha horror ao assassinato político, mas também acreditava que, ao ser constitucionalizado na França, “passa a ser apenas a odiosa expressão de princípios abstratos: torna-se desumano”. Como presidente da Sections des Piques, Sade negava-se a prejudicar os réus, e sua conduta custou-lhe novamente a liberdade, agora sob a alegação de moderantismo. O autor repudiava tão veementemente a guilhotina que chegou a declarar: “Minha detenção nacional, a guilhotina diante dos olhos, tem me causado mais dano que o que me fizeram todas as bastilhas imagináveis”.

Beauvoir explica outros grandes vícios presentes na obra sadeana, como a coprofilia, que assume a função da lubricidade e, uma vez que esta se excederia com a sujeira, mais cenas escatológicas o autor concedia aos seus personagens. Também aponta para a importância que o autor dá à feiura, considerando a beleza simples demais, logo, indiferente ao corpo e à consciência. N’Os 120 dias de Sodoma, o narrador desenvolve melhor a atração pela fealdade, tão cara aos libertinos:

"Por sinal, a beleza é coisa simples, a fealdade é que é coisa extraordinária e todas as imaginações ardentes sempre preferem, sem dúvida, uma coisa extraordinária em termos de lubricidade a uma coisa simples. A beleza, o frescor nunca impressionam senão em sentido simples; a fealdade, a degradação desferem um golpe bem mais firme, a comoção é bem mais forte, a agitação deve, portanto, ser mais viva."
Ademais, Simone de Beauvoir destaca que apesar de toda a crueldade presente em sua obra, não é através dela que o erotismo de Sade se realiza: encarcerado, sozinho, sua realização se dá pela literatura. Portanto, na prisão, a literatura será sua válvula de escape, o único caminho possível para sua imaginação. Escrevendo desenfreadamente, ela diz, 
"a literatura permite a Sade desencadear e fixar os seus sonhos e também sobrepujar as contradições implícitas em qualquer sistema demoníaco, mais do que isso ela própria é um ato demoníaco, pois que exibe mais agressivamente fantasias criminosas; é isso que lhe empresta seu valor incomparável."
A autora encerra seu estudo afirmando que Sade, com seu sistema literário, expôs seus leitores, com muito incômodo, à verdadeira “relação do homem com o homem”.

Dois anos depois do texto de Beauvoir, o teórico francês Georges Bataille, publicou três estudos sobre a obra de Sade. Em “O homem soberano de Sade”, Bataille utiliza das palavras de Maurice Blanchot para explicar a moral sadeana:

"[a moral] está fundada no fato primeiro da solidão absoluta. Sade o disse e o repetiu de todas as formas: a natureza nos faz nascer sozinhos, não há nenhuma espécie de relação entre um homem e outro. A única regra de conduta é portanto que eu prefira tudo o que me afeta de uma maneira feliz e tenha por nada tudo o que de minha preferência possa resultar de mal para outrem. A maior dor dos outros conta sempre menos que meu prazer. Não importa que eu deva comprar o mais fraco gozo por meio de um conjunto inaudito de crimes audaciosos, pois o gozo me deleita, ele está em mim, mas o efeito do crime não me toca, está fora de mim."
Para Bataille, toda a violência destrutiva presente na obra de Sade evidencia que ao querer destruir o outro, queria destruir a si mesmo e, assim como Beauvoir alegou que tudo em Sade era exagerado (sua forma de comer, de escrever), Bataille também observou o excesso presente na obra sadeana: “É somente um excesso, é um excesso vertiginoso, mas é o excessivo ápice daquilo que somos”

Retrato de Sade (1760)

Bataille terminou seu segundo estudo, “Sade e o homem normal”, de forma brilhante, ao afirmar que Sade queria justamente colocar na consciência aquilo que mais a revoltava, aquilo que o homem normal mais evita e que é parte de sua existência:
"Ele queria revoltar a consciência, teria também querido esclarecê-la, mas não pôde ao mesmo tempo revoltá-la e esclarecê-la. Só hoje compreendemos que, sem a crueldade de Sade, não teríamos abordado tão facilmente esse domínio outrora inacessível onde se dissimulavam as mais difíceis verdades. [...] E se o homem normal, hoje, entra profundamente na consciência do que significa, para ele, a transgressão, é porque Sade preparou os caminhos. Agora, o homem normal sabe que sua consciência devia se abrir àquilo que mais violentamente o revoltara: aquilo que, mais violentamente, nos revolta, está em nós."
Apresentadas, brevemente, as observações dos dois teóricos sobre Sade, notamos que é Beauvoir e não Bataille, uma mulher e não um homem, quem faz um texto mais tolerante sobre a pessoa de Donatien Alphonse François de Sade, mas talvez seja Bataille quem tenha oferecido uma maior contribuição para a compreensão da moral sadeana. Convém ressaltar que os dois autores compartilharam da mesma opinião e chegaram às mesmas conclusões em vários momentos de suas análises: ambos concordam sobre uma possível projeção de Sade em Blangis, personagem d’Os 120 dias de Sodoma, e ambos percebem que é um erro levar os escritos de Sade a sério, que segue incompreendido.

"Sim, admito que sou um libertino e, nesta área, imaginei tudo o que era imaginável. Mas, absolutamente, não fiz tudo o que imaginei nem pretendo fazê-lo. Sou um libertino, mas não sou um criminoso ou um assassino."

(Marquês de Sade)

A literatura profana no século XXI

Antes de tudo, é necessário compreender o momento em que estamos para depois ajuizarmos sobre a recepção da obra do Marquês de Sade. Como tentamos mostrar até o momento, Sade foi vítima de perseguições, sua obra foi propositalmente esquecida e depois proibida, devido aos valores morais dos séculos anteriores, provenientes de momentos históricos conturbados. Aqui, nos atentaremos mais ao contexto brasileiro e propomos uma breve explanação sobre as mudanças socioculturais ocorridas nesse início de século, para então apontarmos as formas sobre como os novos valores morais persuadem os leitores contemporâneos.

A passagem para o século XXI é marcada pela pós-industrialização e a revolução digital. Vivenciamos a superexposição à informação, transformamos a forma de produção e consumo do conhecimento e, consequentemente, estabelecemos novos paradigmas para as relações humanas. Estamos cada vez mais esgotados e tentamos entender o que acontece ao nosso redor, principalmente nas políticas nacional e mundial; somos globalizados, estamos conectados e, contraditoriamente, parecemos cada vez mais intolerantes.

Falar sobre o momento ao qual pertencemos sempre será uma atitude aventurosa e temerária, tanto no âmbito político quanto no artístico, já que não temos ainda a distância necessária para compreendê-lo e, assim, avaliá-lo com clareza. Apesar de ainda não termos o referido afastamento, já podemos apontar sólidas diferenças socioculturais em relação às gerações anteriores devido ao surgimento e popularização da internet.

Nunca chegamos tão perto de uma possível democratização no acesso ao conhecimento e muito se deve às mídias sociais. Graças ao ciberativismo, grupos historicamente oprimidos como mulheres, negros, indígenas, LGBTQIAP+, conseguiram criar uma rede de apoio a pessoas que se encontram em situação de risco, além de troca de informações que visam educar gerações futuras. As redes sociais tornaram-se essenciais na luta pelos direitos humanos, alavancando a realização de campanhas virtuais contra a opressão, como as campanhas mobilizadas por meio das hashtags #meuprimeiroassedio, #metoo e #blacklivesmatter. Os exemplos demonstram como as redes sociais revolucionaram ao serem utilizadas como um local de militância, com páginas que reúnem pessoas com interesses em comuns e grupos privados que rendem boas discussões, muitas vezes discutindo/indicando leituras de textos e estudos até então exclusivos do meio acadêmico.

Contudo, as mesmas ferramentas que deram voz a grupos marginalizados não só contribuem para a compreensão equivocada e apressada de discussões complexas, como também solidificam grupos reacionários. Passamos por um momento conturbado em nossa sociedade; com a eclosão da era digital, parece que o homem contemporâneo não consegue lidar com tantas modificações e a confusão e a angústia geradas resultam no fortalecimento de grupos conservadores, compostos majoritariamente por homens-brancos-heterossexuais que não compreendem as mudanças sociais e o questionamento de seus privilégios. 

Portanto, podemos encarar o aumento da intolerância como uma resposta ao também aumento da politização das minorias. Aqueles que sempre detiveram o poder político e econômico agora se veem confrontados por uma população que adquire a cada dia uma mínima consciência sobre questões sociais e que não aceita mais o modo como foi e continua sendo explorada. 

Os ataques são cada vez mais intensos e, não sem razão, grupos minoritários temem a perda de direitos conquistados com tanto suor e sangue, bem como o retrocesso nas discussões que pautam suas causas. Buscando reconstruir valores sociais mais inclusivos e menos preconceituosos, a população oprimida não deixa mais passar impunemente piadas, músicas, novelas, e qualquer outro produto cultural que apresente teor racista, misógino e LGBTfóbico. Por isso, o posicionamento tão firme diante de obras literárias que apresentem, de alguma forma, preconceitos enraizados em nossa sociedade e o receio em como elas influenciariam novos leitores. 

Tamanha vigilância não é à toa; a literatura, cada vez mais, é reconhecida como um importante espaço que pode determinar e perpetuar certas representações sociais, o texto literário, gradativamente, vem sendo utilizado por outros especialistas e profissionais que não sejam da literatura. A representação ou ausência de determinados grupos sociais nos diz muito sobre as condições de determinados grupos em vários momentos diferentes da história. Ao voltarmos nossa atenção para a literatura brasileira contemporânea, nos deparamos com romances que sempre representam o mesmo olhar homogêneo da nossa sociedade: o do homem-branco-heterossexual.

Visando mudar esse cenário, organizações realizam fundos de apoio para financiar novos autores, assim como alunos e pesquisadores de literatura tentam renovar, por meio de suas pesquisas, a cara da literatura brasileira e, claro, questionar obras e autores que figuram nos cânones literários. Debates acalorados sobre determinadas figuras sempre estiveram presentes na sociedade, como Hilda Hilst, que foi questionada, repudiada e considerada amoral, mas hoje é consagrada e figura no cânone literário brasileiro. 

A narrativa de determinados livros suscita desconfiança de alguns leitores devido à presença de temas espinhosos ou personagens preconceituosos, chegando até mesmo a objetarem sobre a publicação/distribuição ou à presença desses títulos na sociedade, sob a alegação de serem livros/autores perigosos, que incitariam a violência a um determinado público. Nessa mesma perspectiva, a obra de Marquês de Sade continua dividindo opiniões: apesar de Sade aparentemente só circular com mais intensidade, ao menos no Brasil, nos meios acadêmicos, isto não isenta autor e obra de um julgamento severo. 

Para alguns, parece inadmissível que percamos nosso tempo com linguagem tão chula e conteúdo tão vil; para outros, os escritos do Marquês não deveriam ter sido encontrados ou deveriam continuar proibidos, ademais, muito se diz acerca das possíveis influências que o autor francês também poderia exercer em alguns leitores.

Edição de 1791

Na verdade, o apontamento para o perigo da literatura sadeana não é de hoje: em 1801, o autor é preso pela última vez devido aos textos Justine e Juliette; depois, em 1956, Jean-Jacques Pauvert respondeu a um processo por ter publicado os livros imorais de Sade. Em artigo intitulado “Pode uma literatura ser perigosa: o caso Sade em dois tempos, 1801 e 1956”, a pesquisadora Sara Carvalho e o professor Gabriel Giannattasio comentam que no processo de 1956:

"[...] o promotor, no ato de acusação, levanta a questão de quem poderia ler Sade. Para ele seriam poucos, restringindo-os a 'espíritos prevenidos e sábios', que saberiam utilizar as obras para fins intelectuais. Sendo assim, pessoas despreparadas estariam sujeitas à influência malévola de tais romances. O próprio Parecer já representa uma condenação da obra – na medida em que, para Sade, o pensamento deve estar articulado à experiência do corpo – e do leitor."
Todavia, não é só o perigo da leitura e de suas influências que rondam os leitores, outro motivo que parece atormentá-los está relacionado ao principal pacto literário, a diferença entre real e ficcional. 

Um dos maiores prazeres do leitor é justamente saber diferenciar o que é ficção e o que é real, assim como em que momento um dá espaço ao outro e a certeza de que ao terminar um livro tudo o que ali foi lido figura exclusivamente no plano ficcional e que autor e personagens são entidades diferentes que não necessariamente compactuam de um mesmo ponto de vista moral. Esta separação, cada vez mais tênue, já era nebulosa no século XVIII – muito pouco se sabe sobre Sade que já não tenha sido corrompido pelas lendas erótico-profanas que rondaram seu nome. Tememos que ao salvaguardar sua obra, também estejamos legitimando o comportamento de seus personagens libertinos e acabamos por ignorar ou renegar ao segundo plano o valor filosófico, apontado por Beauvoir e Bataille, uma filosofia voltada ao corpo, ao erotismo, e que encara tudo aquilo que o homem pretende ocultar, como é dito no artigo de Carvalho e Giannattasio: 

"Pode-se notar que os expurgos a que esta literatura foi submetida sempre se apoiaram em juízo de valores – limites – principalmente morais. Apontar a importância da literatura sadeana significa, portanto, posicionar-se ao lado daqueles que defendem a soltura dos grilhões que bloqueiam um campo do conhecimento, aquele que se dedica à exploração do corpo como veículo de produção de conhecimento."
O posicionamento e as questões sociais das minorias resultam como uma resposta à sociedade. Amedrontadas, elas acabam revidando séculos de violência com uma intolerância parecida com a que foram tratadas e, ao contrário do que talvez seja esperado, é este comportamento que requer cuidado.

Queimaremos Sade?

Em tempos em que exposições sobre erotismo e sexualidade são censuradas em nosso país, devemos redobrar nossa atenção não só sobre os intuitos políticos e religiosos por trás de determinadas polêmicas que visam não só distrair a população, como colocá-la novamente sob um cabresto de ignorância, fazendo com que ela própria clame pela censura; mas, acima de tudo, devemos cuidar ainda mais de perto os nossos interesses individuais. Distante de ser uma espécie de defesa de autores divinos ou profanos, como Sade, pretendemos abordar de forma breve os motivos que poderiam levá-los a uma fogueira consentida. Indagamo-nos se realmente estaríamos agindo e pensando diferente de grupos reacionários se, no final, estivermos emulando uma atitude semelhante a deles. Querer que uma obra não seja publicada ou estudada por receio dos possíveis efeitos que ela possa suscitar em seus leitores pode até ser fruto de boa vontade e prudência, mas não precisamos ir tão adiante para logo percebermos que este posicionamento colocaria em risco toda a literatura. Não devemos utilizar os meios para justificar os fins, pois, mesmo que por motivos plausíveis – como o medo de uma estagnação na lenta mudança social ou, até mesmo, a volta e a consolidação de velhos costumes sociais –, de nada adianta lutar contra séculos de violências e injustiças se, no final, estivermos todos juntos, oprimidos e opressores, julgando e condenando o divino Marquês à fogueira. Passaram-se quase três séculos e seguimos não compreendendo Sade.

Referências




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