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A atemporalidade de O Meu Pé de Laranja Lima

Embora seja categorizado como um romance infanto-juvenil,  O meu pé de laranja lima, publicado em 1968, é um livro que aborda questões muito profundas, como a desigualdade social, o desemprego, a insegurança alimentar e o trabalho infantil – todas narradas pelo olhar de Zezé, um menino de apenas seis anos, obrigado a amadurecer muito antes do tempo devido às dificuldades que enfrenta para sobreviver.

Com forte teor autobiográfico, tal narrativa baseou-se nas experiências vividas pelo próprio autor, José Mauro de Vasconcelos, em sua infância pobre na periferia do Rio de Janeiro, com sua família que havia migrado da região Nordeste. 

Em meados do fim da década de 1920, Zezé, prestes a completar apenas seis anos, narra sua vida em meio às adversidades da pobreza extrema, com a inocência e a ternura que só uma criança seria capaz de manter. Juntamente com os cinco irmãos (havia uma sexta irmã, mas ela “fora dada para ser gente no Norte”), Zezé sobrevive à dura realidade da falta de recursos de sua família, agravada pelo desemprego do pai, que fora demitido e não conseguia mais emprego devido à idade já considerada avançada para os postos de trabalho disponíveis. Já a mãe, descendente de indígenas da etnia Apinajé (ou "Pinagé", como pronunciado por Zezé), trabalhava desde os seis anos de idade e, por isso, nunca fora à escola e nem aprendera a ler – cumpria uma jornada de trabalho exaustiva na fábrica da cidade para conseguir manter a família:

“Pensei na Fábrica por um momento, Não gostava dela. O seu apito triste de manhã tornava-se mais feio às cinco horas. A Fábrica era um dragão que todo dia comia gente e de noite vomitava o pessoal muito cansado.” 

Nesse contexto, sem conseguir arcar com a despesa do aluguel e com a energia cortada por falta de pagamento, a família de Zezé se vê obrigada a migrar para um bairro ainda mais precário da cidade. As meninas da família, Jandira, Glória e Lalá, se dedicam aos afazeres domésticos, enquanto os meninos, Totoca e Zezé, trabalham como engraxates pelas ruas e ainda cuidam do irmão mais novo, ainda um bebê, procurando sempre outras formas de conseguir um dinheiro a mais para ajudar em casa. 

Ilustração de Jayme Cortez para a 1ª edição do livro

Com a chegada do Natal, fica ainda mais evidente a carência e a tristeza dessa família assolada pela desigualdade social e pela fome: 

“Na cozinha, Dindinha tinha vindo para fazer rabanada molhada no vinho. Era a ceia de Natal. Era tudo. (...)  Foi uma ceia tão triste que nem dava vontade de pensar. Todo mundo comeu em silêncio e Papai só provou um pouco de rabanada. Não quisera fazer a barba nem nada. Nem foram à Missa do Galo. O pior era que ninguém falava nada com ninguém. Parecia mais o velório do Menino Jesus do que o nascimento. (...) O mais triste é que o sino da igreja encheu a noite de vozes felizes. E alguns foguetes se elevaram aos céus, para Deus espiar a alegria dos outros. (...) naquele momento não havia criança mais ali. Todos eram grandes e tristes, ceando a mesma tristeza aos pedaços. Talvez a culpa de tudo tenha sido a luz do lampião meio mortiça que substituíra a luz que a Light mandara cortar. Talvez.”

A época narrada acontece quando o mundo ainda se recuperava das consequências da Primeira Guerra Mundial. No final da década de 1920, chegou a Crise de 1929, que gerou uma depressão econômica sem precedentes, causando desemprego e a decorrente acentuação das desigualdades sociais – consequências sentidas na pele por Zezé e sua família.

Em meio a tantas dificuldades, o protagonista, sem perder a ternura e a curiosidade características dessa fase da infância, sonha em ser poeta e encontra refúgio na cultura: nas idas ao cinema, nas figurinhas de artistas e na música. Além disso, sua imaginação fértil de criança é capaz de transformar o modesto quintal de sua casa no Jardim Zoológico ou na Europa, uma árvore no Bondinho do Pão de Açúcar e sua rua em um cenário de filme de faroeste, no qual contracena ao lado de astros como Buck Jones e Fred Thompson.

“ – (...) E quando eu crescer quero ser sábio e poeta e usar gravata de laço. Um dia eu vou tirar retrato de gravata de laço. 

– Por que gravata de laço?

– Porque ninguém é poeta sem gravata de laço. Quando Tio Edmundo me mostra retrato de poeta na revista, todos têm gravata de laço.”

E é nesse mundo de sonhos e fantasia – que protege sua mente das agruras da vida real e o ajuda a sobreviver – que o pé de laranja lima do quintal da nova casa de Zezé ganha vida e se torna o melhor amigo e confidente do menino. Batizado de Minguinho, é nele que o garoto encontra conforto em meio às surras que recebe de seu pai e dos irmãos mais velhos e das adversidades que enfrenta em seus dias. É também em alguns adultos, como Tio Edmundo, Seu Ariovaldo, a professora D. Cecília Paim e sua irmã mais velha e protetora, Glória (carinhosamente chamada por ele de Godóia), e em especial no portuga Manuel Valadares, que se torna seu amigo e benfeitor, que o protagonista de O meu pé de laranja lima encontra um respiro para viver a infância como qualquer criança de sua idade, com carinho e proteção, sem nunca deixar de olhar ainda pelo pequeno irmão mais novo, a quem chama de Rei Luís. 

Adaptação do livro (1970)

Em alguns momentos, a figura do pé de laranja lima se confunde com a do portuga, pois ambos se tornam as duas presenças mais importantes na vida de Zezé, trazendo-lhe acolhimento e esperança de uma vida que pode vir a florescer. 

O fato é que ninguém, especialmente uma criança em tão tenra idade, deveria ter de lidar com as adversidades a que Zezé e sua família são submetidos. Infelizmente, contudo, essa experiência vivida por José Mauro em sua infância no final da década de 1920 é uma realidade que ainda se apresenta em nosso país. Atualmente, o Brasil conta com 13,7 milhões de desempregados e voltou ao mapa da fome da ONU. São 19 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave, isto é, quase 10% da população sem acesso à alimentação suficiente e adequada. Consequentemente, temos crianças e adultos de barriga vazia, sem condições de se desenvolverem plenamente e de explorarem suas potencialidades. E é esse o triste cenário retratado de forma tão sensível em O meu pé de laranja lima e que o torna uma narrativa tão popular e atemporal, apesar de dolorosa. 

A jornada de Zezé e sua família ilustra diversos problemas estruturais da nossa sociedade, como a desigualdade social, em confronto com o tão difundido mito da meritocracia. Afinal, mesmo uma criança inteligente e esforçada – que consome cultura avidamente e aprendeu a ler antes mesmo de ir à escola como o protagonista da história – não está em pé de igualdade com outra que tem todas as refeições de que necessita garantidas, vive um ambiente seguro e não se vê obrigada a trabalhar para sobreviver, podendo apenas se dedicar aos estudos e à infância.

É justamente por refletir essa realidade brutalmente desigual, mas de forma comovente, tocante e delicada, pelos olhos inocentes de uma criança, que O meu pé de laranja lima é um clássico da literatura brasileira, conquistando um lugar especial na memória de todos que têm a oportunidade de lê-lo, apesar de nunca ter recebido o devido reconhecimento pela crítica especializada e pelo cânone literário. Como bem destacado por Luiz Antonio Aguiar:

“O sofrimento de Zezé – físico e moral, sua solidão, as perdas que sofre – não poupa o leitor. A ponto de transformar O meu pé de laranja lima num desafio: quem suporta o sofrimento de um personagem que se torna tão querido? E isso sem que José Mauro deixe de nos proporcionar momentos de diversão cristalina: as peraltices de Zezé, sua paixão por personagens e atores do cinema americano, suas brincadeiras, suas tiradas espertas e tantos outros elementos. A alegria e a tristeza não poderiam estar mais bem combinadas do que nestas páginas. E isso, se não explica, justifica a popularidade imensa alcançada pelo livro.” 

Tamanha popularidade traduz-se em números: o livro foi traduzido para 15 idiomas e publicado em 23 países, alcançando mais de 2 milhões de vendas e 150 edições, rendendo ainda duas adaptações para o cinema, três telenovelas, além de incontáveis peças teatrais pelo Brasil e pelo mundo. 

José Mauro de Vasconcelos

Assim, é inegável que O meu pé de laranja lima é uma obra que conquistou seu espaço na literatura brasileira graças à sua aclamação pelo público, embora tanto a obra quanto o autor tenham sido marginalizados pela crítica. Como o próprio autor do livro destacou, seu público de leitores era composto desde crianças a idosos, e esse sucesso é fruto, acima de tudo, da linguagem simples e acessível, que narra e ilustra esse Brasil profundo de uma forma sensível e tocante. 

A ternura se encontra presente em todos os momentos da narrativa. Somos conduzidos por um Zezé que, apesar de todas as imensas dificuldades e os acontecimentos trágicos que enfrenta desde tão cedo, não deixa de sonhar e ter esperança diante de uma vida tão sofrida. Nas palavras do próprio Zezé, “de pedaço em pedaço é que se faz ternura” e “a vida sem ternura não é lá grande coisa”. Esse é o grande diferencial da comovente obra de José Mauro Vasconcelos e a razão pela qual cativou tamanho público e alcançou diferentes culturas, apesar de não ser considerado um escritor erudito. 

Atualmente, apesar do desprezo da crítica, José Mauro de Vasconcelos, que nunca chegou a concluir nenhum curso superior, tornou-se um dos escritores brasileiros mais populares, sendo um dos autores de língua portuguesa mais traduzidos no mundo – conforme o banco de dados disponibilizado pela Unesco – ao lado de outros escritores célebres como Paulo Coelho, Jorge Amado, José Saramago e Clarice Lispector. Além disso, há uma biblioteca infanto-juvenil batizada em sua homenagem na cidade de São Paulo desde 1991, a Biblioteca Pública Municipal José Mauro de Vasconcelos

Sua obra é composta por mais de 20 publicações literárias, com diversas edições e tiragens, incluindo duas continuações de O meu pé de laranja lima –  Doidão (1963) que, apesar de dar sequência à vida de Zezé, foi publicado antes, e Vamos aquecer o sol (1974) –,  compondo a trilogia biográfica do autor. Embora não sejam tão populares quanto a primeira parte da saga, ambos preservam a linguagem simples e sobretudo a narrativa humana e sensível presente em O meu pé de laranja lima, que conquistou e continua conquistando leitores no Brasil e no mundo. 

Referências 




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Arte em destaque: Mia Sodré  

Vanessa Vieira
Brasiliense, encantada por histórias – reais e inventadas – desde criancinha, sempre encontrou nos livros e nos filmes seus melhores companheiros. Formada em Letras e apaixonada por Literatura e Cinema, tornou-se servidora pública na área da Cultura, sempre acreditando no potencial que esta tem de transformar e salvar vidas.

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