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O tempo do amor em O Amor nos Tempos do Cólera

É muito comum falarmos de amores impossíveis como grandes marcos da literatura clássica. Lembramos de Romeu e Julieta que, separados por uma inimizade familiar, morrem tragicamente após poucos dias de seu primeiro encontro. Riobaldo e Diadorim nunca são capazes de concretizar seu amor, já que o primeiro nunca conseguiu se declarar para o segundo, até que fosse tarde demais. Todos esses casais clássicos têm finais precoces, e quanto aos que não têm finais trágicos, suas narrativas se cumprem também rapidamente e pouco sabemos do que acontece no mais tardar de suas vidas. Isso não vai ocorrer no romance tratado aqui. Em O amor nos tempos do cólera, o colombiano Gabriel García Márquez se inspira levemente na história de amor de seus próprios pais para tecer a romântica narrativa entre um casal que se apaixona na juventude, mas não pode ficar junto naquele momento. Felizmente, sua história de amor não se conclui ali naquele obstáculo, como ocorre com os exemplos anteriores. Fermina Daza e Florentino Ariza são capazes de concretizar plenamente seu amor cerca de 50 anos depois, quando alcançam a terceira idade, após viverem toda uma vida separados. Como é típico das obras deste autor, um dos principais da literatura latino-americana, esta história aborda diversas nuances do contexto político-social da América Latina, que na virada de século XIX para o XX representada literariamente, envolve problemas sanitários seríssimos, com doenças fatais como o cólera assolando toda uma população, a violência das guerras civis travadas pelo continente, as consequências de um forte comércio escravagista na região etc.. No entanto, entrelaçado a esse panorama, temos o desenvolvimento de um enredo narrativo muito interessante.

O romance de 1985, ambientado numa cidade na qual hipotetiza-se ser Cartagena de las Índias, na Colômbia, apresenta a história de Florentino e Fermina, que, ao se conhecerem na época da juventude, se apaixonam intensamente e iniciam uma espécie de namoro epistolar, na medida em que as diferenças socioeconômicas dos dois os impediam de fazer muito mais além do que isso. Durante um período de quatro anos, os dois se relacionam quase exclusivamente através de cartas e olhares distantes, pouco dirigindo a palavra um ao outro e muito menos se tocando. Apesar desta dinâmica, não podemos nos precipitar em julgar mal a extensão dessa relação, que se prova uma paixão febril e avassaladora, típica de um primeiro amor juvenil. O casal pouco realmente sabia um do outro, mas se veem envolvidos em um romance com direito a “sinais alfabéticos de mão, recurso indispensável aos amores proibidos”, desespero e delírios. 

Ao receber a primeira carta da moça amada, o jovem Florentino devora desesperadamente rosas enquanto lia e relia e avaliava e repassava letra por letra escrita por ela durante toda uma tarde e noite. A ansiedade era tão arrebatadora que trazia a sensação de sangue tornado em espuma para um, enquanto no outro, caganeiras e vômitos verdes, perda de sentido da orientação. Estes últimos podem parecer efeitos estranhos para relacionar com a chama de uma paixão romântica, mas acontece que são também os sintomas do cólera, doença fatal que estava em surto na mesma época e lugar em que se passa a história. Vemos que nesse romance são constantes as comparações entre os temas do amor e da morte, iniciando pelo próprio título da obra. “Os sintomas do amor são os mesmo do cólera”, segundo o médico consultado por Florentino. O personagem literalmente adoece fisicamente em face do arrebatamento do amor que sente ao adorar à distância a sua “deusa coroada”, mas, ao invés de cólera, é a doença do amor que o arrebata. Apesar da dor do não cumprimento imediato da relação e do cenário caótico de uma epidemia de cólera, é essa doença do amor que se instala em seu corpo e lhe faz persistir determinadamente nesse sentimento por mais de meio século. 

Ao serem separados pelo pai desaprovador de Fermina, ambos os apaixonados seguem suas vidas separadamente. Florentino, no entanto, nunca perde as esperanças de retornar à sua amada assim que possível. Mesmo que Fermina se case e construa uma família com o médico Juvenal Urbino, Florentino vive sua vida à margem, de vez em quando a observando de longe, sempre amando-a. É claro que quando Florentino fala que se conserva virgem por Fermina, nem ela e nem o leitor acreditam-no imediatamente, porque, durante 50 anos, o homem não ficou sentado esperando, mas viveu uma vida devassa à parte, enquanto esperava o seu momento chegar. Florentino se distrai com amores fugazes e outros afazeres enquanto esperava pela disponibilidade de sua amada da juventude, chegando a se envolver com uma mulher que, segundo o próprio narrador, foi a verdadeira mulher de sua vida, Leona Cassiani. Sua “desvirginização” é mostrada, inclusive, como um ato praticamente forçado, como ocorre com muitos homens em sua iniciação sexual, com uma mulher mais velha em um bordel. Apesar disso, é interessante notar que o coração de Florentino foi o que ele deixou virgem para Fermina, reservando somente a ela uma espécie de amor puro e primeiro, digno de uma deusa coroada.

Gabriel García Márquez (imagem: reprodução)

No final das contas, o amor de Florentino e Fermina só pode de fato se concretizar no momento em que o marido de Fermina falece, deixando a nova viúva disponível após um longo período de luto para os avanços amorosos do antigo namorado da época de juventude. Visto que esse não é um romance como os tipicamente representados na literatura mais aclamada, muitas das marcas dessa concretização amorosa são de causar um estranhamento inicial ao leitor desavisado. Em O amor nos tempos do cólera, nosso casal principal, quando é finalmente estabelecido, já não é mais representado por dois belos rostos juvenis cheios de energia e paixão angustiante que anseiam um pelo outro. O amor na velhice é um assunto pouco representado, dando a impressão de que é algo quase inexistente ou insignificante no nosso mundo atual. Por que deveríamos esconder das vistas que podemos viver tanto tempo sendo amados e capazes de amar o outro? A nossa sociedade tem um olhar extremamente crítico sobre a velhice. Jeremiah de Saint-Amour, no mesmo romance de Márquez, se suicida logo no início da história por não quer correr o risco de envelhecer, de sofrer a degradação do tempo. É um medo tão comum que criou todo um invólucro de tabus ao redor desse pensamento. Essa visão negativa da deterioração dos corpos, um processo biológico comum a todos, é um reflexo do discurso social hegemônico que prega que o corpo jovem é o modelo ideal e merecedor de amor. A velhice passou a ter significados amedrontadores. Esse estágio da vida é comumente interpretado como uma fase que é necessariamente assexuada e degradante, na qual não se pode esperar muito mais da vida, apenas espera-se o momento da morte. Nela, não merecemos atenção, carinho ou amor. Não merecemos uma olhada sequer, pois nossos corpos enrugados são um sinal de decadência e morte, de finitude, e por isso merecemos o exílio dentro da nossa própria sociedade. Nós, mulheres, ainda jovens nos desesperamos ao perceber que começam a despontar fios de cabelos brancos na nossa cabeça, porque já sabemos que isso pode nos tornar menos amadas. 

Entretanto, será na velhice que o amor de Florentino e Fermina se realizará. Há, é claro, uma mudança de dinâmica e energia nas relações, como vemos na descrição do longo casamento de Fermina e Juvenal Urbino, que, ao alcançar as bodas de ouro já se torna uma relação baseada na comodidade, em que conforme envelheciam pareciam tornar-se indispensáveis um ao outro para viver. Um cuidava do outro, um apoiava o outro, os corpos já não são mais os mesmos. Na velhice, a tentativa de reconquista de Florentino deve ser, também, reformulada, para que uma Fermina já idosa e muito bem vivida possa se impressionar. Ela já não é mais a mocinha que se impressionou com as cartas apaixonadas de um passado distante. Nessa nova fase da vida o romance toma como base uma amizade, primeiramente, seguida de visitas nas quais Florentino presenteava a amada com rosas. Dessa vez, as rosas serão um presente amoroso, dado progressivamente, ao invés de devoradas desesperadamente em um surto de paixão desenfreada. Essa mudança é necessária porque ambos os envolvidos viveram toda uma vida de experiências amorosas, adquirindo conhecimento e ferramentas para, naquele ponto, não se contentarem com a ideia juvenil de amor desesperado e desatento. No entanto, não é uma mudança que desqualifica a intensidade do amor que há entre os dois personagens. Pelo contrário, não é possível dizer que há pouco amor envolvido em uma história que foi mantida em espera por 50 anos apenas pelo fato de não se encaixar em moldes juvenis comumente representados nas narrativas mais populares.

Apesar disso, ainda podemos notar que os sinais do etarismo, nome dado para essa discriminação dirigida a pessoas de idade avançada, afetam nossos protagonistas apaixonados. Após 20 anos sem fazer amor, Fermina tem preocupações sobre seu corpo ao se deparar com a ideia de se relacionar sexualmente com Florentino. Seus ombros são enrugados e os peitos já estão caídos. O casal que temos descrito nesse romance tem corpos envelhecidos e membros que já não funcionam mais como outrora. Mas os pudores logo caem por terra na medida em que percebe-se que transformar tais detalhes em obstáculos para o amor é besteira para dois idosos que muito já viveram. É importante notar que o envelhecimento não implica necessariamente no sumiço do desejo sexual e amoroso do ser humano, e Márquez traz ao leitor essa ideia muito claramente. Fermina se sente inicialmente envergonhada de seu corpo, e constantemente preocupada com o que terceiros podem pensar dessa sua “nova” relação. Sua filha considera uma espécie de indecência que sua mãe idosa esteja iniciando um novo relacionamento amoroso em tão avançada idade. Mas para uma senhora cuja imagem transmitia que pouco viveria após a morte de seu marido, sua filha não deveria se alegrar que a mãe pôde se dispor a viver um amor romântico tão significativo após o tempo de seu luto? 

Nossa sociedade nos acostumou a relegar ao mais velho uma posição de infantilidade, fragilidade e interdição que decerto não condiz mais com a realidade de hoje. Dá-nos a falsa impressão de que quanto mais velhos ficamos, mais precisamos ser restringidos e censurados, e que será impossível para nós viver qualquer coisa nova e emocionante. Parece que será o fim da linha. Romances como O amor nos tempos do cólera nos lembram de que envelhecer não precisa ser o fim. Na verdade, observar a representação de uma concretização amorosa tão interessante como a de Fermina e Florentino pode ser visto como um sinal de esperança, um exemplo, um desejo a se ter. Afinal, se chegamos à idade avançada sendo capazes de amar, quer dizer que vivemos tempo o suficiente e bem o suficiente para chegar lá nessas condições. E se ainda temos o motivo de nosso amor ali conosco, parece ser uma vitória para o amor. É importante percebermos que não deveríamos nos prender às ideias de uma sociedade excludente e hedonista que prega que o amor deve ser algo restrito a um grupo específico pré-determinado por padrões impossíveis e inalcançáveis. O amor é muito mais do que isso. Todos nós merecemos amor independentemente de quem somos ou em que condição estamos. O tempo do amor é qualquer tempo em que o amor esteja disponível para nós.


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Referências 




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Comentários

  1. Comprei e comecei a ler esse livro há meia década (meu deus!). Lembro que parei, porque Gabo é como uma onda oceânica e eu não sabia nadar. Estava pedindo sinais da vida para continuar, como faço todos os dias. Me apareceu esse texto. Enquanto eu ouvia Time and a word, do Yes.

    Have you heard of a time that will help us get it together again?
    Have you heard of the word that will stop us going wrong?
    Well, the time is near, the word you'll hear
    When you get things in perspective
    Spread the news and help the world go round
    There's a time and the time is now and it's right for me
    It's right for me, and the time is now
    There's a word and the word is love and it's right for me
    It's right for me, and the word is love

    Parabéns e obrigada, Bárbara! Vou me reapaixonar por este livro, mais madura. E, agora, sabendo nadar.

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