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Entre a obscuridade e o prestígio: a dualidade de Elizabeth Gaskell


“Todo relato impresso de mim mesma que eu vi foi ridiculamente impreciso” disse certa vez a inglesa Elizabeth Gaskell, autora de Norte e Sul. Não obstante, inúmeras tentativas de entender a personalidade dela foram escritas ao longo dos anos, para desgosto da memória da autora, que tinha horror a relatos biográficos, apesar dela própria ter escrito um durante sua carreira. Eis o enigma de Elizabeth Gaskell, uma das maiores escritoras do século XIX, que fluiu competentemente por temas controversos durante toda a vida e exerceu fascínio em estudiosos e biógrafos exatamente por se fazer indecifrável. 

Autora de romances históricos, industriais, ensaios, biografia, contos góticos, relatos de viagem, dentre outros, Gaskell foi uma celebridade literária em seu tempo que manteve amizade com figuras emblemáticas como Florence Nightingale, Charlotte Brontë, John Ruskin e Charles Dickens. No entanto, ela caiu em obscuridade após sua morte e, durante a passagem do século XIX para o XX, quando a literatura vitoriana sofreu um certo declínio, o trabalho de Gaskell foi considerado provinciano, datado e, por vezes, impreciso. Na década de 1930, quando citada em Early Victorian Novelists, de Lord David Cecil, a autora foi retratada como uma matrona gentil e doméstica e essa interpretação só passou a ser contestada quando suas obras foram resgatadas primeiramente pela crítica marxista e posteriormente pela crítica feminista. Como bem aponta a pesquisadora Jill Mattus, a canonicidade de Gaskell dentro da literatura foi um trabalho de restauração e não de continuidade.

A mulher antes das letras: Elizabeth Stevenson

“Eu acho que devo ser uma mulher imprópria sem saber, eu choco mesmo as pessoas.”
(Elizabeth Gaskell)

Nascida como Elizabeth Cleghorn Stevenson, em 29 de setembro de 1810, em Chelsea, Londres, ela logo perdeu a mãe, Elizabeth Holland Stevenson, que morreu 13 meses após o seu nascimento. Mas a separação da mãe não foi a única perda sentimental da pequena Elizabeth na infância. O pai, William Stevenson, preferiu enviá-la para viver em Chesire, onde a menina foi criada pela família materna enquanto ele seguia com sua rotina, vindo inclusive a se casar novamente quando Elizabeth tinha 4 anos de idade. Apesar de visitas esporádicas, a relação de Elizabeth com a madrasta não foi feliz e elas nunca chegaram a construir uma relação afetuosa. Quando Elizabeth tinha 18 anos, ela sofreu outro abalo com o desaparecimento do irmão, John Stevenson, oficial da Marinha Mercante da Índia, em 1827. Ele nunca foi encontrado e esse mistério permaneceu na memória de Gaskell por toda a vida. Apesar de ser sensível e nem sempre acurado traçar paralelos entre vida e obra, é possível encontrar na ficção da autora muito dessa transitoriedade de relações e afetos que fizeram parte de sua infância e adolescência.

Um novo, e estável, capítulo na vida de Elizabeth começou em 1832, quando ela se casou com o reverendo unitarista William Gaskell, um acadêmico e pregador que a levou para viver na populosa Manchester. Naquele momento, a cidade era um grande centro social e industrial que reunia as sementes das tensões entre a classe trabalhadora e os donos dos meios de produção. Greves, rebeliões e lutas faziam parte do contexto de Manchester e a agora Elizabeth Gaskell, sendo esposa de um Ministro Unitarista, tinha contato com a classe trabalhadora através de ações educadoras e filantrópicas. Essa proximidade foi o que deu a Elizabeth, uma mulher burguesa de classe média que, em outra situação, talvez nunca tivesse trocado uma palavra com um operário de fábrica, o conhecimento de causa que ela exporia em seus livros pouco tempo depois. 

Elizabeth Gaskell, por George Richmond (1851)

Gaskell ficou grávida sete vezes, sendo que apenas 4 filhas chegaram à idade adulta, e foi nessa fase da vida, entre deveres domésticos e sociais, que ela começou a pensar na escrita como algo mais objetivo. Apesar de existir um mito biográfico que atribui a agência autoral de Gaskell ao marido (de que ela só se aventurou no mundo das letras por insistência dele, após a morte do filho, William, em 1845), é inegável que ela já trabalhava em textos antes de lançar os romances que a tornaram famosa. Seu primeiro esforço como escritora aconteceu em 1835, quando ela começou a organizar um diário para sua filha pequena, Marianne. Em 1837 o poema Sketches Among the Poor, de autoria de Mr and Mrs Gaskell, apareceu na Blackwood’s Magazine. Outros trabalhos e contos seguiram estes. O incentivo de William Gaskell e seu apoio à carreira da esposa foi sim de extrema importância na construção da persona escritora de Gaskell, mas a semente da narrativa já existia e o estilo vinha sendo aperfeiçoado antes do lançamento do romance Mary Barton.

A mulher pública Elizabeth Gaskell

Lançado em 1848, sob autoria anônima, o romance industrial Mary Barton: uma história sobre a vida em Manchester causou grande impacto junto à opinião pública e inseriu definitivamente Gaskell na roda literária em evidencia à época. Tendo como protagonista a filha de um operário, o romance denunciava as mazelas de uma cidade desigual dentro do contexto industrial e apontava como solução para diminuir esses abismos a busca por uma consciência coletiva baseada em solidariedade e perdão. Quando o anonimato da autoria foi revelado pouco tempo depois, muitos membros da classe de Gaskell a acusaram de ser conivente e simpática às causas grevistas, mas, para ela, o romance não tinha a ver com revolução, e sim com a necessidade de diálogo e respeito mútuo entre as classes. Como aponta Julia Romeu

Mary Barton é uma tentativa de compreender a revolta dos pobres diante de sua miséria, não para justificar quaisquer radicalismos da parte destes, mas para despertar nos mais ricos um sentimento de solidariedade e amor cristão que, na ideologia de Gaskell, acabará por diminuir os abismos entre as classes.”

O fato é que a popularidade de Mary Barton chamou a atenção de ninguém mais ninguém menos que Charles Dickens com quem Gaskell se encontrou em 1849. Dickens, que chegou a se referir a ela como sua querida “Scheherazade”, a convidou para contribuir com a revista Household Words algum tempo depois. A parceria de trabalho entre eles seria, ao mesmo tempo, prolífica e temperada por conflitos, visto que ambos possuíam um caráter impositivo e Gaskell não cedia facilmente aos rompantes arbitrários do autor de Oliver Twist.

Na sequência, vieram os romances Cranford (1851–53), Ruth (1853) e Norte e Sul (1854–55), este último, publicado de forma seriada na Household Words, trazia novamente para a atenção do público as tensões entre donos de fábricas e trabalhadores. Focada em expor nas suas histórias problemas sociais desconfortáveis, Gaskell sofreu mais uma vez duras críticas após o lançamento de Ruth, a história de uma mulher seduzida e abandonada; uma fallen woman (mulher caída) vitoriana. A publicação incitou revolta entre leitores, que queimaram cópias dos livros em protesto contra a suposta imoralidade da narrativa e a sugestiva empatia de Gaskell pela situação da personagem.

“Deveríamos entender melhor uns aos outros e, me aventuro a dizer, deveríamos gostar mais uns dos outros.”
(Norte e Sul)

A despeito das polêmicas, Gaskell se tornou uma autora extremamente popular entre o público vitoriano e a fama literária deu a ela a possibilidade de circular entre figuras proeminentes da época como Thomas Carlyle, John Ruskin e Charlotte Brontë, a quem veio a conhecer em 1850 e se tornou uma amiga, além de colega de profissão. Foi a morte de Charlotte, em 1855, que acrescentou uma mudança significativa na carreira de Elizabeth Gaskell. A pedido do pai de Charlotte, Patrick Brontë, e do marido dela, Arthur Bell Nicholls, Gaskell aceitou a incumbência de escrever a biografia da amiga, objetificando estabelecer para o público vitoriano a reputação de Charlotte enquanto escritora e mulher de seu tempo. A tarefa, no entanto, não foi um processo simples visto que ela nunca havia incursionado pelo caminho das biografias e não sabia exatamente como fazê-lo.

“e eu nunca escrevi uma biografia e não sei exatamente como fazê-lo; você vê que tem que ser precisa e seguir os fatos; coisa das mais difíceis para uma escritora de ficção”
(Gaskell)

Não só a incumbência se mostrou desafiadora, como outros fatores dificultaram a escolha de tom para o relato biográfico. Gaskell sabia que, ao estabelecer uma linha narrativa para a vida da amiga, estaria dando ao público o poder de julgar duas reputações: a dela e a de Charlotte. Dentro do ambiente hostil vitoriano, principalmente com escritoras mulheres, essa não foi uma tarefa simples. Não causa espanto, ao analisarmos de forma crítica o relato, descobrir que ela suprimiu algumas situações que acreditou poderem desabonar o prestígio de Charlotte (como a paixão dela pelo ex-professor, Constantin Héger) ou ainda embaraçar o pai e marido da escritora falecida. 

Charlotte Brontë

Depois de quase um ano e meio de trabalho, A vida de Charlotte Brontë (1857) foi publicado em dois volumes, vendendo 2021 cópias só no primeiro mês, um sucesso para a época. Gaskell entrou para o cânone, então, como a primeira romancista a escrever uma biografia de outra romancista no período vitoriano. Apesar do sucesso, a biografia incitou a ameaça de processos e pedidos de retratação de algumas figuras que se sentiram difamadas, o que levou a autora a ter que reeditar a segunda edição para evitar contratempos jurídicos. 

A situação foi tão estressante que, com certeza, influenciou a hostilidade de Gaskell com a ideia de alguém biografá-la. Ela chegou a criar um sistema de codificação em suas cartas que avisava o interlocutor sobre quais deveriam ser mantidas e quais destruídas. Também pediu que muitas cartas familiares fossem queimadas e se mostrou bastante lacônica sobre detalhes pessoais de sua rotina e seu passado.

“Desaprovo as biografias de pessoas vivas. Sempre deixo que as pessoas inventem a minha e frequentemente aprendi algumas peculiaridades curiosas sobre mim pelo que elas decidem dizer.”
(Gaskell)

Essa escolha em não expor maiores intimidades acabou criando lacunas biográficas que foram preenchidas durante décadas com suposições. A autocensura que a autora praticou em relação a si mesma gerou uma interpretação de silêncios e, posteriormente, uma dificuldade para os estudos gaskellianos. Gaskell fez de si própria uma figura ora social, ora reservada, criando um mistério para a sociedade vitoriana, que adorava conjecturar sobre a vida de escritores famosos (ela própria, era, curiosamente, adepta a especulações sobre outros autores, o que acrescenta mais uma camada de complexidade em sua personalidade). 

Elizabeth estava trabalhando no romance Esposas e filhas quando faleceu abruptamente de uma falha cardíaca em 12 de novembro de 1865, aos 55 anos. Sua partida foi amplamente lamentada e sua vida e obra celebradas pelos amigos e colegas de profissão. Apesar de ter caído em uma enevoada obscuridade ao longo do tempo, a força de suas narrativas sobreviveu e hoje é bastante debatida em círculos que estudam o período vitoriano e os conflitos entre classes. 

Gaskell se estabeleceu como uma escritora versátil que experimentou diversos recursos literários e explorou as complexidades sociais e suas influências na vida da população vitoriana. A dualidade entre Norte e Sul, pobreza e riqueza, íntimo e privado fez parte da sua escrita e da sua persona, tornando-a complexa, e por vezes não totalmente compreendida. Para além da figura da matrona respeitável e doméstica que alguns críticos lhe impuseram, Gaskell foi uma mulher perspicaz, audaciosa e atenta, que perturbou ao mesmo tempo em que seduziu o público ao mostrar realidades que muitos preferiam ignorar.

Referências




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