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A esposa de Tchaikovsky tinha um nome

O compositor Piotr Ilitch Tchaikovsky nasceu em Votkinsk, na Rússia, em 1840, e faleceu em 1893. Tchaikovsky é considerado o mais popular compositor russo de todos os tempos e tem algumas das obras mais representadas e difundidas entre o público - mesmo aqueles que não são fãs de música clássica podem reconhecer composições como O lago dos cisnes, O quebra-nozes, A Bela Adormecida, e muitas outras. 

Para além de suas composições, Tchaikovsky ficou conhecido por aspectos de sua vida pessoal, como o fato de ser homossexual. Se ainda hoje é perigoso ser homossexual na Rússia, é de se imaginar o temor que Tchaikovsky sentia em pleno século XIX. Muitos boatos rondavam a vida pessoal do compositor, e estes estavam começando a atrapalhar sua vida profissional. 

Foi então que em 1877, Tchaikovsky decidiu se casar com uma jovem que começou a lhe enviar cartas naquele ano, mas que já era secretamente apaixonada por ele desde a adolescência. O nome dessa jovem era Antonina Ivanovna Miliukova. Muitos não sabem sequer que Tchaikovsky foi casado, afinal, eles viveram juntos por pouco mais de dois meses, e mesmo que Antonina tenha se recusado a dar-lhe o divórcio, eles nunca mais se viram após o compositor partir. Os que conhecem um pouco mais a fundo a história do compositor talvez estejam familiarizados com a persona que foi criada a respeito de Antonina Ivanovna Miliukova, uma ninfomaníaca histérica e perigosa. Em 2022, um filme intitulado A esposa de Tchaikovsky foi lançado no festival de Cannes. O longa, escrito e dirigido por Kirill Serebrennikov, prometia contar a verdadeira história da esposa apagada do famoso compositor russo, focando no ponto de vista de Antonina. Mas será que é isso mesmo?

Tchaikovsky e Antonina (1877)

Lançado no Brasil no início de 2023, o filme se passa durante a segunda metade do século XIX, na Rússia. A jovem Antonina (Alyona Mikhaylova), apaixonada pelo seu ídolo, acredita que todos os seus sonhos vão se tornar realidade após finalmente ter conseguido conquistá-lo. Mas logo ela percebe que o marido se arrependeu do casamento e que apenas o fato de ele estar próximo a ela faz com que sua saúde mental, já instável, se torne ainda pior. Ele vai embora e logo pede o divórcio, mas Antonina não aceita, e passa a gradualmente enlouquecer conforme sua obsessão pelo marido aumenta. No filme não é mostrado que Tchaikovsky (Odin Biron) tentou suicídio enquanto estavam juntos, o que faz sentido, já que Antonina não ficou sabendo desse ocorrido, e, de fato, a protagonista do filme é Antonina. O que importa na narrativa é o seu ponto de vista da relação, já que o próprio Tchaikovsky aparece poucas vezes em momentos-chaves da trama. 

Em 1970, o diretor britânico Ken Russell dirigiu o filme Delírio de amor. Na trama, mesmo que a esposa do compositor (Glenda Jackson) seja uma das personagens, o ponto central é a vida de Tchaikovsky (Richard Chamberlain) - suas escolhas, suas relações e sua própria derrocada, no que diz respeito à sua saúde mental. Não temos esse ponto de vista em A esposa de Tchaikovsky; a imagem que Antonina criou do marido antes e depois dele partir é a que perpetua na trama e em sua lenta viagem até a loucura. Mas é curioso que mesmo em um filme no qual o foco seja a história não contada de Antonina, absolutamente tudo gire em torno justamente de Tchaikovsky.

De certa forma, o título dá clareza do que se trata o filme: ao se referir a ela como "A esposa de Tchaikovsky", é de se esperar que todos os passos de Antonina de fato se deem ao redor do marido, como se ela fosse um sinônimo na vida do compositor, e é justamente isso que acontece. O pouco tempo que conviveu com Tchaikovsky e seu amor obsessivo por ele é o que estimula a vida dela. Nesse caso, mesmo que ele mal apareça na trama, o filme de certa forma apenas se desenvolve ao redor dele.

O problema não é mostrar como a obsessão pelo compositor transtornou a vida de Antonina em todos os sentidos e o fato de que a partir do momento em que ela o conheceu, sua personalidade passou a ser baseada em agradá-lo e a viver para ele. A questão problemática aqui é não dar ao público o vislumbre de Antonina Ivanovna Miliukova para além de seu marido famoso. Não há um vislumbre de como ela era antes de conhecê-lo, e o desenvolvimento da sua relação complicada com a mãe e os irmãos poderia ter sido mais abordada, já que o filme faz parecer que Antonina era uma mulher instável antes de conhecer Tchaikovsky, e que isso muito tem a ver com a relação abusiva que tinha dentro de casa com os próprios pais, o que faria com que sua obsessão pelo compositor e o medo de perdê-lo fizesse ainda mais sentido. Afinal, mesmo que por pouco tempo, ele foi seu porto seguro, e para toda a vida, Antonina se agarrou a ele, ou melhor, à versão que criou dele.

Imagem: reprodução

Mas existem pontos positivos que merecem ser abordados, como a desmistificação a respeito da história de que Antonina era uma ninfomaníaca. O filme demonstra com maestria que o fato de Antonina se envolver com outros homens após a dissolução do casamento não significa que ela era uma imoral viciada em sexo. Se envolver com outros homens durante a vida não a transforma em um monstro, principalmente porque o homem que ela sempre desejou e amou a ponto de loucura nunca pôde ser seu.

Em Delírio de amor, Tchaikovsky admite para Nina que queria um casamento, e não uma esposa. Seja na vida real, ou nas duas adaptações cinematográficas, Tchaikovsky ofereceu amor fraterno a Antonina, mas não era apenas isso que ela desejava e precisava. 

Tchaikovsky teve uma longa relação de amizade com a viúva e matrona das artes Nadejda von Mekk. Nadejda ofereceu apoio financeiro a outros artistas, mas foi com Tchaikovsky que ela desenvolveu uma relação de amizade que durou 14 anos. Eles nunca se encontraram pessoalmente, sua comunicação se dava apenas por cartas, mas ele a considerava sua melhor amiga, e dentre outras composições que escreveu em homenagem a ela, em destaque está a Sinfonia n° 4. Tchaikovsky pagou uma pensão a Antonina por toda sua vida, mas era apenas isso que ele oferecia a ela. Antonina teve três filhos, que entregou para a adoção, e as crianças morreram ainda na infância. Ela era uma mulher solitária, infeliz e à beira da loucura; procurar companhia para aplacar essa solidão não é escandaloso, mas, sim, triste e trágico.

Tchaikovsky faleceu aos 53 anos, ao que tudo indica, de cólera. Sua amiga e confidente, Nadejda, faleceu poucos meses depois, mas Antonina viveu ainda por mais 24 anos, sozinha e internada em uma clínica psiquiátrica. Agora ela não era mais a esposa de Tchaikovsky, e sim sua viúva. Mas nunca foi ela mesma - nem mesmo em um filme de 2h30 que promete contar sua história, mas deixa a sensação de que em momento algum a vida dela foi sobre ela. 

Referências




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Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

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