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O Papel de Parede Amarelo: feminismo e terror no conto de Charlotte Perkins Gilman


O papel de parede amarelo
é um dos contos de terror psicológico mais potentes da literatura ocidental, tanto pelo suas qualidades literárias quanto pelo seu aspecto social. Escrito e publicado em 1892, pela autora estadunidense Charlotte Perkins Gilman, o conto parte de uma premissa simples: escrito em primeira pessoa, a narradora nos conta suas observações sobre as formas, cor e padrões de um papel de parede de cor amarela do quarto onde se encontra. No entanto, o que parece ser apenas uma situação ordinária acaba ganhando aspectos sinistros.

Em poucas páginas, o conto é narrado em forma de diário por uma mulher que está sofrendo de “histeria”. Sob recomendação do seu marido, que também é médico, a narradora encontra-se em repouso no quarto de uma casa de campo onde ela e o marido estão passando o verão. A partir de suas anotações, compreendemos que o marido passa os dias em seu consultório, a cunhada cuida dos afazeres domésticos e, em breve passagem, é sugerido que uma empregada cuida de uma criança – talvez seu filho. À narradora, resta apenas o descanso. Apesar de sua vontade de sair e andar pelo jardim, conversar com outras pessoas e escrever, sua prisão – disfarçada de “recomendação médica” – a condena a ficar no quarto sozinha e a escrever escondido.

Isolada e entediada, o que começa com apenas observações sobre o desenho e padrões do papel de parede do quarto se torna uma fixação obsessiva. Manchas, cheiros, e uma sombra que se movimenta parecem indicar que uma mulher encontra-se presa do outro lado do papel de parede. Determinada, a narradora passa a descascar compulsoriamente o papel de parede, a fim de libertar a mulher do outro lado que se arrasta pelo chão.

Charlotte Perkins Gilman
Para além das qualidades literárias do conto de Gilman, O papel de parede amarelo é também um manifesto feminista com elementos autobiográficos. Antes que o feminismo se tornasse um movimento tal qual o conhecemos hoje, Gilman encontrou na literatura um meio legítimo e potente de expressar como as mulheres vinham sendo silenciadas e subjugadas por uma sociedade médica machista e misógina.

A autora


Gilman havia se formado em Design em Rhode Island School of Design e, ao falar da estampa, cores e o padrão do papel de parede, ela escolheu um assunto que dominava. Além disso, tirou de sua própria experiência como mulher, esposa e mãe as referências para sua narradora. Nascida em 1860, no estado de Connecticut, casou-se aos 24 anos com o artista Charles Walter Stetson, com quem logo teve uma filha, em 1885. Numa época em que as mulheres eram diagnosticadas como “histéricas”, Gilman sofreu de depressão pós-parto e foi submetida a um “tratamento” que a isolava de contato social, a impelia a um descanso forçado e a impedia de trabalhar, escrever, ler ou ter qualquer estímulo intelectual. Esse “tratamento”, ela reconheceu, piorava seu estado de saúde; a autora só veio a melhorar quando decidiu viajar para outro estado, se afastar de seu marido e, contrariando a sociedade da época, pedir o divórcio.

O conto de Gilman denuncia uma violência física e mental que a mulher do século XIX sofria nas mãos de homens que, munidos do discurso médico-científico, diziam que o sofrimento psíquico sofrido pelas mulheres era “histeria” e, portanto, a recomendação era isolamento e silenciamento afins de descanso e recuperação. Sob o diagnóstico de “histeria”, a vontade, opinião e expressão da mulher era sufocada, quando não ignorada. O que Gilman aponta em seu conto é que é justamente esse é o tipo de conduta que agrava – ou é até mesmo a causa – das condições mentais e psíquicas dessas mulheres.

Gilman, eventualmente, separou-se de seu primeiro marido, viajou para outro estado, casou-se novamente e se curou da depressão pós-parto, mas sua militância pela dignidade das mulheres não parou em O papel de parede amarelo. Apesar de ter sido seu trabalho literário mais notável e conhecido, Gilman também escreveu e publicou o romance Terra das mulheres, que fala sobre uma sociedade formada unicamente por mulheres.

Feminismo e eugenia


Fora da ficção, Gilman publicou vários ensaios, livros e artigos em jornais e revistas sobre o feminismo, discursando acerca do papel da mulher na sociedade e defendendo a independência financeira das mulheres em relação aos seus maridos e famílias. 

Artigo de Charlotte Perkins Gilman

É importante registrar, no entanto, que apesar do seu ativismo feminista, Gilman advocava pelos direitos das mulheres brancas e se autodominava como nativista, ou seja, defensora dos direitos dos povos brancos estabelecidos da Nova Inglaterra em detrimento de imigrantes e negros. Gilman, portanto, foi uma branca nacionalista eugenista. No seu livro, A Suggestion on the Negro Problem (algo como Uma sugestão para o problema negro), publicado em 1908, Gilman defende a criação de campos de trabalho forçado para a população negra estadunidense a fim de resguardar a pureza racial. Seu pensamento eugenista encontra-se, inclusive, no romance Terra das mulheres, no qual aqueles “geneticamente inferiores” são condenados à esterilização e pena de morte.

Em 1935, aos 75 anos, Gilman foi acometida por câncer de mama, um diagnóstico que, na época, era considerado atestado de morte. Gilman suicidou-se, tomando uma overdose de clorofórmio.

Que mulher nunca foi acusada de “louca”? Que mulher nunca foi diminuída, descreditada ou desautorizada por outro homem que a acusou de transtornada, psicótica ou histérica? Em uma primeira leitura, O papel de parede amarelo parece ser sobre uma mulher que possui uma sensibilidade sobrenatural, cuja situação de saúde a faz ficar de repouso num quarto estranho e mal-assombrado. No entanto, mesmo escrito há mais de 100 anos, o conto ainda é um potente instrumento para denunciar a misoginia e o machismo da sociedade ocidental atual. Infelizmente, para as mulheres leitoras, o conto de terror pode causar profunda identificação.




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Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

Comentários

  1. Que texto ótimo, Giovana! Eu tenho esse conto, mas ainda não li. Vai ser bom fazer isso agora com essas informações. Gostei de como você apontou a contradição biográfica da vida da autora. Gosto muito de entender como os indivíduos são frutos de seus contextos.

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