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A cartuxa de Parma: Stendhal e a caça à felicidade

Em 1783, no seio de uma família burguesa com ares aristocráticos, nasceu na cidade francesa de Grenoble um garotinho chamado Marie Henri-Beyle. Enquanto crescia, ele foi dando para si mesmo outros nomes, dos quais gostava mais do que o de batismo. Mas foi só em 1808 que o garoto — então já um jovem rapaz acompanhando as campanhas de Napoleão Bonaparte — tomou emprestado de uma cidadezinha alemã o nome que o tornou conhecido como um dos maiores romancistas franceses do século XIX: Marie Henri-Beyle é Stendhal.

Quando pensamos que a biografia de alguém é muito emocionante, costumamos dizer que essa vida daria um romance — e esse é precisamente o caso da biografia de Stendhal. O autor nasceu e foi criado como filho dessa dobradiça temporal entre os séculos XVIII e XIX. Tinha 7 anos quando a Revolução Francesa de 1789 estourou e 17 anos quando se juntou às tropas napoleônicas, sem exatamente pegar em armas, mas transitando entre cargos administrativos. Viu o general Bonaparte tornar-se Imperador em 1804. Assistiu de perto às milhares de baixas sofridas pelo exército francês em Moscou, em 1812. Foi informado da queda de Napoleão, de seu exílio na ilha de Elba, em 1814, e depois na Ilha de Santa Helena, em 1815, após o fiasco de Waterloo. Viveu ainda o período da Restauração até a Revolução de 1830, morrendo em Paris aos 59 anos de idade. Na vida privada, estabeleceu ligações de amizade com Prosper Mérimée, Eugene Delacroix e George Sand. Também trocou correspondências com Honoré de Balzac e Lord Byron.

Dançando a coreografia de uma existência aventuresca, uma empreitada se destacou das demais na vida do autor — antes de tudo e qualquer coisa, Stendhal levou muito a sério “la chasse au bonheur” (a caça à felicidade). Não seria um erro muito crasso afirmar que todos, em maior ou menor nível, estão em busca da felicidade nas suas diferentes áreas de autorrealização, das esferas profissional e econômica até o sucesso na vida romântica ou erótica. Mas as coisas ficam um pouco mais interessantes quando encontramos quem faça dessa busca pela felicidade um projeto estético além de um projeto de vida.

Stendhal nos jardins do amor e da música

Para Stendhal a felicidade tem seus lugares por excelência, por exemplo, na música. Em Milão, no ano de 1800, o autor teve a oportunidade de assistir a sua primeira ópera ao vivo e em cores, O matrimônio secreto, do italiano Domenico Cimarosa. Essa é uma ópera cômica, que foi performada no teatro La Scala, espaço que o autor francês passou a frequentar assiduamente depois de descobrir naquela meio e naquela música uma fonte constante da mais alta alegria. Em seu livro A Lion for Love: A critical biography of Stendhal, Robert Alter diz como: 

“O efeito sobre o menino de dezessete anos foi avassalador, um desses momentos da vida dele que constituíram, de tal modo, um complemento eufórico oposto à experiência traumática, quando um estado de arrebatamento perfeito foi experimentado de forma tão intensa, a ponto de ter sido permanentemente impresso na sua imaginação como um ideal de felicidade a ser perseguido.”

Foi com a música e no teatro que Stendhal foi feliz, enquanto assistia às montagens no palco, vendo a tudo e a todos do seu camarote, com a vantagem extra de não ser visto — o que não deixava de ser uma forma de alegria para alguém que sempre sofreu com a timidez e as inseguranças em torno da própria aparência. Mas Cimarosa não foi o único “deus” venerado pelo autor, que também soube identificar beleza nas composições de Wolfgang Amadeus Mozart e nas óperas de Giacomo Rossini. Essa admiração fez com que Stendhal, menos como especialista e mais como um apaixonado por música, escrevesse duas biografias, Vie de Mozart (1814) e Vie de Rossini (1823). 

Porém não foi só na música Stendhal enxergou beleza e alegria, já que a natureza também sempre chamou a sua atenção, por vezes comovendo-o até às lágrimas. O autor foi sensível principalmente à natureza italiana, uma vez que, apesar de ser francês, Stendhal passou a vida em viagens pela Itália, nutrindo um carinho especial pela Milão da sua juventude. A contemplação da natureza vista de locais altos pode até mesmo trazer à memória Caminhante sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich, pintura icônica da estética romântica. Quando se mostra tão sensível à beleza nas suas diversas formas, Stendhal mais parece um romântico nato, talvez o mais romântico entre aqueles denominados "realistas franceses” do século XIX. Como Antonio Candido assinalou em seu ensaio "Melodia Impura":

“O mundo é um arsenal de harmonias disponíveis que agitam a alma e predispõem o homem aos estados emocionais onde encontra a felicidade [...]. O que Stendhal recolhe das emoções é uma filosofia bem materialista da euforia terrena — uma planta cujo perfume da vida, mesmo como seu travo de dor, e que ele procura obter nos jardins do amor e da música.”

Caminhante sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich (1817)

E com isso introduzimos a peça que faltava. Além da música e do contato com a natureza, para ser feliz, Stendhal nunca desistiu do amor. O autor francês nunca chegou a se casar, mas algumas figuras femininas marcaram a sua vida de diferentes formas, por mais ou por menos tempo, às vezes pela vida inteira. Nas suas primeiras temporadas em Milão, ele conheceu Angela Pietragrua, com quem só veio a se envolver romanticamente num intervalo de onze anos entre a primeira e a segunda visita à cidade italiana. Já Matilde Dembowski foi um dos seus amores mais decisivos. Corajosa e engajada em um tempo de incertezas e ameaças políticas, Matilde atuou ativamente como parte integrante de um grupo revolucionário de seu tempo, os Carbonari. Ela e Stendhal trocaram correspondência e estabeleceram uma relação cordial até a morte de Matilde, em 1825, para desespero do escritor francês — “morte do autor”, é o que declara na entrada do seu diário referente ao dia em que recebe a notícia.

No entanto, Matilde encontrou uma forma de sobreviver na obra de Stendhal. Foi pensando nela que o escritor pôde publicar De L'Amour (1822), um misto de conto com tratado pseudocientífico e racional, uma maneira do autor de tentar teorizar sobre a paixão, suas etapas e efeitos. No escrito, por exemplo, Stendhal desmembra o que chama de processo de “cristalização”. Joana Canêdo é quem faz um excelente resumo desse processo na sua introdução a Ernestine ou o nascimento do amor (Hedra, 2011):

“A pessoa apaixonada vê o objeto de seu amor de maneira diferente, mais encantadora, como se ele estivesse recoberto de cristais, que o tornaram mais perfeitos aos olhos do amante. Não se trata de inventar qualidades novas ao ser amado, mas de enxergar com bons olhos tudo o que se relaciona a ele.”

E por fim, o tema da "caça à felicidade" não teria sido apenas um projeto de vida do autor, como uma espécie de norte que dirigisse e desse sentido à vida de Stendhal, mas teria estado diretamente vinculado com a sua escrita romanesca. Ao contrário de boa parte dos autores que descobrem o prazer da escrita desde a juventude, Stendhal começou a publicar já tarde na vida, justamente quando a felicidade passou a se tornar impossível. Foi quando as temporadas agradáveis em Milão foram substituídas pela tediosa cidade de Civitavecchia; quando os amores foram escapando pelos dedos um a um e a juventude foi se desvanecendo a cada mirada para o espelho. Em seu ensaio "Na Mansão de La Mole", Erich Auerbach escreve:

“Ele só tomou consciência de si mesmo e só se dedicou ao ofício de escrever de forma realista quando procurava ‘náufrago num barquinho’, um porto seguro, e quando descobriu que para o seu barquinho não havia porto apropriado nem seguro.”

É na escrita, portanto, que Stendhal vai fazer uma nova investida na tentativa de ser feliz. Pela composição de sua obra ficcional, Stendhal vai perceber que, se a felicidade não está mais ao alcance da mão no mundo e no tempo em que ele vive, se ela só pode ser encontrada no passado, então talvez a escrita seja uma forma de não só lamentar a perda dessa felicidade, mas talvez seja uma chance de (re)vivê-la uma última vez.

A cartuxa de Parma: o romance da felicidade

O romance A cartuxa de Parma (1838) narra as aventuras de Fabrice del Dongo, uma figura nobre, jovem, supersticiosa e bastante ingênua. Fabrice é apaixonado pela ideia de Napoleão, que toma como um modelo heroico, símbolo da capacidade humana de realizar grandes feitos. Desesperado por viver uma aventura que o arranque da monotonia de sua cidade natal, quando vê uma oportunidade, Fabrice embarca naquela que promete ser a maior aventura de seu tempo — uma guerra. O que ele não sabe é que, ao se juntar ao conflito, ele não está prestes a testemunhar uma vitória do lado francês, mas sim uma perda terrível, justamente a batalha que cravou o fim do período napoleônico. Fabrice acaba deixando sua casa para desembarcar na França e viver bem a tempo, em 1815, a batalha de Waterloo.

Stendhal (1884)

Esse é apenas o começo da história, as primeiras cem páginas. Waterloo também já foi cenário d'Os miseráveis, de Victor Hugo, romance escrito pouco depois d’A cartuxa de Parma, apesar do tratamento da guerra por Stendhal ser um tanto diferente. Fabrice vai de encontro à guerra esperando a glória, mas tudo se apresenta de forma bem estranha aos seus olhos — ou melhor, mal se apresenta, já que Fabrice mal chega a participar de fato da guerra. Quando os exércitos debandam, resta a dúvida: a guerra era “só” isso? No fim das contas, o romance contará a história desse jovem movimentado pelo seus ímpetos, ideias e desejos ardentes pela felicidade. Saído de Waterloo, a arena da "caça à felicidade" deixará de ser a guerra para ser a das relações amorosas, até que Fabrice encontrará na cidadezinha italiana de Parma aquela em que verá uma alma tão heroica e nobre quanto a sua. Ao lado de Clélia Conti, Fabrice experimentará algumas etapas do amor formuladas por Stendhal em De L'Amour.

Quando tomamos A cartuxa de Parma nas mãos, logo percebemos que a felicidade, longe de ser um anseio exclusivo dos personagens stendhalianos e de seu autor, transborda na experiência da leitura. É muito difícil ler um romance como A cartuxa sem sorrir com as cenas abertamente cômicas de mal-entendidos. Também é cômica a ingenuidade de Fabrice e sua performance heroica que não encontra razão de ser nesse mundo em que os ditos “heróis” são menos nobres do que nos livros. A realidade descortinada diante dos olhos se apresenta sob uma face mais amarga, mas o desejo pela felicidade não desaparece — é ele que movimenta os personagens, impulsiona-os, atira-os de um lado para o outro, impelindo e motivando todas as ações como se fosse um motor. Também os contatos com  a música e a natureza reaparecem nas cenas do romance:

“As árvores dos pequenos bosques que a estradinha cruzava a todo instante desenhavam o contorno negro de suas folhagens contra um céu estrelado, mas coberto por ligeira bruma. As águas e o céu eram de uma tranquilidade profunda; a alma de Fabrice não conseguiu resistir a essa beleza sublime; ele parou, depois se sentou num rochedo que avançava no lago, formando como que um pequeno promontório. O silêncio universal só era perturbado, a intervalos iguais, pela leve marola da água do lago que ia morrer na praia. Fabrice tinha um coração italiano; peço desculpas por ele. [...] Ao sentar naquele rochedo isolado, já não precisando se precaver contra os agentes da polícia, protegido pela noite profunda e pelo vasto silencio, doces lágrimas molharam seu olhos e ele encontrou ali, sem muito esforço, os momentos mais felizes que saboreara havia muito tempo.”

Assim, é composto um romance espetacular, cuja tônica é dada justamente pela busca da felicidade, como lembra outra vez Robert Alter, a respeito da prosa d’A cartuxa:

“A música é a forma de experiência estética mais pura para Stendhal. Ao lado disso ele vê essa experiência como o reviver da felicidade rememorada, que é, por fim, tudo aquilo de que trata esse romance. Maurice Bardèche citou de forma bela esse caráter distintivo d’A cartuxa, ao observar como não se trata apenas ‘do romance da felicidade, mas também o romance da nostalgia pela felicidade, o romance da felicidade perdida e sempre desejada outra vez.’”

É difícil não se deixar embriagar pela felicidade de Fabrice. É difícil não deixar de vibrar com uma das maiores personagens do romance, Gina Sanseverina, tia de Fabrice, quando ela submete o príncipe de Parma às suas vontades, sem abaixar a cabeça. "Para que ir buscar tão longe a felicidade, ela está aqui, diante de meus olhos!", conclui Fabrice num instante. Assim, as memórias felizes dessa leitura serão sempre capazes de nos surpreender, como se, voltando para casa, recebêssemos a visita de uma amiga muito querida, que não estivéssemos esperando.


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Michele Soares
Ensaísta ma non troppo — está mais para a expressão coup d'essai, em contínua tentativa. No momento, está tentando se graduar em Letras Clássicas, enquanto escreve poemas de sabor duvidoso, além de artigos sobre literatura e música; também está tentando viver sem fones de ouvido 24/7 e comprar menos livros para ler os que já tem. Mais de três vezes por dia, precisa lembrar a si própria e aos outros de que Salieri não matou Mozart, fora o projeto permanente de tentar falar com seriedade ao menos uma vez na vida — nisso, como se vê, está sempre falhando.

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