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Jane Morris: o mistério que transcende a arte

Ao pesquisarmos o nome de Jane Morris, não faltam alcunhas que buscam descrever uma das mulheres mais retratadas do período vitoriano. Em vida, ela foi Perséfone, Guinevere, Vênus, Beatriz Portinari e Isolda. Foi musa, inspiração, modelo e mito. Foi tachada ora de sedutora, ora de inválida. Durante boa parte do século XIX, foi um dos rostos mais pintados e reconhecidos da arte pré-rafaelita. Silenciosa, alguns disseram. Taciturna, outros escreveram. O romancista George Bernard Shaw, ao vê-la pessoalmente, disse que ela parecia como “uma figura saída de uma tumba egípcia de Luxor”. Henry James, igualmente fascinado ao encontrá-la em Londres em 1869, escreveu em uma carta “ela ainda me assombra, uma aparição de medo e maravilhosa intensidade”.  

O que todas essas referências têm em comum, ao analisarmos com cuidado, é que poucas deixam entrever a mulher Jane Morris e parecem, no entanto, perpetuar o mito congelado, a imagem imutável que estampa dezenas de quadros e que parece defini-la para sempre através do olhar do outro. A pergunta que nos ronda ao analisarmos sua biografia é: quem foi a verdadeira Jane Morris aparte dos homens que amou, dos homens que a analisaram ou dos homens que a pintaram? Esse é o grande mistério. 

Nascida Jane Burden em 1839, em Oxford, era a terceira de quatro filhos, sendo o pai, Robert Burden, um cavalariço, e a mãe, Ann Maizey, lavadeira. Sua vida até os dezoito anos, a exemplo de muitos, permanece um mistério quase intrínseco aos de sua classe, inexistentes para a sociedade mais favorecida. A miséria não era apenas um estado social, era também um estigma que tornava invisível o indivíduo. Desse período de sua vida, pouco se sabe além do que ela mesma revelou, como o fato de, na juventude, gostar de observar os barcos no canal ou sair para colher violetas, pequenos vislumbres de paz em meio a jornada dura de uma garota de classe trabalhadora. A Jane que entrou para a história da arte, no entanto, passou a existir para o mundo em 1857, através do olhar do artista Dante Gabriel Rossetti

Prosérpina, por Dante Gabriel Rossetti (1874)

A lenda de “formação” de Jane Morris começa nesse exato momento. Conta-se que ela e a irmã, Bessie, foram avistadas por Rossetti na audiência de uma produção teatral e ele, sempre em busca de uma musa que representasse sua estética, se encantou imediatamente pelos traços marcantes dela. Alta, pálida, com cabelos volumosos e escuros, dotada de uma expressão reservada, quase masculina, a jovem desconhecida ia contra todo o ideal vitoriano de beleza. Não era loira, nem pequena e nada havia de delicado nas linhas de seu rosto. Era perfeita, porém, para a imagética de Guinevere que Rossetti estava buscando para o mural com temática arturiana que ele, Edward Burne-Jones e William Morris estavam pintando por encomenda de John Ruskin, professor na Universidade de Oxford. Após convencerem Jane e sua família de que as intenções do grupo eram moralmente corretas, ela adentrou para o mundo boêmio da estética pré-rafaelita e ali permaneceu para todo a vida. 

Desse episódio nasce outro mistério envolvendo Jane Burden. Não se sabe exatamente como aconteceu e qual era a profundidade da ligação, mas acredita-se que entre ela e Rossetti tenha florescido um sentimento mais profundo, não levado adiante em virtude dele estar comprometido com outra de suas musas, a modelo Elizabeth Siddal. Rossetti não era, no entanto, o único homem fascinado pela figura de Jane. O afável e tímido William Morris, ao tentar retratá-la como La Belle Iseult, (a única obra em óleo que produziu a vida toda), teria escrito no verso da tela a mensagem “I cannot paint you; but I love you” (Algo como: Eu não posso te pintar; mas eu te amo.). O flerte se transformou em um noivado na primavera de 1858, e em casamento em 1859. 

La belle Iseult, por William Morris (1858)

O casamento com Morris pode ser interpretado como um exemplo de agenciamento da própria vida feito por Jane e demonstra uma força excepcional em escolher o próprio destino. Ao aceitar a proposta de Morris, que era um homem pertencente a um extrato social distante do dela, Jane transpôs a limitação de classe e demonstrou estar consciente de que aceitar o enlace era se distanciar das dificuldades financeiras e de uma vida inteira de trabalhos braçais pesados e privações ilimitadas. Além do amor que Morris abertamente lhe oferecia, ela entendeu também o potencial transformador de uma proposta como a dele. O fato de a família de Morris ter se recusado a comparecer à cerimônia já demonstra a transgressão social e moral da qual ela foi protagonista. 

Logo após o casamento, o casal se mudou para a Red House, em Kent, lugar que se transformou em um reduto de pintores, escultores, arquitetos e outras figuras das artes que se encontravam constantemente. Para uma menina que em Oxford nunca tinha tido a oportunidade de adentrar os círculos intelectuais, Jane agora deveria se adequar ao papel de anfitriã de um grupo muito diverso e criativo. Ela, então, se esforçou com afinco para se tornar uma nova versão de si mesma demonstrando, novamente, que não era uma agente passiva dentro da própria história. Jane se transformou em uma leitora voraz e, através de aulas com tutores particulares, também se tornou fluente em francês e italiano. Mudou a própria postura e deixou para trás os maneirismos e o sotaque que a acompanhavam desde a infância. Estudou, leu e aprendeu tudo o que estava ao seu alcance para não só se adequar a sua nova posição, mas também saciar a curiosidade inata que existia dentro dela. E obteve sucesso. O casamento com Morris resultou também no nascimento de duas filhas, Jane Alice em 1860 e Mary em 1862.

Jane Morris com a filha, Jane Alice

Outro momento importante que demonstra a versatilidade de Jane foi o envolvimento ativo dela negócio do marido, a Morris & Co. A empresa, estabelecida em 1861, era especializada em artes decorativas e produzia uma gama variada de artigos como móveis, tecidos, tapetes, vitrais e papeis de parede que se tornaram objetos de desejo entre as classes médias e altas, sempre ávidas em mostrar através de suas casas a opulência do próprio dinheiro. Enquanto Morris e seus sócios adquiriram uma reputação indiscutível dentro do design vitoriano, a participação de Jane permaneceu obscura, quando não esquecida totalmente. 

No entanto, ao analisar algumas cartas dela, a biógrafa Suzanne Fagence destacou a inegável contribuição de Jane para a empresa e o desenvolvimento de peças e designs. Durante mais de 20 anos, Jane Morris esteve envolvida no trabalho de bordado da empresa do marido, escolhendo padrões, pontos e interpretando ideias dele e de seus sócios, usando para isso as próprias habilidades de costura. Há indícios também de que ela administrava encomendas e gerenciava o trabalho das bordadeiras responsáveis por traduzir as visões de Morris nas peças que seriam comercializadas. 

Porém, ela nunca recebeu crédito ou foi lembrada por suas colaborações. E o motivo pode estar intrinsicamente ligado ao papel exigido da mulher dentro da sociedade vitoriana. Primeiramente, como esposa – e não sócia ou contratada – Jane não recebia um salário e tudo que fazia era considerado tarefa natural ao casamento. Ela era a dama da casa e sua participação em qualquer aspecto do trabalho de Morris era visto apenas como um acréscimo em seu papel dentro da esfera familiar. Outro motivo para esse esquecimento tem a ver com a transgressão de Jane ao se tornar amante de Dante Gabriel Rossetti, o que lhe rendeu as alcunhas de traidora e sedutora em alguns círculos. Esse fato nos apresenta outra faceta intrigante de Jane Morris: ao mesmo tempo em que ela se esforçou para cumprir todos os requisitos de anjo do lar vitoriano, ela também violou a - falsa - sacralidade imposta a esse papel ao seguir um desejo do próprio coração. 

The daydream, por Dante Gabriel Rossetti (1878)

Apesar de não se saber ao certo quando começou, é possível definir que em 1868, Jane e Rossetti já estavam envolvidos, talvez concretizando a atração existente desde o momento em que se viram pela primeira vez em Oxford. E ao que tudo indica, o caso não era desconhecido de Morris e ambos gerenciavam a questão com extremo sigilo. Se não com a aprovação, o affair tinha pelo menos a concordância do marido, visto que Jane e Rossetti passavam extensos períodos juntos e algumas cartas do artista para ela contêm indícios desse conhecimento. 

“Lugares que são vazios de você, são vazios de toda a vida.”

(Dante Gabriel Rossetti, 1870)

Foi durante esse tempo que Rossetti produziu, dentro outras telas, a icônica The blue silk dress. O belo vestido que Jane usa na pintura, curiosamente, foi confeccionado por ela, o que nos confirma mais uma vez suas habilidades e também o fato de que ela não era uma modelo passiva que apenas representava a paixão do artista. Jane, atenta e cuidadosa, definiu junto com Rossetti a atmosfera do quadro e detalhes que achava importante constarem na obra. Os anos passados dentro de um círculo artístico a tinham tornado apta a entender e captar a arte tão bem quanto a posar para ela. 

The blue silk dress, por Dante Gabriel Rossetti (1868)

Enquanto muitas cartas de Rossetti direcionadas à Jane sobreviveram, as dela enviadas para ele foram destruídas quase que em totalidade. Ela sabia que, apesar de Morris ter conhecimento, qualquer evidência de um caso extraconjugal poderia levá-la a perder as filhas e os privilégios sociais de que usufruía. Para alguém que tinha vivido os primeiros dezoito anos de vida na instabilidade da pobreza, esse era um fator a ser considerado e tratado com cuidado. Mesmo agindo de forma discreta, eles foram alvos constantes de fofocas no círculo interno de conhecidos, muitas delas culpabilizando Jane pela confusão mental de Rossetti e os surtos psicóticos que o acometeram com frequência nos últimos anos de vida. No mundo das artes, a musa era a raiz de toda instabilidade que um artista pudesse ter e não tardou para que maledicências sobre ela fossem espalhadas em cartas e sussurros. 

“Estar com você e cuidar de você você e ler para você é absolutamente a única felicidade que eu posso encontrar e conceber nesse mundo, querida Janey.”

(Dante Gabriel Rossetti, 1870)

Jane parece ter encerrado o caso com Rossetti em 1876, apesar de ter passado parte do inverno daquele ano com ele. Duas situações podem ter influenciado a decisão dela de se afastar do pintor: sua filha mais velha, Jenny, foi acometida naquele verão pelo seu primeiro ataque epiléptico - o que demandou cuidados específicos e constantes por toda a vida -, e a dependência de Rossetti por cloral aumentou consideravelmente, angustiando a todos que viviam ao redor dele. 

Apesar de afastados, eles continuaram se correspondendo, como prova carta dele para Jane em 1882. Nela, o pintor comenta sobre um projeto chamado “Perlascura, Twelve Coins for One Queen”, que pretendia organizar, contendo doze sonetos, um para cada fotogravura dela. O projeto nunca foi concretizado, pois Rossetti faleceu no mesmo ano, vítima de insuficiência renal crônica, condição agravada por seu vício em álcool e cloral. O carinho, ou pelo menos um grande respeito pelo trabalho dele, todavia, nunca esmoreceu, e Jane continuou comentando e oferecendo intepretações sobre o trabalho de Rossetti nos anos que seguiram.

A despeito da descrição de ser silenciosa e taciturna que alguns homens lhe atribuíram (a mulher mais silenciosa que ele já havia encontrado, comentou George Bernard Shaw sem considerar que, provavelmente, o silêncio dela era apenas direcionado a ele), o fato é que Jane viveu de forma ativa até a velhice, apesar dos períodos de invalidez e dor crônica que a acometeram em vários estágios da vida. Cuidou das filhas e do marido quando este adoeceu, viajou para a Itália e para o Egito, se correspondeu com inúmeros artistas e conhecidos e posou para a artista Evelyn de Morgan aos 66 anos de idade. O retrato de uma Jane grisalha, mas com o mesmo olhar lânguido que havia enfeitiçado o mundo pré-rafaelita, é um testemunho poderoso da passagem do tempo da beleza, mas da permanência do magnetismo que ela sempre pareceu exercer sobre os que a rodearam.

Estudo para The hour glass, por Evelyn de Morgan (1905)

Quando morreu, em 1914, quase todos os jornais lembraram dela por sua beleza, que havia sido o retrato de um tempo. O imaginário vigoroso de artistas como Rossetti a tinha imortalizado, então, como uma figura mitológica, deusa e rainha de traços andróginos, semblante melancólico, membros pálidos e olhos tristes. Pouco a pouco, os relatos sobre as vidas de Morris e Rossetti cimentaram-na ora como manipuladora, ora como passiva, frágil, doente ou amante calculista. E quem ela foi se mesclou com o imaginaram – e desenharam - dela.

Se Jane Morris era realmente enigmática e taciturna ou mesmo uma figura apenas introspectiva talvez nunca saibamos. O que permanece é a certeza de que ela foi uma mulher que transcendeu as próprias perspectivas de nascimento, agarrou a oportunidade de mudança, se reinventou, amou, cuidou, inspirou e escolheu seguir seus desejos e feminilidade, mesmo que isso tenha soado transgressor para os olhos e ouvidos de muitos. Talvez ela fosse todas as coisas que foram ditas. Ou talvez nenhuma. Talvez ela fosse feliz em seus silêncios e triste em suas relações. Talvez ela tenha buscado a vida inteira por algo que nunca encontrou, ou talvez tenha achado a felicidade em pequenas coisas e belezas que nunca foram documentadas.  No fim, há de existir para sempre algo de oculto nos olhos de Jane Morris. Algo que os artistas foram assombrados em capturar, mas que ela guardou só para si. E o mistério que se esconde na arte é imortal. 

Referências 




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Comentários

  1. Nossa! Muito bom, deve ter dado muito trabalho de pesquisa. Parabéns!

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  2. Apesar de sempre me perguntar o que há por detrás das musas inspiradoras, nunca tinha parado para pesquisar sobre elas.
    Que texto maravilhoso! Que pesquisa! Muito obrigada por compartilhar!

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