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A beleza de A cor púrpura

Nascida em uma área rural do sul dos Estados Unidos em 1944, Alice Walker cresceu no Estado da Geórgia, filha de um casal de agricultores e a mais nova de oito irmãos. Desde cedo, ela e sua família viveram na pele as consequências devastadoras da segregação racial que era ainda mais presente nessa região conservadora do país, especialmente para as meninas e mulheres no contexto de pós-escravidão. 

Apesar de todas as barreiras enfrentadas por ela e sua família, Alice sempre se destacou na escola e suas boas notas a levaram a conquistar uma bolsa de estudos, primeiro em Atlanta, capital da Geórgia, e posteriormente em Nova York, momento em que começou a se dedicar à escrita de poesia, a militar pelos direitos civis – inspirada pela luta de Martin Luther King Jr. –, e onde conheceu seu futuro marido, Melvyn R. Leventhal, um advogado branco que militava em prol da mesma agenda e com quem teve uma filha, Rebecca. Por se tratar de um casal interracial, o primeiro do estado do Mississipi legalmente casado, foram perseguidos e ameaçados por organizações racistas e segregacionistas. 

Por ter vivenciado ela mesma uma história como essa, é possível dizer que o enredo retratado em sua obra mais célebre – o romance epistolar A cor púrpura, publicado em 1982 – não se trata apenas de mera ficção, mas também de uma crítica à realidade vista e vivida por Alice, em um cenário racista e misógino, que massacrava e desumanizava impiedosamente pessoas negras, principalmente meninas e mulheres, seus sonhos, aspirações e anseios. Sendo uma mulher negra, nascida em uma família pobre e tendo vivido em uma região tão conservadora, Alice tirou de sua própria vivência elementos para compor o romance, abordando de forma interseccional questões de raça, gênero e classe social. Ademais, apresentando-se também como, além de escritora, médium, a autora sugere, na epígrafe e nos agradecimentos finais do livro, que algumas vozes e relatos presentes em seu romance podem ter sido psicografados, isto é, poderiam ser experiências também ditadas por espíritos que outrora viveram aquilo. 

A trama é protagonizada por Celie, cuja vida no Sul do país é retratada durante o período de 1900 a 1940 – intervalo entre guerras. Nesse ínterim, acompanhamos a trajetória dessa menina negra, pobre e semianalfabeta, que vai crescendo e se tornando uma mulher em meio a constantes episódios de violência, que começam ainda no próprio seio familiar. Desde a infância, é violentada pelo próprio padrasto, a quem via como pai, e dele engravida duas vezes, quando ainda é ela mesma uma criança de apenas 14 anos; e, após viver o luto de perder sua mãe de uma forma também brutal, é levada a se desfazer dos dois bebês que concebe, que são cedidos pelo pai a outra família. Em seguida, ela própria também é “dada” pelo pai, tal qual um mero objeto, para ser mulher de Albert, um viúvo muito mais velho do que ela, homem machista e violento, que passa a tratá-la como uma empregada e babá de seus quatro filhos. “Sinhô”, como é chamado por Celie, explora e agride física e psicologicamente a esposa, humilhando-a e diminuindo-a constantemente. 

Em meio a tamanho sofrimento, mas resignada com sua realidade por não conhecer outra possível, Celie escreve cartas para Deus e para sua irmã mais nova, Nettie, que foge de casa para escapar de se tornar ela também um alvo da crueldade inconcebível de seu pai. Ao passar um tempo morando com Celie e Albert, Nettie acaba se tornando objeto de desejo do marido da irmã, que, ao não ter suas expectativas correspondidas, demanda que ela vá embora. A presença da irmã havia se tornado um conforto para Celie e, então, quando Nettie se vai, sem rumo certo, seu paradeiro passa a ser desconhecido por ela e sua vida toma contornos ainda mais melancólicos.

“Eu falei, Escreve.

Ela falou, Só a morte pode fazer eu num escrever procê.

Ela nunca escreveu” 

Assim, acompanhamos a jornada de Celie por meio de suas conversas com Deus – uma forma que ela encontra de exercitar sua fé e, sobretudo, de escapar daquela terrível vulnerabilidade e da solidão que a assolam. E é também nas cartas para Nettie, que jamais seriam lidas, que ela segue em frente nutrindo amor e esperança. 

Alice Walker

Suas cartas refletem a precária educação a que teve acesso, mas a linguagem simples, escrita da forma como é falada, é tão cheia de significado e ternura, que só contribui para tornar Celie mais real e palpável e nos aproximar ainda mais dela. 

Tão acostumada a sofrer, quando algo a faz sorrir, Celie sente que o riso está “cortando sua cara”, tão estranho que é para ela o sentimento de felicidade. Seu único refúgio reside nessas conversas com Deus, em seu amor pela irmã Nettie e o desejo de, um dia, reencontrá-la. 

Quando passa a conviver com Sofia, a esposa de seu enteado mais velho, e a presenciar o ímpeto e a coragem que esta tem de lutar e se impor perante os homens, jamais aceitando ser agredida pelo marido, que se espelhava no pai ao brutalizar a esposa, Celie se surpreende e expressa, de certa forma, uma inveja inconsciente de Sofia por sua força em lutar, já que ela própria sequer considerava essa possibilidade: para ela, aquela realidade de submissão e resignação era a única possível para uma mulher como ela.


“Mas eu num sei como brigar. Tudo o queu sei fazer é cuntinuar viva.”

Em seguida, Celie passa a conviver com Shug Avery, uma cantora que costumava ser amante de Albert. Quando ela fica doente e é rejeitada por todas as pessoas que antes a aclamavam, Albert acolhe-a e a leva para sua casa, onde ela passa a ser cuidada pela esposa. Sentimentos extraordinários surgem dessa interação, por mais inimaginável que possa parecer, dada a natureza da relação de Shug com Albert. Convivendo intensamente com a cantora, Celie passa por um profundo processo de autoconhecimento e autodescoberta, especialmente de sua própria sexualidade. Com Shug, ela aprende que existem outras formas de viver e de amar, para além daquelas para as quais ela foi condicionada. 

E é também na interação com outras mulheres como Nettie, Sofia, e, até mesmo com as irmãs de Albert, Carrie e Kate, entre outras, que Celie aprende a reagir e a contemplar outras possibilidades de vida, vislumbrando a força que as mulheres são capazes de dar umas às outras e descobrindo que é sim possível se impor contra a hegemonia masculina. Ou seja, trata-se de uma história que mostra a resistência das mulheres, verdadeiras sobreviventes, e como o amor e a sororidade entre elas é algo capaz de transpor até mesmo as mais cruéis adversidades impostas pelo racismo e pelo patriarcado.

“O homem corrompe tudo, Shug fala. [...] Ele tenta fazer você pensar que ele tá em todo lugar. E quando você pensa que ele tá em todo lugar, você começa a pensar que ele é Deus. Mas ele num é.”

Não se trata de uma leitura fácil, pois as situações de violência enfrentadas pelas mulheres podem ser extremamente desconfortáveis em alguns momentos. Mas por outro lado, é na jornada de Celie – que envolve a descoberta de si própria, de seus desejos e da sua força, do exercício da espiritualidade e da fé, do despertar da sexualidade e do prazer, bem como de outros jeitos de amar e viver (não apenas sobreviver) – que se encontra o valor desse grande clássico da literatura, uma leitura indispensável.

A cor púrpura (1985)

E é isso o que torna o célebre romance de Alice Walker tão inesquecível e atemporal: a forma comovente como aborda temas tão delicados como a violência perpetuada contra as mulheres e o racismo, mas, em contrapartida, mostrando que a esperança, a fé, o amor – sentimentos sintetizados na cor púrpura dos campos – sempre podem estar presentes e ao nosso alcance. 

“[...] Escuta, Deus ama tudo que você ama – e uma porção de coisas que você num ama. Mas mais do que tudo o mais, Deus ama a admiração.

Você tá dizendo que Deus é vaidoso? eu perguntei.

Não, ela falou. Num é vaidoso, só quer repartir uma coisa boa. Eu acho que Deus deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura num campo qualquer e nem repara.”

E é por essa razão também que o livro foi agraciado com o Prêmio Pulitzer no ano de 1983, e ganhou uma adaptação cinematográfica em 1985, dirigida pelo aclamado Steven Spielberg e protagonizada brilhantemente por Whoopi Goldberg, que dá vida à Celie, além de contar com a estreia de Oprah Winfrey no cinema como a marcante Sofia. 

Trata-se, portanto, de um clássico que merece ser lido e, certamente, relido, já que é impossível não se sentir cativado para sempre por essa incrível jornada de resiliência e, sobretudo, de amor entre mulheres retratadas de forma tão real e inspiradora – e que só poderiam ter sido concebidas por uma mulher igualmente extraordinária. 


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Vanessa Vieira
Brasiliense, encantada por histórias – reais e inventadas – desde criancinha, sempre encontrou nos livros e nos filmes seus melhores companheiros. Formada em Letras e apaixonada por Literatura e Cinema, tornou-se servidora pública na área da Cultura, sempre acreditando no potencial que esta tem de transformar e salvar vidas.

Comentários

  1. Eu tenho total paixão pela história dA Cor Púrpura. Recentemente até falei no meu blog sobre o livro, filme e musical. É apenas incrível!

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