últimos artigos

O lado sombrio em Peter Pan


A figura de Peter Pan está fortemente marcada no nosso imaginário popular, mas a verdadeira origem dessa história ainda é pouco conhecida. Em 1867, quando o escocês James Matthew Barrie tinha apenas sete anos, seu irmão mais novo, David, faleceu após bater a cabeça em um acidente de patins. Por um tempo J.M. Barrie tentou confortar sua mãe, que nunca se recuperou da perda do filho, vestindo as roupas de seu irmão morto e agindo como ele. Este trágico acontecimento foi um grande marco na vida do autor, e também a grande inspiração para a obra de Peter Pan. Para Barrie, seu irmão seria para sempre o menino que nunca cresceu.

O primeiro esboço do livro está hoje na Biblioteca Beinecke, na Universidade Yale, nos Estados Unidos. Esta versão, intitulada Os Meninos náufragos da Ilha do Lago Negro (The boy castaways of Black Lake island), foi escrita em 1901 para os filhos de seus amigos, Sylvia e Arthur Llewelyn Davies. Embora a obra já mencionasse elementos semelhantes ao da trama de Peter Pan, o personagem surgiu apenas em 1902 na obra que recebeu o título O Pequeno Pássaro Branco (The little white bird). No livro, as aventuras de Peter são contadas por um homem que lia para seu filho antes de dormir.

Em 1904, a obra chegou aos palcos do teatro de Duke of York, em Londres, com o nome de Peter Pan ou O menino que não queria crescer (Peter Pan or the boy who wouldn't grow up), e logo depois seguiu para Nova York. O livro original foi escrito apenas em 1911, recebendo o nome Peter e Wendy (Peter and Wendy), mais tarde sendo renomeado como o conhecemos até hoje. Em 1953 a história ganhou popularidade com a adaptação animada feita pela Disney, e, a partir desse momento, inúmeras outras versões em live action surgiram, como a de 2003 e 2020. Dessa forma, o personagem Peter Pan se tornou algo muito maior que o próprio autor, solidificando-se para sempre em nossas nostálgicas memórias de infância.

O trágico fim dos filhos de J.M. Barrie


Embora a morte de seu irmão tenha sido uma inspiração para a criação de um dos personagens mais famosos da literatura infantil, outras crianças também fizeram parte da vida do escritor. Em 1897, aos 37 anos, Barrie encontrou os três filhos da família Llewelyn Davies com a babá enquanto passeava pelos Jardins de Kensington, e ficou encantado. O autor já era casado com Mary Ansell, mas não tinha filhos, então as crianças foram inspiração para o que mais tarde seria a família Darling e os Garotos Perdidos. Logo depois, o autor conheceu os pais das crianças e ficou muito próximo de toda a família, passando até a ser chamado de Tio Jim. O casal teve mais dois filhos, mas, infelizmente, em 1907, Arthur Llewelyn Davies faleceu, e três anos depois, sua esposa Sylvia também. Barrie se tornou o guardião dos cinco meninos, responsável por arcar com seus estudos por grande parte da vida.

J. M. Barrie

J. M. Barrie observou a morte de muitos membros da família Davis, como George, que morreu aos 21 anos enquanto servia durante a Primeira Guerra Mundial, mas também Michael, falecido também aos 21 em decorrência de um afogamento, que trazia indícios de que se tratava de suicídio. Das mortes que acompanhou, talvez a mais marcante tenha sido de Peter, que acredita-se ter sido a inspiração para o nome do personagem, e que odiava ser reconhecido como “O menino que nunca cresceu”, que se suicidou aos 63 anos. E por fim, Nicholas morreu aos 77 anos de causas naturais. James Matthew Barrie ficou arrasado diante a morte precoce de seus filhos adotivos, e, assim como sua mãe, nunca se recuperou totalmente do luto. Ele morreu de pneumonia aos 77 anos, em 1937.

O lado sombrio dos personagens: trauma de Infância


Na história de 1902, O pequeno pássaro branco (The little white bird), Peter Pan sai de casa ainda bebê e vive aventuras com fadas e animais mágicos sem nunca envelhecer. Ele acredita que, quando retornar, sua mãe estará de braços abertos esperando por ele; porém, ao finalmente voltar para casa, percebe que é tarde demais. As janelas estão todas trancadas e sua mãe tem outro filho, tendo esquecido dele. Então Peter sente todo o peso de ser abandonado, substituído e esquecido.

"— Wendy, você está errada em relação às mães.

Todos foram para perto dele, assustados, de tão alarmante que era sua agitação. E, com maravilhosa sinceridade, Peter revelou algo que até então havia escondido de todos.

— Há muito tempo disse ele -, eu, assim como você, achava que a minha mãe sempre ia deixar a janela aberta para mim. Por isso, fiquei longe de casa durante luas e mais luas, e depois voei de volta. Mas havia barras na janela, pois a mamãe havia se esquecido de mim. E tinha outro menininho dormindo na minha cama."

E dessa forma Peter busca sua próxima mãe nas meninas que convida à Terra do Nunca, mas sempre se esquecendo de que todas, depois que a aventura acaba, devem voltar para casa. Antes fora a mãe de Wendy, depois sua filha, e, por fim, a filha de Wendy — e assim ele segue para sempre em busca de algo precioso que perdeu.

Falta de memória


Um jovem desconhecido invade o quarto de três crianças no meio da noite e os convence a sair escondido dos pais para um lugar desconhecido. Se a versão que conhecemos hoje já é assustadora, o primeiro rascunho escrito por J.M Barrie é ainda mais sinistro. No início, o famoso Capitão Gancho, na verdade, não existia, e Peter era o vilão. Ele raptava as crianças para não se sentir solitário, e quando cresciam, Peter as jogava no mar, pois a Terra do Nunca não era um lugar para adultos. Essa versão, é claro, foi alterada pelo próprio autor, que achou inapropriado demais para ser uma história infantil. Há uma teoria, embora nunca comprovada, que traz o Capitão Gancho como um menino perdido que fugiu e que tenta se vingar de Peter a todo custo. Algumas adaptações modernas, como Once upon a time, transformaram o personagem em um completo vilão, e essa, sem dúvida, não é uma tarefa nada difícil quando pensamos melhor na personalidade e atitudes de Peter.


No rascunho original da obra, Peter era mais mesquinho e egoísta, ainda que, às vezes, sua memória no livro também o torna insensível. Em um momento ao final da história, quando Peter retorna durante a primavera para rever Wendy, a garota relembra os momentos que os dois passaram juntos e cita Capitão Gancho, mas Peter parece não se lembrar:

"— Quem é Capitão Gancho? — perguntou Peter com interesse quando ela falou de seu arqui-inimigo.

— Você não se lembra como matou o Capitão e salvou a vida de todos nós? — perguntou ela, muito espantada.

— Eu esqueço de quem eu mato — respondeu ele com indiferença"

Impossível não citar, é claro, outro ato cruel de Peter: ele foi o responsável por Gancho perder a mão quando fez o crocodilo atacá-lo. No fim, até mesmo Sininho se perde em suas lembranças: “Tem tantas fadas. Acho que ela não deve existir mais”. Aqui Peter insinua que talvez a fada, de quem ele também não se lembra, já esteja morta.

Sininho

"O que mais a pobre Wendy poderia fazer? Ela chamou por Peter, por João, por Miguel, mas obteve apenas ecos zombeteiros em resposta. Wendy ainda não sabia que Sininho a odiava com ódio feroz de uma mulher de verdade. Por isso, confusa e cambaleando ao voar, foi atrás da fada, diretamente para sua destruição."

No trecho acima percebemos o momento em que Sininho atrai Wendy para uma armadilha. Nesta parte da história, a fada engana os Garotos Perdidos dizendo que Peter lhes pediu para atirar em um pássaro, que, na verdade, tratava-se da garota voando na direção deles. Firula, um dos meninos, atira no peito de Wendy, mas por sorte a flecha atinge apenas o colar que Peter deu a ela. Os sentimentos da fada, após esse episódio, são retomados em alguns trechos: “A ciumenta fada agora não estava nem mais fingindo que era amiga de Wendy e se lançava contra sua vítima vindo de todas as direções, beliscando-a cruelmente sempre que a tocava”. Segundo o narrador, Sininho era, em alguns momentos, totalmente boa e, em outros, totalmente má, pois as fadas eram pequenas demais para serem mais de uma coisa simultaneamente.

Fantasia X Realidade


“Os sonhos se tornam realidade, se apenas desejamos o suficiente”. Para Peter essa citação era levada literalmente. Talvez um dos traços mais perturbadores do personagem seja sua falta de diferenciação entre fantasia e realidade. No sexto capítulo do livro, há uma passagem em que as crianças precisam fingir que já haviam comido.

"A diferença de Peter para os outros meninos em momentos como aquele é que eles sabiam que aquilo era faz de conta, enquanto para Peter, faz de conta e realidade eram exatamente a mesma coisa. Isso às vezes perturbava os meninos, como quando eles tinham que fazer de conta que já tinham jantado. Se parassem a brincadeira no meio, Peter dava palmadas nas mãos deles."

Durante a narrativa, também descobrimos que o menino que nunca cresce às vezes modifica os corpos dos Garotos Perdidos para que eles conseguissem entrar nos buracos das árvores. A dependência dos garotos por Peter ia muito além da comida, pois, mesmo que algum dia quisessem voltar para casa, eles jamais conseguiriam fazê-lo sozinhos.

Peter Pan é um personagem complexo, um bom e velho anti-herói. E embora pareça insensível em muitos momentos, ele se mostra sempre preocupado, por exemplo, com o bem-estar de Wendy, e se sente triste ao saber que ela não poderá mais visitá-lo. Por isso, em um ato de egoísmo, Peter tranca a janela para que Wendy não possa voltar para casa, mas logo se arrepende ao observar a Sra. Darling com lágrimas nos olhos. Então ele destranca a janela e as crianças voltam para seu lar.

A Terra do Nunca é um lugar mágico, repleto de criaturas fantásticas, piratas e sereias. Segundo o narrador, há uma Terra do Nunca para cada um de nós, onde encontraríamos grandes aventuras, e a única condição é permanecer o mesmo para sempre. Mas não era isso que Wendy queria, ela era diferente, tinha pressa de crescer. Na verdade, ela cresceu bastante rápido, um dia antes das outras meninas. E enquanto todos continuaram mudando, Peter permaneceu o mesmo para sempre. Afinal, todas as crianças crescem, exceto uma.



O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥
Isadora Bispo
Bacharel em Jornalismo, escreve sobre tudo o que envolve cultura e entretenimento. Ama música pop e ainda faz questão de comprar todos os cds da Taylor Swift. Viciada em documentários true crime, histórias de fantasia, era vitoriana, tarot e mitologia grega. Apaixonada por literatura, cinema, arte e história, de preferência tudo isso junto.

Comentários

  1. Nossa, são tantas camadas, achei muito interessante. Na verdade, se pararmos para observar, a maioria, se não todas, as histórias ditas infantis carregam um grande lado sombrio consigo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Com certeza, às vezes nem paramos para pensar em tudo o que há por trás das histórias que fizeram parte da nossa infância!

      Excluir
  2. Acho que eu fui uma garota esquisita, porque não via sentido em Alice. No País das Maravilhas, nem em Peter Pan, mas talvez eu tenha sido mesmo uma intuitiva que sentia haver algo mais por trás de todas essas histórias. Me encantei mesmo foi com O Menino Mágico da Rachel de Queiróz e Meu Pé de Laranja Lima, do Vasconcelos!

    ResponderExcluir

Formulário para página de Contato (não remover)