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A tortura do medo: o voyeurismo e a indústria cinematográfica

Entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, a fotógrafa Cindy Sherman realizou seu primeiro grande projeto. A série recebeu o nome de Untitled Film Still, que pode ser livremente traduzido como Fotografias de cena sem título, e conta com 70 fotografias em preto e branco capturadas em 35 milímetros. Nas fotografias a artista questiona, em forma de autorretrato, ícones da feminilidade construídos ao longo dos anos pelo cinema e televisão. Cada um dos retratos apresenta uma pequena narrativa onde a personagem de Sherman se transforma, de maneira performática, em uma "garota em perigo". É assim que a artista passa a sensação de que a figura feminina está sempre sendo observada e na iminência de um desfecho trágico, como se houvesse alguém a perseguindo o tempo inteiro. Cindy Sherman foi muito inspirada pelo cinema, em especial pelo gênero do horror, e é possível constatar isso em diversas outras obras e séries de sua autoria. Ela mesma dirigiu um filme denominado Office Killer (1997), lançado no Brasil como Mente Paranoica. Com Untitled Film Still essa ligação foi estabelecida, e, ao observar suas fotografias em preto e branco, é possível que venha a mente um dos mais famosos filmes da história do cinema: Psicose (1960), dirigido por Alfred Hitchcock.

No mesmo ano, porém, poucos meses antes do lançamento de Psicose, um corajoso e belíssimo filme inglês em tecnicolor dirigido por Michael Powell foi lançado. Diferente do longa estadunidense, porém, foi rechaçado e por muitos anos ganhou status de grande fracasso, sendo inclusive acusado de ser o responsável por acabar com a carreira de Powell. Trata-se de Pepping Tom, que no Brasil ficou conhecido como A tortura do medo. Nas fotografias de Cindy Sherman ela é a artista e a modelo, o voyeur e o objeto da obsessão, ativa e passiva, criando um duplo de si mesma. Em Peeping Tom, o observador tem nome e sobrenome, Mark Lewis, o protagonista e o vilão da história. A tortura do medo é um dos filmes mais belos e complexos da história do cinema, que na década de 1960 levantou discussões sobre voyeurismo, traumas e abusos, mas também sobre a própria indústria cinematográfica.

— Você sabe qual é a coisa mais assustadora do mundo? É o medo. Então eu fiz algo muito simples. Muito simples. [...] eu as fiz assistir suas próprias mortes. Eu as fiz ver seu próprio terror quando a estaca entrou em suas gargantas. E se a morte tem um rosto, elas viram isso também. Mas não você. Prometi que nunca te fotografaria. Você não.

Durante a era de ouro de Hollywood, vigorou sob o cinema estadunidense um conjunto de normas morais entre o início da década de 1930 e final da de 1960, o conhecido Código Hays. Não tão distante de Hollywood, Michael Powell, então conhecido por sua parceria com o também diretor Emeric Pressburger por filmes como Narciso Negro (1947) e Os Sapatinhos Vermelhos (1948), lançou o que com o tempo seria um de seus mais aclamados filmes, mas que na época foi um grande fracasso. O choque do público e da crítica especializada foi tão grande, que o longa foi retirado dos cinemas, além de que Powell foi acusado de ser um pervertido. Apenas muitos anos depois, graças a outros artistas, como o diretor Martin Scorsese, grande fã do cinema de Michael Powell, A tortura do medo seria novamente redescoberto e tratado como obra-prima injustiça. 

Mas por que o filme foi tão rechaçado na época de seu lançamento? O próprio Michael Powell não acredita que a obra foi responsável por destruir sua carreira, e não se arrepende de ter dirigido e até mesmo atuado no longa, mesmo que admita que, após tal lançamento, passou a ter dificuldade para conseguir financiamento para novos projetos no Reino Unido, ressaltando que trabalhar em Hollywood nunca esteve em seus planos. Em uma entrevista concedida na década de 1980, Powell foi questionado se ele havia se sentido ferido com as críticas que recebeu por Peeping Tom"As pessoas podem ser tão inocentes?" foi sua resposta. Inocentes ou apenas incomodadas por suas próprias falhas e possíveis fetiches serem colocados em tela?

Na trama, Mark Lewis (Karlheinz Böhm) é um homem traumatizado desde a infância por conta de seu pai, um cientista que pesquisava sobre as reações do sistema nervoso ao medo, principalmente nas crianças, procurando entender como elas reagiam ao sentirem tal emoção. O pai de Mark o usava como cobaia para seus experimentos, observando o crescimento do filho sempre com as lentes de uma câmera apontada para ele, enquanto realizava os mais traumáticos experimentos que uma criança poderia ser submetida, como, por exemplo, filmar a reação do filho ao ver e tocar o cadáver da própria mãe.

— Mark, o que ele estava tentando fazer com você?

— Me ver crescer. Ele queria registrar o crescimento de uma criança, em todos os detalhes, como se tal coisa fosse possível. E ele tentou tornar isso possível apontando uma câmera para mim o tempo todo. Eu nunca tive em toda a minha infância um momento sequer de privacidade. E aquelas luzes em meus olhos e aquela coisa. Ele estava interessado nas reações do sistema nervoso ao medo.

Quando adulto, Mark se torna um homem tímido e contido, isolado e traumatizado, que trabalha em uma produtora de filmes e como fotógrafo freelancer, e que, sonhando em ser diretor de cinema, está trabalhando em seu documentário. A cena inicial do filme mostra Mark filmando e abordando uma prostituta na rua, e, após subirem para seu quarto, a mulher é surpreendida ao encontrar a morte poucos minutos depois, com Lewis filmando cada uma de suas reações, deixando registrado sua expressão de medo antes da morte. 

A cena em que Mark Lewis assiste às cenas de seus assassinatos se assemelha à cena inicial do filme Matador (1986), dirigido por Pedro Almodóvar. Na trama um toureiro aposentado consegue prosseguir com sua sede por sangue matando mulheres após o sexo, e sente prazer novamente assistindo as cenas das mortes. Mas há algo diferente em Mark: mesmo que seja um voyeur, o protagonista de A tortura do medo não parece estar interessado em sexo, como aponta Susan Sontag em seu livro Sobre Fotografia"Existe uma fantasia sexual muito mais forte no extraordinário filme de Michael Powell intitulado A tortura do medo (1960), que não trata de um voyeur, como o título sugere, mas de um psicopata que mata mulheres com uma arma oculta em sua câmera, enquanto as fotografa. Ele não encosta nem uma vez em suas vítimas. Não deseja seus corpos; quer a presença delas na forma de imagens em filme — as imagens que as mostram experimentando a própria morte —, que ele projeta numa tela, em casa, para seu prazer solitário. O filme supõe uma ligação entre impotência e agressão, entre o olhar profissionalizado e a crueldade, que aponta para a fantasia central, ligada à câmera. A câmera como falo é, no máximo, uma débil variante da metáfora inevitável que todos empregam de modo desinibido. Por mais que seja nebulosa nossa consciência dessa fantasia, ela é mencionada sem sutileza toda vez que falamos em 'carregar' e 'mirar' a câmera, sem 'disparar' a foto".


A tortura do medo (1960)

Apesar de ficar evidente desde o início da narrativa que Mark Lewis é o assassino, o ator Karlheinz Böhm e a direção de Powell criam um personagem tão real e complexo, que se torna impossível não se solidarizar e até mesmo simpatizar com o homem. Essa sensação se dá principalmente quando entra em cena a personagem Helen (Anna Massey), uma jovem inquilina da casa que Mark herdou do pai e se tornou senhorio. A relação de amizade que Mark e Helen desenvolvem faz com que o rapaz se abra pela primeira vez, conte sobre o que aconteceu em sua infância e até mesmo mostre à jovem as horrendas gravações que o pai fez dele quando criança. Muito tímido e retraído, aos poucos Helen consegue fazer com que, de certa forma, Mark se sinta confortável convivendo com outra pessoa, pois não era apenas com mulheres que o protagonista não se relacionava, mas também com qualquer um ao seu redor.

A mãe de Helen, por outro lado, consegue pressentir que tem algo de errado com aquele homem tão tímido e retraído. Mesmo sendo uma mulher cega, com sua intuição apurada, a Srª Stephens (Maxine Audley) não deixa de alertar a filha para que se afaste dele. Quando isso não funciona, ela mesma o confronta, fazendo com que Mark pela primeira vez tome consciência de que precisava de ajuda, mas que talvez fosse tarde demais.

— O instinto é uma coisa maravilhosa, não é, Mark? Uma pena que não pode ser fotografado. [...] Então, estou ouvindo meu instinto agora. E diz que toda essa filmagem não é saudável e que você precisa de ajuda.

Fazer o público sentir compaixão por um assassino e não necessariamente julgá-lo pelos seus atos, mas sim demonstrar e abrir um debate sobre psicologia, traumas e patologias que envolvem todo o caminho percorrido até Mark se tornar um voyeur assassino, não foi o único ponto importante para o público rejeitar a obra. Acima de tudo, A tortura do medo é um filme sobre cinema, e isso incomodou não apenas o público, mas também a critica. O assassino é um homem traumatizado, mas também fotógrafo que trabalha com cinema. O longa demonstra que o uso da câmera também pode ser agressivo, violador e controverso, já que Mark a transformara em sua arma mortal.

O filme de certa forma conta a história da cultura cinematográfica, tendo como protagonista um jovem cineasta que comete crimes sanguinários em um estúdio de gravação, enquanto o público se torna o próprio voyeur, observando seus atos pervertidos e se transformando em uma espécie de cúmplice. Afinal, não somos todos voyeurs de alguma forma quando assistimos a filmes, sentados em uma sala de cinema, observando pessoas gravadas atuando em papéis escritos e dirigidos por alguém? Michael Powell usou da metalinguagem para confirmar que o voyeurismo faz parte da essência da indústria cinematográfica, e isso enfureceu justamente seu público alvo. Michael Powell sabia exatamente o que estava fazendo com seus jogos de câmera, enquadramentos e metalinguagem, e não se arrependeu por isso.

A arte é questionadora e o que ela faz é evidenciar essas questões, mas não necessariamente resolvê-las. No caso do cinema, é possível adaptar e dar forma ao problema, mas não tem como objetivo, muito menos como obrigação, resolvê-la. E a réplica do trauma é um simulacro que acaba por repeli-lo. Seja no cinema ou nas artes, as imagens têm o poder de chegar às pessoas.

Estou com medo. E estou feliz por estar com medo.

 


Referências




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Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

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