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A festa de Babette e os prazeres da carne


Karen Blixen (1885-1962) nasceu em Copenhagem, Dinamarca, na propriedade rural de sua família. Seu pai, cujo sobrenome era Dinesen, era ligado à aristocracia da época, enquanto que a família da mãe tinha conexões com a burguesia e a uma religiosidade moralmente severa. Quando Karen tinha apenas 10 anos de idade, seu pai suicidou-se. Esse acontecimento afetou profundamente sua trajetória durante a infância e adolescência, além de tê-la deixado totalmente à mercê dos rigorosos preceitos religiosos da mãe. 

Karen casou-se pela primeira vez em 1914, e se mudou para o Quênia, onde cuidava de uma enorme plantação de café. Após um período no país, ela retorna à Dinamarca para tratar da sífilis que contraiu do marido, que a traía com frequência ao passar longos períodos fora de casa. Ela ficou estéril devido à doença e, após concluir o tratamento, retornou ao Quênia para se divorciar. Em 1926, casa-se novamente, e, em 1931, seu segundo marido morre em um acidente de avião, o que a faz retornar à Dinamarca, onde publica A fazenda africana, em 1937. Em 1950, publica A festa de Babette, obra que será analisada neste artigo. Karen faleceu em 1962, aos 77 anos de idade, na mesma propriedade em que nasceu, local que hoje abriga um museu em sua homenagem.

A festa de Babette foi publicado em 1950, sob o pseudônimo de Isak Dinesen, e foi adaptado para o cinema pelo diretor e roteirista dinamarquês Gabriel Axel, em 1987. Axel, além de conterrâneo de Karen, também passou boa parte da vida fora de sua terra natal, devido ao trabalho de seu pai, em Paris. O diretor tem um vasto currículo no cinema e TV e, com A festa de Babette, ele foi o primeiro dinamarquês a vencer um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A adaptação cinematográfica é bastante fiel ao livro, mas é claro que ao tratarmos de linguagens diferentes, lidamos com formas de construção narrativa também distintas. 

A festa de Babette retrata a vida de duas irmãs, Philippa (Bodil Kjer) e Martina (Birgitte Federspiel), filhas de um pastor luterano, que vivem com seu pai em uma pequena e pacata comunidade. No livro, o local exato é referido como a pequena cidade de Berlevaag, na Noruega, enquanto que no filme o local é a Jutlândia, uma península na Dinamarca. O pai das irmãs é bastante respeitado na comunidade e exige sacrifícios e penitências de seus seguidores no que diz respeito aos deleites corporais sob o pretexto de que a glória espiritual somente pode ser alcançada através da abnegação de tais prazeres. Assim, as irmãs passam a vida se negando a toda espécie de gozo condenado pelo pai, inclusive ao amor romântico. O cantor lírico Achille Papin (Jean-Philippe Lafont) certa vez chega à comunidade e se apaixona pela incrível voz de Philippa, assim como o jovem Lorens (Jarl Kulle), que no futuro se tornaria um general importante em Paris, nutre um amor por Martina. Ambos os rapazes encontram correspondência nos corações das irmãs, mas são dispensados por elas, pois representam os prazeres impuros e mundanos. Ao recusar seus pretendentes amorosos, Philippa e Martina passam todos os seus dias ao lado do pai até o dia em que a morte o leva.

Anos após o falecimento do progenitor, em uma noite chuvosa e fria de 1871, Babette (Stéphane Audran), uma mulher de meia-idade, até então desconhecida pelas irmãs, bate à porta delas com uma carta endereçada à Philippa. A carta, escrita por Achille Papin, solicitava que as irmãs recebessem Babette, uma francesa leal e de muita boa índole, que havia perdido absolutamente tudo, inclusive a família, na guerra que assolava a França, em troca de seus serviços domésticos e culinários. As irmãs dizem a Babette que não tinham como pagar pelos ofícios oferecidos na carta, ao que a forasteira responde que não se fazia necessário, e que apenas deseja ser acolhida e ter uma chance de recomeçar. As irmãs concordam.

Karen Blixen

Após mais de uma década de convívio entre as três, chega às terras francesas a notícia de que Babette ganhara um prêmio na loteria graças a um fiel amigo que renovou seu bilhete frequentemente. O valor do prêmio? 10 mil francos. As irmãs, já bastante idosas, acreditam que vão perder a companhia de Babette que, com certeza, com a riqueza em mãos, escolherá retornar para sua terra natal. Babette, por sua vez, pede para que Philippa e Martina lhe concedam a honra de oferecer um jantar francês em comemoração aos 100 anos que o pai das irmãs completaria, caso estivesse vivo. Os convidados são, obviamente, as duas irmãs, Lorens - agora general - e sua esposa, e uma pequena comunidade remanescente e idosa de seguidores que ainda cultivam não apenas os ensinamentos protestantes, mas também desavenças e intrigas tão carcomidas pelo tempo quanto eles próprios.

“Havia na congregação duas velhas senhoras que antes da conversão haviam se difamado mutuamente, tendo assim arruinado os respectivos casamentos e uma herança. Agora, eram incapazes de se lembrar de acontecimentos do dia anterior ou de uma semana antes, mas não esqueciam esse agravo de quarenta anos no passado e continuavam a remoer as antigas histórias, rosnando uma para a outra.”

(A festa de Babette)

As irmãs aceitam a proposta e Babette começa os preparativos. Ela encomenda uma série de vinhos e ingredientes utilizados na culinária francesa como, por exemplo, uma enorme tartaruga para fazer a famosa Potage à la Tortue (sopa de tartaruga), bem como codornas para o prato Caille en Sarcophage (codorna recheada com trufas em uma massa folheada). As irmãs admiram a quantidade e a variedade das bebidas e produtos que Babette providencia para o banquete, seja pelo desconhecimento da culinária francesa seja pelo exagero. Enquanto Babette se ocupa com os arranjos do jantar, Martina, ao ver a enorme tartaruga que fora comprada para preparar o banquete, assustou-se e, naquela noite, teve um pesadelo em que a cozinheira envenena todos os convidados. A maneira como esse sonho é reproduzida no filme é bastante interessante: são utilizadas cores fortes e sobreposições de imagem para causar uma sensação de perturbação mental.

“Passou a noite praticamente insone; pensava no pai e sentia que justo na noite do seu aniversário ela e a irmã cediam sua casa para um sabá de bruxas. Quando enfim pegou no sono, teve um sonho terrível, em que via Babette envenenando os velhos irmãos e irmãs, Philippa e ela própria.”

(A festa de Babette)

Por julgar o sonho o indício de que a refeição preparada por Babette representa o pecado, Martina instrui todos os convidados a apenas comerem sem prestarem atenção aos estímulos que a comida provoca, afinal, demonstrar sinais de felicidade diante do pecado é símbolo de conivência. O general Lorens, o antigo amor de Martina, é um dos convidados do banquete e não foi avisado por ninguém sobre os sonhos pecaminosos com a comida por morar longe da comunidade e se fazer presente apenas na noite da celebração. Além disso, tudo indica que ele não é adepto dessa vocação religiosa puritana que aparta seus adeptos dos prazeres carnais.

Segundo o Papa Gregório Magno, importante figura do luteranismo, os denominados pecados capitais são sete tentações que distanciam o cristão da pureza sendo eles: soberba, avareza, ira, vaidade, preguiça, gula e a luxúria. Claramente, o banquete oferecido e preparado por Babette representa a gula, principalmente, mas também a soberba. O banquete exige alimentos caros e melindrosos, além do requinte necessário no preparo da mesa como taças, talheres e outras louças. Além disso, o esmero no preparo dos pratos, os aromas e variedade da comida faz com que todos comam mais. Os devotos seguiam uma monótona rotina alimentar com pratos como sopa de cerveja com pão e bacalhau seco preparados de maneira pouco atrativa em termos de perfume, sabor e aparência destinados a única função de suprir as necessidades biológicas que os mantêm vivos e saudáveis.

“A ideia do luxo e da extravagância dos franceses foi o ponto seguinte a causar alarme a apreensão às filhas do deão. No primeiro dia em que Babette ficou a seu serviço, chamaram-na e explicaram-lhe que eram pobres e que, para elas, as comidas sofisticadas eram pecado. A alimentação delas tinha de ser o mais simples possível; eram os panelões de sopa e cestas para os pobres que importavam.”


(A festa de Babette)

A abstinência total de comida ou a privação de certos tipos de alimentos são práticas religiosas ligadas frequentemente ao cristianismo, vide exemplo a Quaresma, a fim de não se entregar aos pecados da gula o estômago deve ser esvaziado por meio do jejum. A comida, como objeto de desejo carnal, torna-se desinteressante para um bom cristão por isso, já que os personagens tentam ignorar o paladar. Atingir o corpo por meio de um desejo desenfreado por comida seria a primeira instância para tomar a alma. Para os puritanos que se banqueteiam com os preparos de Babette, a comida é portadora da vida e da morte de maneira literal e simbólica. Do ponto de vista biológico, a alimentação orgânica, variada e em quantidades ideais é imprescindível para o bom funcionamento do metabolismo humano. Da mesma forma, uma alimentação desregulada pode desencadear doenças, assim como, a ingestão de alimentos envenenados ou estragados pode causar grandes transtornos, inclusive a morte. Para as irmãs e os fiéis seguidores de seu pai, no plano de vista simbólico, entregar-se à gula também pode representar a morte e a danação eterna, assim como resistir ao pecado é sinônimo de vida.

A festa de Babette (1987)

Logo no início do jantar, o general Lorens nota a preciosidade e sofisticação dos pratos que lhe são servidos, bem como a qualidade dos vinhos que bebe, comentando com saudosismo que apreciava as mesmas refeições em Paris, no Café Anglais, e acrescenta que surpreendentemente a chef de tal restaurante era uma mulher. Embora a cozinha seja historicamente um ambiente dominado pelas mulheres, significado e ressignificado como local de opressão e resistência, o mesmo não ocorre com a profissionalização dessa função. Quando o ato de cozinhar ultrapassa os muros domésticos e se torna um trabalho assalariado, ele passa a ser dominado pelos homens, especialmente na época em que a história se passa.

O general faz tantos elogios a cada prato que lhe é servido que, aos poucos, os demais convidados se rendem e o acompanham no prazer de comer, encarando o fato de que é simplesmente impossível ignorar o paladar. As expressões faciais dos personagens mudam a cada prato servido e devorado, a cada taça de vinho esvaziada pequenos sorrisos perdidos no canto da boca são revelados. Apesar da glutonaria, é a partir do momento de entrega aos prazeres da degustação que os conflitos alimentados anos a fio pelos personagens são dissolvidos em meio a alegria que o banquete proporcionou a almas tão ricas de religiosidade e carentes de todo resto. Devidamente perdoados, os comensais cantam em união, no exterior da casa, após a finalização do jantar, sob o céu estrelado. As próprias irmãs se rendem a esse momento e reconhecem a importância do ato promovido por Babette naquele jantar.

“As duas senhoras idosas que outrora haviam se difamado mutuamente agora em seus espíritos retrocediam muitos anos no passado, além do período malévolo ao qual estavam presas, aos dias da mais tenra infância quando, juntas, preparavam-se para a crisma e de mãos dadas haviam enchido as ruas com cantorias.”

(A festa de Babette)

Além disso, o filme/livro permitem, ainda que discretamente, uma análise confrontando sexo e comida. Devido a incubência de cuidar de seu pai, Philippa e Martina nunca se casaram, o que, segundo a moral cristã, implica que elas permaneceram virgens toda a vida. Os pretendes de Philippa e Martina também representavam prazeres carnais relacionados ao ato sexual, algo regulado, assim como a comida. A própria mitologia cristã relaciona esses dois aspectos ao demonstrar que Adão e Eva, no Paraíso, apenas se deram conta de sua nudez e, de certa forma, de sua sexualidade, após quebrar uma regra dietária de não comer do fruto proibido, ou seja, a gula e a luxúria relacionadas. Diversas metáforas são utilizadas para descrever o ato sexual e sempre se referem a um indivíduo comendo o outro, sendo que quem é comido é relacionado ao gênero feminino e quem come ao gênero masculino. Alegorias como lábios de mel, pele de pêssego, olhos de jabuticaba são utilizadas para determinar características físicas. Até mesmo a capacidade de encontrar parceiros sexuais pode ser relacionada à dieta alimentar visto que corpos que atendem determinados padrões estéticos são mais atrativos socialmente e, a forma desses corpos, está em grande medida relacionado à alimentação. Também é curioso notar que a boca é o mesmo órgão utilizado para comer e para produzir prazer sexual.

“E de fato [...] essa mulher está transformando um jantar no Café Anglais numa espécie de envolvimento amoroso - num envolvimento amoroso daquela categoria nobre e romântica na qual a pessoa não mais distingue entre o apetite ou saciedade, corporal e espiritual.”

(A festa de Babette)

Finalizado a celebração, as irmãs julgam que aquele possivelmente era um dos últimos momentos com Babette, que retornaria a sua pátria com sua fortuna. Entretanto, Babette informa que gastou todo o dinheiro no jantar, que não possui mais nada e não tenciona abandonar as irmãs, além de revelar que ela fora chef do Café Anglais. Para Babette, preparar o jantar era uma demonstração de afeto e agradecimento, bem como uma oportunidade de se recordar da vida que outrora tivera. Os homens, diferente dos demais animais, foram capazes de agregar valor cultural ao ato de se alimentar a partir da criação de formas distintas de tratar e preparar os alimentos, transformando esse hábito em algo que vai além da necessidade nutricional. O domínio do fogo foi essencial para transformar a comida em cultura, já que quando cozinhamos um alimento, o transformamos em algo além do que ele era naturalmente. Cozinhar e sentar-se ao redor da mesa permite que os indivíduos envolvidos criem laços, discutam o cotidiano e troquem experiências. A alimentação é capaz de comunicar, por meio de como são preparados os alimentos, por quem e para quem os tabus de uma sociedade, as relações de gênero, parentesco e status social.

O filme confronta as ideias de pecado e felicidade, de materialismo e espiritualidade por meio de seus personagens e ações. Papin e o General Lorens acreditam na materialidade como sinônimo de prazer e realização e é por isso que, mesmo apaixonados pelas irmãs, escolhem outros caminhos já que elas não os poderiam acompanhar ou fornecer o que suas ambições ansiavam. Da mesma maneira, Philippa e Martina simbolizam a constante luta cristã por seu terreno no céu através da penitência. O banquete de Babette representa a junção desses dois cenários: o duelo iminente e irremediável entre duas formas de enxergar a vida.

Extrapolando as barreiras do filme/livro e refletindo sobre os dias atuais, a comida continua a pertencer a um local de dor e alegria, de pecado e redenção. Nas redes sociais, há um bombardeio de receitas culinárias de todas as espécies, o que, tecnicamente, gera o desejo alimentar. Por outro lado a superexposição de corpos magros, de coaches de emagrecimento ou de nutricionistas embasando suas práticas em pseudociências têm dominado nossas percepções sobre alimentação de maneira culposa, dolorosa e perigosa. Somos o que comemos, mas comemos aquilo que podemos e não poder suprir esse desejo, seja por motivos financeiros e/ou a indisponibilidade de alimentos, pode ser agonizante e traumática. A ambivalência da comida talvez tenha mudado seus termos, mas ela continua sendo um símbolo de regozijo e aflição.



Referências

  • Comida e sociedade: significados sociais na história da alimentação (Henrique Carneiro)
  • A comida como objeto de pesquisa – uma entrevista com Claude Fischler (Mirian Goldenberg)
  • Flexionando o gênero: a subsunção do feminino no discurso moderno sobre o trabalho culinário (Carlos Alberto Dória)
  • Alimentação, comida e cultura: o exercício da comensalidade (Romilda De Souza Lima, José Ambrósio Ferreira Neto, Rita De Cássia Pereira Farias)
  • Cultura e alimentação ou o que tem a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin (Maria Eunice Maciel)
  • A dádiva do banquete: para uma abordagem vinculacionista da Festa De Babette (Paulo Roberto Albieri Nery)
  • A uma garfada da felicidade. A gula e o pecado em A Festa De Babette  (Camila Moreira Bácsfalusi)
  • Religião e cinema: sobrevoo sobre A Festa De Babette (Elvio Nei Figur)



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Victória Haydée
Sul-mato-grossense, cientista social por formação e escritora por vocação. Vampira oitentista fã de new wave.

Comentários

  1. Gosto tanto desse filme! Faz muito tempo que não assisto, mas lembro que tinha o VHS em casa, daquelas coleções da Folha e lembro de ficar muito espantada com o enredo e com o final, sabendo da pobreza da Babette. Uma obra-prima! 🍴

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  2. Assisti ao filme, por recomendação da escola, e não sabia que tinha o livro. Agora fiquei curiosa...

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