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Jane Austen, Emma e as escolhas das mulheres


É uma verdade universalmente conhecida que as obras de Jane Austen não são feministas. Seus romances tratam de amor e casamento, sempre sob a ótica feminina. Mas nenhuma de suas heroínas tem discursos ou comportamentos que se poderia chamar de questionadores ou revolucionários. Nem por isso os livros de Austen são menos reveladores do contexto em que estavam inseridas essas personagens. Ao analisar suas obras sob esse ponto de vista, algo salta aos olhos: as escolhas limitadas das mulheres.

O que se pretende, neste artigo, é apontar indícios que ajudem a entender o lugar no mundo e as opções das personagens femininas de Jane Austen, por meio da análise de um de seus romances mais emblemáticos: Emma. Curiosamente, a protagonista da obra é a única heroína do panteão de Austen a dizer textualmente que nunca se casaria. Como estamos falando de um romance austeniano, é claro que essa decisão é posta à prova.

Último livro publicado em vida pela autora, em 1816, Emma é considerado o ápice criativo de Jane Austen. Nas palavras de Ronald Blythe, é “a mais feliz das histórias de amor, a mais diabolicamente difícil das histórias de detetive e uma enciclopédia incomparável de humor inglês”. A protagonista nos é apresentada nas primeiras linhas como “bonita, inteligente e rica”. A partir dessas características, Austen desenvolve uma personagem orgulhosa, dona de um humor mordaz, mas, também, bem-intencionada e afetuosa.

A posição privilegiada de Emma Woodhouse, contudo, não se restringe à riqueza. As características peculiares de sua dinâmica familiar lhe garantem outra vantagem, que ela demonstra apreciar: uma relativa liberdade. Aos 21 anos, Emma vive sozinha com o pai, indolente e hipocondríaco, que lhe permite (ou pode ser persuadido a permitir) fazer o que quiser. É essa situação que a leva a dizer à amiga Harriet que não pretende se casar: “Não me falta fortuna, não me faltam ocupações, não me falta importância. Acredito que poucas mulheres casadas são metade tão senhoras das casas de seus maridos quanto eu sou de Hartfield”, explica. Harriet segue surpresa e apresenta como argumento o espantalho de se tornar uma solteirona. Emma tem a resposta na ponta da língua:

“Não se preocupe, Harriet, eu não serei uma solteirona pobre, e somente a pobreza torna o celibato desprezível aos olhos de um público generoso. Uma mulher solteira com uma renda muito escassa, será, necessariamente, uma solteirona ridícula, desagradável, o alvo certo das piadas de meninos e meninas. Mas uma mulher solteira com uma boa fortuna é sempre respeitável e pode ser tão sensata e agradável quanto qualquer um.”

A personagem se torna a senhora da casa do pai após a morte da mãe e os casamentos, em sequência, de sua irmã mais velha, Isabella, e de sua querida ex-governanta, a Sra. Weston. A partir daí, se dedica ao conforto do pai, Sr. Woodhouse, em quem Jane Austen centrou boa parte do sutil e incomparável humor britânico, e às ocupações usuais de uma donzela inglesa do século XIX: pintura, piano, leitura e caminhadas no campo.

Jane Austen

Mas tudo isso não basta para satisfazer a mente ávida e imaginativa de Emma, que adota, ainda, um outro passatempo. Embora não deseje se casar, ela sente prazer em, digamos, procurar boas situações para suas amigas. Em bom inglês austeniano, isso significa encontrar não apenas um homem bem-apessoado, bem humorado e de bom temperamento para se casar, mas, ainda, alguém que goze de situação financeira minimamente aceitável.

É no papel de casamenteira que a heroína será posta à prova. Será ela tão imune ao amor quanto acredita? Além de ser o fio condutor do amadurecimento emocional da protagonista, o que os planos de Emma para arranjar casamentos nos revelam é a escassez de opções de suas contemporâneas para existir com um mínimo de dignidade.

Um exemplo é a amiga e protegida de Emma, Harriet Smith, de 17 anos, principal alvo de seus esforços como casamenteira. Pensionista de um internato para meninas de Highbury, cidadezinha próxima à propriedade dos Woodhouse, Harriet é filha ilegítima de alguém que paga por sua subsistência e educação. Este era considerado o caminho decente, à época: prover o sustento da criança bastarda, mas deixá-la fora do caminho da família legítima.

A ilegitimidade torna difícil para Harriet arranjar pretendentes, especialmente o tipo de homem que Emma, com seu orgulho aristocrático, gostaria de ver desposando sua amiga. Emma aposta que a jovem, cujo pai é desconhecido, é a filha bastarda de algum nobre. Assim, ela torce o nariz para o único pedido de casamento que Harriet recebe, de Robert Martin, um simples fazendeiro. Enquanto move as peças do tabuleiro social buscando um partido melhor para a amiga, Emma é alertada por um amigo da família, Sr. Knightley, de que o esforço é inútil.

Em sintonia com os cálculos masculinos, Knightley tem uma visão mais clara do valor da bela e ingênua Harriet Smith no mercado matrimonial. Ele alerta Emma de que, ou Harriet agarra Martin, ou estará exposta aos perigos que rondam as mulheres sem família. O casamento representava não apenas segurança e conforto do ponto de vista material. Era, ainda, uma proteção contra as seduções e perigos do mundo externo, que não oferecia muitos ofícios que uma mulher pudesse exercer em segurança, além de julgar de forma inclemente as que se desviavam de seu rígido (e duplo) padrão moral.

Os caminhos para uma mulher ganhar o pão não eram apenas limitados, eram indesejáveis. Entre a sociedade razoavelmente bem nascida e letrada que é retratada nos romances de Austen, trabalho era sinônimo de dependência e a dependência era humilhante. Assim, o melhor que podia acontecer a um homem era herdar terras ou valores que lhe permitissem viver de renda. O melhor que podia acontecer a uma mulher era casar-se com um homem independente e passar a dar ordens na casa do marido.

Isso fica claro analisando as trajetórias de duas outras personagens de Emma, a Sra. Weston, ex-governanta e amiga da heroína, e a misteriosa Jane Fairfax. Em comum, ambas têm a necessidade de trabalhar, o que, usando a métrica delas e dos demais personagens, é degradante. No caso da Sra. Weston, toda Highbury considera que ela tirou a sorte grande por deixar um posto de governanta para se casar já em idade madura, passando a exercer os papéis de fato valorizados (dona de casa e mãe) em casa própria e não alheia.

Emma (2020)

Da mesma forma, a cidade em peso lamenta Jane Fairfax. Jane nasceu em Highbury, onde vivem sua avó e tia, mas, após a morte dos genitores, foi criada em Londres pela família do Coronel Campbell, amigo de seu pai. A vida com os Campbell lhe garantiu a boa educação e o trânsito na sociedade que a avó e a tia pobres não poderiam lhe oferecer. Como o pai não lhe deixou fortuna que pudesse fazer as vezes de dote, Jane é educada para se tornar governanta. Mas existe sempre a esperança de que um pedido de casamento, nas festas e jantares que frequenta, a salve desse destino.

“Você conhece a situação da Srta. Fairfax, eu presumo, o que ela está destinada a se tornar”, comenta Emma com o sedutor Frank Churchill, e a Sra. Weston, ex-governanta, trata a alusão como desagradável e constrangedora. “Você avança sobre questões delicadas, Emma. Lembre-se de que eu estou aqui. O Sr. Frank Churchill mal sabe o que responder, quando você fala da situação da Srta. Fairfax”, diz a personagem. Em outra cena, a própria Jane Fairfax compara o ofício de governanta à escravidão:

“Eu não estava pensando no comércio de escravos. O comércio de governantas, garanto, era tudo que eu tinha em mente, muitíssimo diferente, certamente, quanto à culpa dos que o praticam, mas, quanto ao infortúnio das vítimas, eu não vejo diferença”

Assim, por trás de um mundo de brilho, cortesias e humor refinado, em Emma vemos o matrimônio como uma espécie de redenção que lava todas as manchas: ilegitimidade, pobreza, dependência, solidão. Vemos, ainda, mulheres mais escolhidas do que aptas a escolher, à mercê de um mercado matrimonial que vai pesar do seu nascimento à sua aparência e à quantidade de libras que possui. De um único passo crucial, o casamento, dependerá desde um cotidiano razoavelmente feliz até o conforto material de uma mulher.

Isso inclui a protagonista, embora Emma seja privilegiada, em certos aspectos, se comparada às companheiras. Sua independência, que lhe permite fazer algo tão temerário quanto desdenhar do casamento, resulta de circunstâncias fortuitas: a fortuna da família e um pai que, embora castrador em seu amor egoísta, é complacente com os caprichos da filha. Ainda assim, Emma demonstra estar ciente das limitações que cercam seu sexo.

Em uma conversa com a Sra. Weston, a protagonista faz um comentário que deixa entrever a falta da mais elementar liberdade de movimento para uma mulher, comparada a um homem. “Uma moça, caso caia em mãos ruins, pode ser atormentada e mantida longe daqueles com quem deseja estar, mas é incompreensível um rapaz estar sob tamanha restrição a ponto de não poder passar uma semana com o pai, caso queira”.

A falta de uma crítica contundente, nos livros de Jane Austen, ao papel reservado às mulheres, não torna sua obra menos digna de atenção. A autora foi uma espécie de cronista do dia a dia, das preocupações e das agruras de suas contemporâneas.

Além disso, ao criar heroínas que, em meio a tanta desvantagem, buscavam o amor e a felicidade (sem jamais deixar de lado o pragmatismo), representou as mulheres como agentes do próprio destino, ainda que nos bastidores. Em seus livros, ao mesmo tempo em que sonham com o amor, as mulheres calculam a renda e o tamanho da casa de seus pretendentes. Uma heroína de Jane Austen vive sempre entre a razão e a emoção.


Referências

  • Emma (Jane Austen)



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