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As amazonas: a emancipação feminina na obra de Christine de Pizan


É comum, ao estudarmos literatura - principalmente em séculos passados, quando o acesso à educação e ao letramento era ainda mais restrito do que hoje -, ouvirmos falar em autores famosos, quase sempre do sexo masculino. Nesse cenário dominado por homens, surpreende a figura de Christine de Pizan (1363-1430), italiana que colheu ainda em vida os frutos de seu próprio trabalho.

Christine de Pizan foi uma escritora e filósofa que viveu na França desde os 4 anos de idade e que, por isso, escreveu sua obra em francês. É considerada a primeira escritora profissional do Ocidente e precursora do feminismo moderno, uma vez que buscava, por meio de seus textos, desconstruir crenças e discursos misóginos.

Em vida, Christine foi uma mulher privilegiada pelas circunstâncias: seu pai trabalhava para o rei da França, Carlos V, e ela pôde ter acesso à educação por meio de tutores, como ocorria com jovens aristocratas. Fora dessa esfera restrita, as meninas não costumavam ser nem mesmo alfabetizadas, visto que a instrução formal era limitada ao meio clerical e às universidades, ambos espaços reservados unicamente ao sexo masculino. Se não fosse pela posição de seu pai, a escritora talvez nunca tivesse exercido seu ofício.

Além disso, ela ficou viúva cedo, em 1389. Com isso, não apenas precisou buscar meios de ganhar seu próprio sustento como também se viu desobrigada da dedicação exclusiva às tarefas domésticas, que era esperada de uma boa esposa na época. Dessa forma, a morte do marido propiciou-lhe a liberdade necessária para que começasse a escrever, o que aconteceu já no ano seguinte, em 1390.

Em relação à sua obra, dois textos destacam-se em sua luta anti-misoginia: A querela da rosa (a Querelle de la Rose) e A cidade das damas (La Cité des Dames). O primeiro é “considerado o primeiro debate público em defesa do sexo feminino”, segundo Ana Rieger Schmidt, e se dá por uma troca de cartas entre Christine e Jean de Meung, autor do famoso poema Romance da Rosa, que a autora critica por seu caráter sexista. Já A cidade das damas é um catálogo de mulheres ilustres, nos moldes do De mulieribus claris (algo como "Mulheres famosas"), de Boccaccio. Nele, Christine reúne histórias de mulheres famosas, como o próprio título sugere, chegando até a reconstruir algumas narrativas.

Christine de Pizan teve tanto reconhecimento em vida que conseguiu fazer da escrita sua fonte de renda, o que não era comum. Surpreende ainda mais o teor das obras que lhe garantiram tal fama - afinal, numa sociedade que limitava tanto os direitos das mulheres é inesperado que uma jovem fosse notada e, inclusive, contratada graças à sua literatura anti-opressão. Apesar disso, demorou para que sua obra passasse a ser conhecida e estudada no Brasil. A primeira tradução conhecida de A cidade das damas data de 2006, seis séculos depois da publicação original da obra. Luciana Calado, responsável por essa tradução, aponta que a produção literária de Christine voltou a ganhar evidência apenas no início do século XX, devido ao aumento dos debates sobre o feminismo.

A condição da mulher


Uma cidade imaginária, criada a partir do estudo de narrativas clássicas acerca da mulher e construída por meio da palavra. Essa enciclopédia feminina que compõe A cidade das damas não é, de acordo com Calado, um livro sobre a defesa das mulheres, e sim a própria arma a ser utilizada na luta contra a misoginia. Segundo ela, ao reunir numa única obra histórias de mulheres ilustres e admiráveis, Pizan contraria o senso comum e reivindica um espaço de protagonismo para o sexo feminino. Além disso, busca trazer, por meio da compilação e da reconstrução de diversos mitos, evidências de que a mulher não é “o segundo sexo”, isto é, mera coadjuvante na vida dos homens.


Para entender melhor a relevância da obra de Christine, bem como a possível motivação por trás de A cidade das damas, é preciso conhecer o contexto em que estava inserida. Já é fato conhecido que as mulheres passam por uma longa história de opressão, que vai desde a Antiguidade Clássica - quando importantes filósofos já as ridicularizavam abertamente, como evidencia Simone de Beauvoir em seu importante livro O Segundo Sexo (Le Deuxième Sexe) - até os tempos atuais, visto que ainda se sofre com a desigualdade salarial, a divisão desigual do trabalho, a violência sexual e, inclusive, o feminicídio - homicídio motivado pelo simples fato de a vítima ser do sexo feminino. Ser mulher foi, e ainda é, sinônimo de luta. Na Idade Média, como já foi mencionado, a educação era comumente restrita a esferas frequentadas exclusivamente por homens, e as mulheres viam-se muitas vezes forçadas a casar. A partir do matrimônio, suas ocupações eram gerar filhos ao marido e cuidar da prole e dos afazeres domésticos, de modo que elas eram excluídas da esfera pública.

Na época em que Christine de Pizan escreve, contudo, a situação feminina, já precária, está em declínio. No século XV, as práticas inquisitoriais já vêm acontecendo há mais de 200 anos, e a Europa vivencia um cenário de degradação da imagem da mulher, que em breve passará a ser perseguida e queimada em praça pública na caça às bruxas, fenômeno estudado pela italiana Silvia Federici em Calibã e a Bruxa (Calibano e la strega). A própria Pizan, anos depois de ter escrito A cidade das damas, acompanha a trajetória de Joana D’Arc e chega até mesmo a escrever uma ode à heroína (Ditié de Jeanne D’Arc, 1429), que queimaria até a morte apenas 2 anos depois.

Assim, quando Christine de Pizan escreve A cidade das damas, embora a caça às bruxas ainda não seja uma prática disseminada, a mentalidade europeia já sofre as mudanças que darão origem a esse evento trágico. Conforme Federici, “no caso das mulheres europeias, foi a caça às bruxas que exerceu o papel principal na construção de sua nova função social e na degradação de sua identidade social”. Essa degradação já se construía, porém, anos antes - e é justamente essa nova imagem deformadora da mulher que Pizan busca combater com sua obra.

Na obra A cidade das damas (1405), Pizan, como narradora em primeira pessoa, apresenta a sua história. Ela mesma é a protagonista para a edificação do que denomina como “a cidade das damas”. Na construção da cidade, Christine faz dois movimentos metafóricos. Primeiro desconstrói, um por um, os argumentos que deturpavam a imagem das mulheres e que vigoravam na sua época; essa é a metáfora para escavar junto com a dama da Razão e com a “enxada da indagação”, as bases da cidade. Em seguida, apresenta exemplos infindáveis de histórias de vida de mulheres que se destacaram por sua razão, arte ou virtude. Exemplos que se configuram como um movimento de construção, como os tijolos, as paredes e os telhados dessa fortaleza.

Pizan empenha-se não apenas em exaltar a imagem da mulher: antes disso, sabe ser necessário desconstruir os possíveis preconceitos de seus leitores, iniciando a obra com um contra-argumento para, apenas então, seguir com sua enciclopédia de mitos femininos.

A castidade


Apesar de seu caráter inovador, bastante transgressor para a época em que se encontrava, Christine de Pizan passou a ser questionada pelos movimentos feministas que se consolidaram a partir do século XX. O principal motivo para isso é a aparente defesa de valores cristãos em sua obra, e, em especial, do valor dado à castidade e à virgindade femininas. Sendo o cristianismo e a Igreja Católica responsáveis por muitas crenças limitantes sobre a mulher - como a noção de que a mulher é essencialmente pecadora, o que é ilustrado pela figura de Eva -, e também pela queima de diversas mulheres, acusadas de bruxaria, a fé cristã não costuma ser associada à luta por direitos femininos. Por isso, o fato de que, em alguma medida, valores cristãos aparecem na obra de uma escritora que é considerada precursora do próprio feminismo pode causar estranhamento ou distanciamento nos leitores contemporâneos.


Em A atualidade da obra ‘A cidade das damas’: identidades e estratégias políticas, Camila Kulkamp analisa esse aspecto da literatura de Pizan. Segundo a autora, a criação de narrativas que exaltam a castidade de suas heroínas era uma forma de combater a degradação da imagem feminina na época. Conforme conta, o ataque à castidade das mulheres era, muitas vezes, usado como forma de justificar agressões contra elas:

A autora é célere ao constatar que os homens atacam a castidade das mulheres para retirar-lhes a honra e como meio para facilitar as práticas de estupro contra as mesmas. Que o ataque à castidade das mulheres era a via comum e fácil para humilhação e degradação do reconhecimento social das mulheres. Como resposta, Pizan frisa que existem muitas mulheres castas e valorosas, além de mulheres que conciliam a beleza e a castidade e cita inúmeros exemplos. Ela explica que a castidade está presente naquelas mulheres que se protegem das armadilhas dos sedutores, que a castidade é a defesa das virtudes e que existem mulheres castas que são solteiras, casadas, viúvas, virgens etc. Ademais, outro ponto importante que aparece na obra é quando a Dama da Retidão ressalta que não existe prazer na violência e que a aceitação hipotética de um contexto em que o estupro seria uma prática normal contra as mulheres representa apenas uma dor inigualável para as mesmas.

Assim, a exaltação da castidade na obra de Pizan não está diretamente relacionada à defesa de valores religiosos. Na verdade, faz parte de um processo lógico: se é atacando a castidade que os homens conseguem violar os corpos e os direitos das mulheres; então é reconstruindo e enfatizando a castidade das mulheres que a escritora pensava protegê-las de tais ataques.

Uma segunda explicação para a defesa da castidade na obra se relaciona ao cenário em que as mulheres desenvolviam sua sexualidade na época. Octavio Paz explica que, ao longo da Idade Média, as mulheres eram forçadas a se casar: o matrimônio era uma forma de o homem garantir sua descendência e, nesse contexto, o sexo era exigido da mulher, visto que sua principal função segundo a cultura patriarcal era a procriação. Assim, a castidade pode significar, para uma mulher, livrar-se da dominação masculina pela qual ela é forçada a ceder o poder de escolha sobre seu corpo e sobre sua vida. Diante desse cenário, negar a sexualidade pode significar, também, a negação do casamento e da maternidade, que exigiam a dedicação da mulher a tarefas domésticas e aos cuidados com a prole. A própria Christine de Pizan passou por um processo semelhante: afinal, foi apenas depois da morte do marido, vendo-se livre das obrigações da vida conjugal, que ela começou a escrever, enfim exercendo uma profissão para seu próprio sustento.

Ainda em relação à defesa da castidade, vale lembrar que, séculos mais tarde, a filósofa Simone de Beauvoir viria a identificar na sexualidade um desafio para libertar as mulheres de suas amarras. Em O Segundo Sexo, a autora afirma que a opressão da mulher, se comparada à opressão de raça e de classe social, é ainda mais inescapável. Isso porque, se assim o quiserem, negros podem se relacionar com negros, pobres podem se relacionar com pobres, mas mulheres heterossexuais não se relacionarão com outras mulheres. Dessa forma, as mulheres estão ligadas aos seus opressores pelo vínculo da heterossexualidade. Nesse contexto, o sexo oprime. Liberar a mulher da sexualidade é tornar desnecessária sua convivência com os homens e, portanto, evitar sua opressão.

Ainda que Beauvoir tenha vivido muito depois de Pizan, fica claro que haveria razões lógicas e filosóficas, para além das religiosas, para que a autora de A cidade das damas fizesse uma defesa da castidade em sua obra. Seria, nesse sentido, uma castidade política. Luciana Deplagne, especialista na obra de Pizan, ressalta, inclusive, que, diante da viuvez, havia dois caminhos possíveis no contexto histórico da autora: ou a vida religiosa, ou um segundo casamento. Christine recusa ambas as trajetórias - tanto a religiosidade quanto o casamento -, dedicando sua vida à escrita e à defesa das mulheres. Há, então, uma opção por estar só, “sem companheiro nem mestre” - como diz Pizan em uma de suas baladas.

As Amazonas


A história das Amazonas é narrada desde a Antiguidade e faz parte do imaginário coletivo acerca das mulheres. Como qualquer narrativa que atravessa os séculos, ela está suscetível à variações e mudanças em seu desenvolvimento. No entanto, Deplagne chama especial atenção para as diferenças entre as histórias contadas por Christine, em  A cidade das damas, e por Boccaccio, em De mulieribus claris - livro escrito pouco mais de quarenta anos antes e que serviu como modelo para a enciclopédia feminina de Pizan. Apesar da relativa proximidade histórica e cultural entre ambos os escritores, há diferenças significativas na forma como narram as aventuras das Amazonas.


Segundo nos conta Pizan, as Amazonas eram mulheres que viviam “nos confins da Europa”, numa terra chamada Sicília. Todos os homens da região, à exceção de idosos e crianças, haviam morrido por causa de uma guerra. As mulheres reuniram-se para decidir o que fazer e optaram por viver sem os homens, proibindo o acesso de qualquer indivíduo do sexo masculino ao território. Para garantir sua descendência "elas iriam a países vizinhos em determinadas épocas do ano, voltando em seguida ao seu país: se dessem a luz a crianças do sexo masculino, elas reenviariam aos seus pais, e se ao contrário fossem do sexo feminino, cuidariam de sua educação".

Nesse ponto, a história contada por Pizan encontra uma primeira divergência significativa em relação ao que narra Boccaccio: “[...] se uniam aos vizinhos para conseguir descendência e quando concebiam regressavam rapidamente à sua terra. Matavam no ato os que nasciam varões e educavam com cuidado as mulheres para milícia”. Enquanto Christine retrata as Amazonas como mulheres fortes e autônomas, que tomam para si a responsabilidade de governar e de educar suas descendentes - sem sinal de agressividade “gratuita” -, Boccaccio demonstra um olhar mais crítico para as mulheres transgressoras, vendo nelas grande violência ao sugerir que matavam imediatamente os filhos homens.

Pizan segue a narrativa, afirmando que as mulheres coroaram como rainhas Lampedo e Marpasia, duas das damas mais nobres dentre as que viviam ali. Em seguida, expulsaram do país os homens que ainda estavam lá e se organizaram num grande exército feminino. Foram até a terra de seus inimigos - aqueles que haviam matado seus maridos, irmãos e pais - e os derrotaram. A maior divergência com Boccaccio, nesse caso, é quanto a coroação de Lampedo e Marpasia: segundo o autor, elas se autoproclamaram rainhas, o que certamente as caracteriza como mulheres autoritárias, divergindo da organização bastante democrática que parece existir entre as Amazonas conforme o que é narrado em A cidade das damas.

Christine termina a narrativa do capítulo com a morte da rainha guerreira Marpasia, a quem sucedeu sua filha Sinoppe, “virgem, nobre e bela”. A jovem nunca quis se unir a homem algum e, como diz a narradora, “não teve outro amor nem prazer além das armas”. Sinoppe vingou a morte da mãe, matando todos os habitantes do país em que Marpasia fora morta; e conquistou ainda outras terras. Em relação a esse episódio, Deplagne destaca ainda uma diferença central entre as narrativas de Pizan e de Boccaccio:

A menção à morte da rainha Marpásia, que encerra o capítulo, é outro ponto revelador da divergência dos pontos de vista entre as duas narrativas. Na versão boccacciana, a morte de Marpásia - “que, aliás, se deu por ela acreditar demasiadamente em si mesma” - representa por extensão a derrota das Amazonas, uma vez que desse ataque de inimigos poucas guerreiras sobreviveram. A voz narrativa finaliza afirmando que não se recorda de ter lido algo sobre o que aconteceu com Lampedona. Na CD [Cidade das Damas], a personagem Razão relança a narrativa após o episódio da morte, preferindo não encerrar o capítulo com uma derrota, mas com as vitórias de Sinoppe, a guerreira que dá continuidade ao projeto das Amazonas [...]”

Na comparação, fica evidente que, ao se inspirar na obra de Boccaccio para construir o livro A cidade das damas e, mais especificamente, para narrar parte do mito das Amazonas, Christine de Pizan ameniza algumas passagens, adotando um olhar mais otimista sobre as personagens e ressaltando a força e bravura dessas mulheres que ousaram desafiar a dominação masculina. Assim, Pizan não apenas cria uma utopia feminina, livre da opressão, mas também evita que as personagens pareçam hostis, violentas ou fracas, como a leitura isolada da obra de Boccaccio poderia sugerir. Não se trata apenas de retratar a força feminina numa tentativa de criar identificação em suas leitoras mulheres, mas também de desconstruir o preconceito do público em geral - principalmente dos leitores homens -, que poderia condenar as personagens por sua agressividade e por seu caráter transgressivo.

Precursora feminista


Christine de Pizan foi, sem dúvidas, uma figura singular. Cerca de 400 anos antes de Mary Wollstonecraft escrever aquele que seria considerado o primeiro texto feminista, Uma reivindicação dos direitos da mulher (A vindication of the rights of woman), a autora ítalo-francesa já pensava a emancipação feminina e rebatia discursos misóginos de pensadores conhecidos de seu tempo, apesar da hostilidade que a figura da mulher enfrentava em sua época. Apesar dos pontos em comum entre sua obra A cidade das damas e o livro De Mulieribus Claris, de Boccaccio, Pizan inova por recriar mitos acerca da mulher de um ponto de vista feminino, construindo uma memória para seu sexo por meio de sua cidade imaginária, forjada por meio da palavra, no “Campo das Letras”.

A obra de Pizan é, portanto, essencial para compreender a história da opressão e da emancipação feminina. Ao longo do tempo, seus textos foram retomados por outras autoras importantes, inclusive participantes ativas do movimento feminista, como a própria Beauvoir, e hoje Pizan passa a ser mais estudada, inclusive no Brasil. É certo que, como uma mulher de seu tempo, a visão que ela tinha sobre a luta feminina diverge do olhar contemporâneo para o tema, e pode, sim, ser marcada pela religiosidade, que era forte tanto na França quanto na Itália naquela época. Isso, contudo, não é suficiente para desconsiderar sua obra que, como vemos, ainda oferece diversas reflexões sobre a condição feminina na Idade Média.

Referências




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