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A criação de narrativas em 1984, de George Orwell


Na apresentação de 1984, de George Orwell, da edição de 2020 da editora Antofágica, Gregório Duvivier lança a provocação: “A teletela não foi instalada no seu quarto à força. Você optou por ser vigiado e, pior, pagou caro por isso”. A afirmação faz referência aos dispositivos instalados nas casas dos indivíduos da sociedade distópica de George Orwell, em que a vigilância é feita constantemente através de câmeras, microfones e teletelas, além da patrulha da Polícia do Pensar.

Contextualizando melhor o livro, 1984 foi escrito pelo autor inglês George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair), em 1948, e narra a vida de Winston Smith inserido na distópica Oceania — um dos três superestados fictícios do mundo resultante da “revolução”. Lá a figura do Grande Irmão paira sobre todos os indivíduos exigindo adoração e devoção, ao mesmo tempo, serve de lembrete da vigilância constante a que estão submetidos. Para isso, há a divisão em ministérios: o Ministério da Paz (responsável pela guerra), o Ministério do Amor (responsável pela ordem), o Ministério da Fartura (responsável pela economia) e o Ministério da Verdade (responsável por notícias, entretenimento, educação e arte). Winston trabalhava no Ministério da Verdade alterando dados do passado e do presente conforme as decisões do Partido, pois, como o sistema “não se equivocava”, cada vez que a história tomava um rumo diferente, todos os registros eram alterados. O passado, segundo Winston, já havia sido alterado tantas vezes que nem mesmo ele sabia ao certo em qual ano estavam.

Logo no início, Winston Smith comete uma pequena transgressão: começa a escrever seus pensamentos em um diário. A ininterrupta observação da teletela da casa do personagem cria um clima de tensão exorbitante — o leitor sente-se tão observado quanto Winston. Apesar disso, o protagonista continua. Justifica-se, pois sua cabeça já borbulhava de ideias antes mesmo de adquirir o diário, o que para o partido, era um crime de igual condenação — o CRIMEPENSAR. A Polícia do Pensar, que contatava pessoas por um aparelho individual, estava sempre atenta a esse tipo de deslize, assim como o Grande Irmão.

O grande irmão está te observando


A artimanha do Ministério da Verdade era manipular o pensamento das pessoas: todos eram expostos diariamente aos “dois minutos de ódio” que incentivava os cidadãos a odiarem os inimigos e traidores, fomentando a narrativa do Partido. Havia os slogans (Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.) baseados em repetições simples, sem espaço para questionamentos, levando à internalização das frases como verdades. No departamento de Winston, em específico, era possível apagar a história inteira de uma pessoa e criar outra a partir do zero, como Ogilvy: “O camarada Ogilvy, que nunca existira no presente, agora existia no passado, e depois que o ato de falsificação fosse esquecido, ele existiria de maneira tão autêntica, e com as mesmas provas, quanto Carlos Magno e Júlio César”. O próprio Winston acabava se confundindo nessas alterações do passado, porque não havia prova nenhuma, mesmo as orientações que ele recebia eram apenas referências a deslizes e erratas que precisavam ser corrigidas, ou seja, o referencial de “verdade” era sempre o rumo atual. Winston não podia confiar nem mesmo em suas lembranças confusas do passado antes do Partido, pois não tinha fonte histórica para se apoiar. A história não era confiável e o Partido silenciava a todos. As crianças nascidas após a vitória do Partido cresciam adorando o Grande Irmão e odiando os traidores, já parte do regime. Os únicos que tinham lembranças confiáveis eram os proletas (cidadãos comuns que viviam afastados dos “camaradas” e por isso não eram vigiados), mas poucos sabiam de fato o que havia acontecido e também não tinham bibliografia para se apoiar, visto que o Partido destruiu todos os livros anteriores aos anos 1960 dos proletas. Sobre isso, Winston lamenta: “Até eles se tornarem conscientes, nunca se rebelarão, e até se rebelarem, não se tornarão conscientes”.

Apesar desse pessimismo, Winston procura por aliados rebeldes e acaba se afeiçoando a Julia, uma mulher aparentemente submissa ao Partido que mantém as aparências para viver de forma segura. Ao se aproximar dela, é perceptível ao leitor como o desejo por uma vida livre de vigilância, cheia de afeto, arte e prazer inunda os pensamentos de Winston. Ao se aliar a um agente disfarçado, os dois acabam presos e torturados para se adequarem às regras de Oceania. Além da punição, Winston passa por uma domesticação para que se arrependa profundamente e ame o Grande Irmão. A técnica do Partido era: “Você ficará oco. Espremeremos você até esvaziá-lo, e então o preencheremos com nós mesmos”. Ao fim, Winston acaba se adequado às regras do Partido, tendo seu espírito massacrado.

George Orwell

A opinião de Gregório Duvivier sobre as “teletelas da atualidade” faz com que seja possível enxergar aspectos considerados distópicos por Orwell na contemporaneidade. De fato há uma exposição intensa nas redes sociais e uma vigilância exacerbada, principalmente quando se pensa em influencers e celebridades. Para além disso, mesmo pessoas anônimas acabam expondo parte considerável de suas vidas em uma rede de alcance imensurável. Há infinitos relatos de stalkers que conseguem localizar suas vítimas acompanhando seu dia a dia nas redes sociais e observando detalhes nas fotos e vídeos. Isso sem considerar a exposição dos dados dos usuários a grandes indústrias comerciais.

Pensando somente na decisão de cada usuário de ter uma “teletela” e abrir mão de boa parte de sua própria privacidade, é possível se questionar: por quê? Por que cada vez mais espaços de lazer estão se tornando instagramáveis? Por que cada dia mais aparecem “bebês influencers”? Por que vários profissionais têm gastado tempo e recurso para estar presentes nas redes?

Stuart Hall aponta para uma fragmentação da identidade. Devido ao colapso da ordem social ocasionada por movimentos sociais de contestação de espaços e novas disputas de poder, visibilizando comunidades tradicionalmente marginalizadas, a identidade do “sujeito universal” deixa de ser unânime. Esse período marcado pela aceitação de identidades até então desviantes abre espaço para novas formas de existir; todavia também gera uma necessidade de performar e afirmar uma identidade.

As redes sociais conseguem organizar esses sujeitos de acordo com gostos e personalidades em comunidades, conectando-os e garantindo exposição o suficiente para que performem sua identidade e sejam encontrados por seus pares. O preço desse sentimento de pertencimento gerado pelas redes é a própria privacidade.

A possibilidade de criar uma narrativa para si mesmo, real ou fictícia, passa pela história da fotografia. No início, quando inventada, a fotografia era um evento, pois era preciso contratar um fotógrafo, decidir um local, embelezar os participantes e enfim tirar uma única fotografia que seria o registro daquele momento montado. Depois, com as câmeras portáteis, mais fotografias eram tiradas: de momentos em família, viagens, crianças; essas fotos eram reveladas (estivessem boas ou não) e iam parar em álbuns de fotos que somente amigos próximos e parentes veriam. Essas fotos, entretanto, permaneciam por décadas. Com as câmeras digitais e de smartphones a urgência em revelar fotos acabou. As fotografias iam direto para o computador ou para um álbum digital nas redes sociais. A partir daí também se tornou viável apagar e escolher fotos; em seguida, viriam as selfies, os filtros e as edições elaboradas ao alcance da maioria das pessoas.

Cena do filme 1984

O interessante é que à medida que a fotografia se tornou acessível e prática, ela também se tornou descartável. De forma parecida com as narrativas históricas de 1984 apagadas e recontadas por outro viés, nos feeds das redes sociais isso também passou a acontecer. Após um término de namoro é comum que as fotos de casal sejam apagadas; o fim de uma amizade, um discurso que não já não é mais coerente, um episódio que se tornou desinteressante… tudo isso pode ser apagado da narrativa virtual, e quem entrar posteriormente nesse perfil jamais saberá que antes haviam mais informações. O que se vê é sempre a história editada.

É justamente o desejo de autoafirmação que leva os indivíduos a se exporem na internet. A pagarem para ser vigiados - principalmente, desejarem ser vistos.

A estratégia do Partido, em 1984, ao embaralhar real e irreal, é criar uma narrativa persuasiva e manipulativa. No livro isso é feito através de uma junta de pessoas dispostas a garantir o funcionamento da configuração de Oceania. Pessoas como Winston não podiam cometer o crimepensar para que não compreendessem todo o aparato, e assim não se rebelassem contra aquele regime. Todos trabalhavam reconstruindo parte da história sem questionar ou refletir, pois caso o fizessem seriam “vaporizados” - ou seja, o Partido os sequestrariam, torturariam, matariam e apagariam sua história. Winston pensa “Se o Partido era capaz de enfiar a mão no passado e afirmar que isso ou aquilo de tal evento nunca tinha acontecido… com certeza, isso era mais aterrorizante do que simples tortura ou a morte”.

O livro aponta a importância da arte no contexto político. A língua e a literatura eram os principais alvos do Partido: “Os livros também eram constantemente recolhidos e reescritos, e eram invariavelmente republicados sem admitir que qualquer alteração tinha sido feita”. A Novilíngua, desenvolvida pelos membros do Partido, tinha o objetivo de tornar o pensamento impossível, cortando palavras e diminuindo seus sentidos. Se não há palavras para expressar as ideias, elas não podem existir. A Novilíngua também garantiria a impossibilidade de acessar a literatura anterior ao Grande Irmão.

A “arte” defendida pelo Partido era somente aquela repetitiva e que não instigasse o pensamento. Imagens do Grande Irmão, slogans diretos, palavras objetivas e notícias alteradas eram as aceitáveis, criadas e geradas pelos membros do Partido. Pensando nisso, é importante questionar: e se Orwell tivesse previsto que a tecnologia transformaria todos os usuários em criadores? Como seria o trabalho desse Partido se, ao invés de recolher jornais e livros e substituí-los, eles tivessem apenas que editar publicações e repostar fotos e vídeos? Qual é o tamanho do perigo quando todos podem editar, copiar e reescrever a história na internet? Qual é a narrativa verdadeira quando todas as verdades se chocam nas redes?

Quando Winston começa a escrever ele se coloca como criador de narrativas, e não mais apenas um telespectador, criando registros históricos através de sua própria visão que, uma hora ou outra, iriam contradizer as notícias editadas pelo Partido. A escrita do seu diário, por si só, já foi um ato revolucionário. Winston colocou sua “aura” nos textos que escreveu, tornando-os assim, um objeto artístico.



Walter Benjamin chama de “aura” a autenticidade da obra de arte, o que vai diferenciá-la da existência serial. A reflexão que Orwell traz em relação ao papel da arte na política - seja pelo seu uso na campanha do Grande Irmão, seja na supressão do seu livre exercício em Oceania - se faz pertinente à pergunta do que pode ser considerado arte. A discussão das obras feitas por Inteligência Artificial tem crescido muito - efervescendo após um sistema de Inteligência Artificial ter vencido um concurso artístico no Colorado. Alguns críticos acusam as IAs de possuírem algoritmos que imitam traços estéticos de outros artistas. Pensando no valor dessas obras de arte é interessante pensar que se o intuito é gerar reflexões, o que obras meramente repetitivas tem a acrescentar?

Sempre que se adentra a discussão sobre a tecnologia digital nas artes o exemplo da fotografia é revisto. Entretanto, a fotografia não tomou o lugar da pintura. O valor comercial das pinturas foi alterado e, na época, o medo de “perder o emprego para uma máquina” foi instaurado entre alguns artistas. Entretanto, ambas as técnicas dependem de um recurso (tintas e tela para o pintor, e câmera e papel para o fotógrafo) e do olhar humano sob determinado objeto. Tanto é verdade que atualmente, mesmo pessoas com acesso a câmeras, continuam contratando fotógrafos - justamente pelo olhar artístico. As obras feitas pelas IAs, por outro lado, não passam pela perspectiva artística e/ou humana.

Como todo debate, há um outro ponto: alguns artistas de obras digitais consideram esse tipo de sistema um aliado para diminuir o fluxo de trabalho mecânico, podendo eles se concentrarem na criação. Por essa visão, a arte digital deve ter sua validação, todavia, o que ocorre em muitos casos é a imitação de artistas já existentes em um caldeirão estético acrítico proporcionado pela IA.

Outra questão a ser pensada em relação às redes e as Inteligências Artificiais é a criação e disseminação de notícias falsas. Assim como Winston trabalhava no Ministério da Verdade criando notícias de acordo com a vontade do Partido, a prática já é comum na internet atualmente. Como todos podem ser criadores, e a internet consegue disparar a entrega dessas notícias, cabe ao leitor descobrir o que é verdade e o que não é - as bem conhecidas fake news. E disso surge mais um problema: como provar que uma questão foi distorcida? Como validar a fala de uma pessoa em oposição a uma má interpretação? O problema, bem como em 1984, afeta a política e até mesmo a saúde pública - como inúmeros exemplos de informações falsas durante a covid-19.

O desprezo pela privacidade e o desejo por performar uma vida espetacular nas redes cria um novo tipo de “arte” voltado para o ego, o que em muitos casos abre espaço para exposição de dados e intensa imitação de personagens que já existem na mídia. A arte reflexiva perde espaço. A urgência de consumir um conteúdo poda a experiência crítica, inserindo legendas e outros artifícios para facilitar a compreensão da obra e assim atingir mais pessoas. A arte é criada para ser consumida rapidamente porque seu tempo de existência é curto - uma arte postada no feed do Instagram, por exemplo, parará de circular em menos de uma semana.

Por fim, é essencial repensar o papel da arte na manipulação de narrativas, seja a narrativa do ego nas redes sociais, seja a narrativa histórica que está sendo construída. Para Winston Smith, contar sua própria história, escrevendo em seu pequeno diário, foi um ato de rebeldia. Para muitos escritores ter colocado suas ideias e vivências no papel foi um ato revolucionário. Até que ponto a arte é política?

Referências



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Comentários

  1. Que texto magnífico, Flávia! Me pego pensando em 1984 em vários momentos. Foi um livro que me marcou e me assustou muito (preferiria que me jogassem em Jogos Vorazes do que na Oceania, juro) mas ao mesmo tempo reflito sobre como nossa realidade é parecida com a da obra em alguns pontos. Adorei o paralelo que você fez com a história da fotografia, gosto muito do texto do Walter Benjamin que você mencionou, e agora com certeza vou pensar ainda mais sobre esse livro depois de ler suas reflexões. Espetacular!

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