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Os traumas de Perséfone em Lore Olympus

Não é difícil encontrar: uma breve busca no navegador revela facilmente algo quase nunca mostrado nas adaptações infantis que líamos quando crianças - os estupros na mitologia grega. Das personagens mais conhecidas, o número daquelas que sofreram alguma violência sexual ultrapassa cinquenta. Isso para não falar de personagens menores, coadjuvantes ou simples menções durante uma fala ou outra. 

O abuso sexual é uma das violências mais terríveis que alguém pode sofrer - e uma das mais comuns. No ano passado, o Brasil teve média de 1 estupro a cada 9 minutos - isso é muita coisa. Quando a vítima sobrevive, as marcas não a permitem esquecer. O ciclo de violência se perpetua porque é praticamente impossível conseguir seguir em frente. Os índices de suicídio entre as sobreviventes são altos. Ainda assim, em produções fictícias atuais, parece que vivemos em tempos tranquilos e que tal violência pertence a um passado distante. 

Se os mitos são adaptados para não embrutecer o olhar infantil, então, por que uma autora trataria de um tema tão terrível de maneira aberta numa obra destinada a um público jovem? Numa sociedade que nega a violência sexual contra mulheres, é de se pensar que tal trama seria modificada numa adaptação jovem do mito de Perséfone e Hades. Todavia a temática está lá - e muito bem trabalhada. 

O mito de Perséfone e Hades em Lore Olympus 

Lore Olympus se aprofunda no mito de Perséfone e Hades. Se o primeiro volume é introdutório e repleto de acontecimentos, o segundo é mais lento - porém, não com menos desenvolvimento. Dessa vez, o desenvolvimento é interno - e acompanhamos o trauma de Perséfone se assentando. O estupro sofrido a faz distanciar-se até mesmo da amiga com quem está morando - a deusa Ártemis. Os sentimentos por Hades avolumam-se, mas existe o trauma, e isso precisa ser respeitado. 

É interessante como a autora, Rachel Smythe, decidiu contar uma história de amor entre Perséfone e Hades, tirando dele o papel original de abusador e colocando-o em Apolo, o deus do sol. Existe certo fundamento nisso: na visão grega clássica, quando Homero conta o rapto de Perséfone, ele estabelece alguns preceitos que para nós, pessoas do século XXI, podem escapar. Um deles é que pai e mãe eram serem com papéis bem diferentes na Grécia antiga. Enquanto a mãe era o familiar biologicamente responsável, era o pai quem agia como o responsável social pela criança. Era ele quem tomava as decisões de como ela viveria, o que aprenderia, com quem casaria - a filha passava das mãos do pai para as mãos do marido através da troca paterna, que consentia com aquele arranjo. 

Na mitologia, Perséfone é filha de Zeus e de Deméter. Em Lore Olympus, isso é alterado para que ela seja filha apenas de Deméter - e Zeus seja um parente distante da deusa, com quem elas não têm contato. Todavia a mitologia nos mostra como o rapto de Perséfone foi autorizado por Zeus - Hades, ou Aidoneus, não a levou sem que o irmão mais velho e deus do Olimpo autorizasse. E por que essa autorização se deu? Porque, ainda que não fossem comuns uniões incestuosas ou endogâmicas, todo o arco de Perséfone é visto como a passagem da infância para a idade adulta - é um arco de amadurecimento. E na visão grega clássica, Perséfone é ajudada por sua família a tornar-se mulher - até mesmo ganha um nome por causa disso - "Perséfone". 

Mas enquanto o mito nos apresenta uma versão em que não importam os choros, o trauma, as perdas e a dor da jovem deusa, e sim o que seu pai e seu tio - Hades - acharam melhor, de acordo com suas vontades, Rachel Smythe pontua incessantemente a questão do nome de Perséfone e do trauma que o originou. Claro, há modificações - mas a história está lá, os significados estão lá - porém, desta vez, pelo ponto de vista de Perséfone. 

Lore Olympus, vol. 2 (imagem: reprodução)

Essa ainda é uma história de amadurecimento - mas a maturidade não se dá por causa do estupro; ela acontece porque Perséfone está vivendo, e viva, ela segue em frente. Os gatilhos ainda existem, o trauma também, mas ela sobreviveu e se cerca de coisas que lhe fazem bem. 

Ao olharmos para a mitologia grega, é importante lembrarmos que tais histórias funcionavam como reflexos da sociedade daquela época. Nada mais justo do que seus recontos estarem de acordo com a forma como enxergamos o mundo hoje em dia. 

Um dos pontos mais questionados em Lore Olympus é como uma deusa chamada Kore passa a se chamar Perséfone. Kore é uma palavra grega que significa "donzela"; já Perséfone significa "aquela que destrói e assassina". Na mitologia grega, quando a donzela sem nome (Kore) foi raptada por Hades, ela passou a ter um nome, deixando de ser uma donzela - através do estupro - e comendo da semente da romã, uma metáfora sobre a violência da semente do estupro deixada dentro de si - e como isso, embora não tivesse gerado filhos, a modificou, gerando morte. Kore morreu e quem vive é Perséfone. O trauma lhe deu um nome e definiu sua personalidade. Na mitologia, isso é visto como um rito de passagem - da casa paterna ao lar marital, a violência de deixar sua identidade para trás e assumir outra é feita com sangue. 

Tal violência também existe em Lore Olympus, mas a graphic novel fala muito mais conosco, leitores do século XXI, do que somente reconta tal e qual o mito de Perséfone. O trauma que lhe modifica o nome é outro - sua identidade, ainda que modificada pelo abuso sexual, não é inteiramente existente por causa dele. Suas memórias fazem parte de quem ela é, mas não lhe definem. 

Uma releitura feminista 

Quando se muda o foco da trama e se dá voz para Perséfone, se tem uma releitura feminista do mito. Se as histórias que contamos são reflexo dos tempos atuais, Lore Olympus é uma narrativa que mostra o cansaço de mulheres que precisam lidar em silêncio com o abuso e conviver com seus abusadores. Sendo uma adaptação destinada ao público jovem, também ajuda a formar a visão de que a diminuição de mulheres, o paternalismo e o abuso não são tolerados, como diz Sierra Schiano no artigo "The 'rape of Persephone' in children's media: feminist receptions of classical mythology"

"As adaptações mais radicais do estupro de Perséfone comunicam que relacionamentos entre homens e mulheres não devem apenas ser livres de violência sexual, mas que eles devem ser baseados em consenso mútuo e igualdade. Considerando a faixa etária que essas adaptações almejam, proponho que essas adaptações mais radicais do estupro de Perséfone têm o potencial de moldar o entendimento de suas audiências a respeito de políticas de gênero de uma maneira positiva."

Mas também é uma narrativa sobre recuperar a própria vida, não se envergonhar de seu passado e estar aberta ao amor - sentir-se digna de amor apesar de tudo, permitir-se ser feliz sem que a escuridão de memórias dolorosas lhe tome conta. Os mitos gregos não precisam ser adaptados - mas as histórias não são estáticas. Mesmo na literatura grega clássica, cada autor contava os eventos de uma maneira, acrescentando, omitindo ou modificando pontos, tudo para que suas personagens refletissem a sociedade que as conheceria. A história de Perséfone continua nos servindo como inspiração.


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Referências 



Arte em destaque: Mia Sodré



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Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Excelente texto! 💖

    Sinto que Lore Olympus finalmente colocou Perséfone como protagonista de sua própria história, mensagem muito atual e que acaba colocando-a no lugar da heroína.

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