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Breves memórias da bibliofilia


Richard de Bury (1287–1345), bispo de Durham e tesoureiro do rei Eduardo III da Grã-Bretanha, é conhecido como o primeiro "amigo do livro". Às próprias expensas, formou uma biblioteca de alguns milhares de livros, possuía uma biblioteca separada em cada uma de suas residências, e onde quer que estivesse morando havia tantos livros espalhados no dormitório que dificilmente alguém conseguia ficar em pé ou se mover sem pisá-los. Todos os dias à mesa ele prosseguia a leitura de um livro enquanto os outros conversavam e, em seguida, iniciava um debate sobre o tema abordado no livro.

De Bury foi o escritor da obra medieval Philobiblon, um conjunto de textos em latim sobre aquisição, preservação e organização de livros, e sobre a busca pela sabedoria, com um teor altamente apaixonado; uma defesa das bibliotecas, dos excessos do próprio autor e do livro como maior expressão da beleza humana. Em um trecho marcante, ele declara:

“Nos livros eu encontro os mortos como se estivessem vivos; nos livros eu prevejo o que está por vir; nos livros embates bélicos são travados; dos livros as leis da paz são vigoradas. Todas as coisas são deturpadas e deterioradas com o tempo; Saturno não para de devorar os filhos que gera; toda a glória do mundo teria sido abandonada ao esquecimento se Deus não tivesse fornecido aos mortais a cura dos livros.”

Richard de Bury faleceu quatro meses após terminar Philobiblon, legando sua vida e seu amor à escrita, tornando-se como um livro, imortal. Um dos primórdios da bibliofilia.

Philobiblon, de Richard de Bury (edição de 1483)

A bibliofilia é, em síntese, o amor aos livros, e acaba por bifurcar-se em amor à literatura, ou simplesmente o saber da holoteca, e amor ao objeto-fetiche, ao tesouro-livro. De um lado, livros como metaforização e decifração da vida, como subversão, como informação que se torna conhecimento e, por fim, sabedoria. Do outro, a relação física entre livro e leitor. Ambos podem ser intrinsecamente egoístas e, assim, humanos. Muitas vezes, acabam se tornando excludentes: que leitor nunca foi elogiado pelo mero ato de ler? Como se fosse um ato impenetrável, especial, distante. Para Aristóteles, colecionar livros fazia parte das tarefas do intelectual.

Entre livros sagrados, como a Bíblia e o Alcorão, e os romances de cabeceira, para Jorge Luis Borges, o livro possui uma certa santidade. Santidade essa que não somente contextualiza o culto ao conhecimento e objeto-livro, mas também uma santidade a ser preservada. O livro é o instrumento central da humanidade. Segundo Borges, os demais são extensões de seu corpo: 

“O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.”

Paralelamente, a bibliocleptomania é definida como compulsão ou vício de furtar livros, uma exacerbação da bibliomania e um problema custoso do século XXI, que é tão antigo quanto a história das bibliotecas. Bibliocleptas, ou bibliocleptomaníacos, são substancialmente bibliófilos ricos e intelectuais responsáveis por astuciosos roubos de volumes raros.

No Brasil contemporâneo, as quadrilhas e o mercado da bibliocleptomania são esquemas milionários. Laéssio Rodrigues de Oliveira é o maior ladrão brasileiro de livros raros. Seus saques vão de fotografias do funeral de Dom Pedro II até primeiras edições autografadas de grandes escritores da literatura nacional. "Minha história toda foi pobre. Ser rico é bom. É ótimo. Não estou falando 'ser riquíssimo', como esse povo que fica rico demais e aí vira essa palhaçada, essa desigualdade do caralho. Mas ser independente, morar bem, fazer o que quer, entendeu?" – diz Laéssio. 

Ele também confessa: "Eu vivia num mundo encantado. Eu era uma bicha louca, desvairada, achava que aquilo nunca iria acabar, que nunca iria dar problema". Era colecionista e amante do vintage desde pequeno e especializou-se em Biblioteconomia, embora atacasse o patrimônio das maiores bibliotecas de todo o país. "Era passatempo de gente rica. Lá, eu me sentia madame". No período que passou em uma certa penitenciária, Laéssio chegou a montar uma biblioteca prisional, inspirado na ex-presidente Dilma Rousseff quando foi presa durante a ditadura militar.

A questão é muito maior do que “roubar livro velho”. Tal bibliolatria e colecionismo, porém, são históricos. Livros saqueados, por si só, remontam à Antiguidade Clássica, quando bibliotecas romanas eram ocupadas, em grande parte, por obras gregas pilhadas da Grécia. Segundo Alberto Manguel, em Uma história da leitura, “ladrões de livros eram uma praga na Idade Média e na Renascença; em 1752, o papa Benedito XIV lançou uma bula segundo a qual os ladrões de livros seriam excomungados”. Em seguida, ele cita os avisos que na época eram inscritos em obras valiosas, os chamados ex libris:

"O nome de meu senhor acima vês,
Cuida portanto para que não me roubes;
Pois, se o fizeres, sem demora
Teu pescoço... me pagará.
Olha para abaixo e verás
A figura da árvore da forca;
Cuida-te portanto em tempo,
Ou nesta árvore subirás!"

“Para aquele que rouba ou toma emprestado e não devolve um livro de seu dono, que o livro se transforme em semente em suas mãos e o envenene. Que seja atingido por paralisia e todos os seus membros murchem. Que definhe de dor, chorando alto por demência, e que não haja descanso em sua agonia até que mergulhe na desintegração. Que as traças corroam suas entranhas como sinal do Verme que não morreu. E quando finalmente for ao julgamento final, que as chamas do Inferno o sumam para sempre.”

Exemplos de bibliocleptomania vão desde a Revolução Francesa, quando as bibliotecas do clero e da aristocracia eram alvos de saques, até o Brasil atual, no qual a Universidade Federal de Minas Gerais precisou com urgência fazer um investimento milionário para a instalação de um sistema de segurança eletrônica e sensores em todas suas bibliotecas após inúmeros furtos: “o que parece atrair mais o roubo são obras antigas e a beleza das gravuras”, diz Simone Santos, diretora do Sistema de Bibliotecas da UFMG. 

No universo da ficção, a personagem Liesel, de A menina que roubava livros, mais salva do que surrupia os exemplares queimados pelo nazismo alemão na Segunda Guerra Mundial. Seu primeiro furto, que inicia uma história sobre morte, narrada pela própria Morte, é o livro do coveiro que enterrou seu irmão. Aprender a ler é o acalento de Liesel em meio ao medo e a solidão.

Em 1803, nasce Guglielmo Brutus Icilius Timeleone Libri-Carucci dalla Sommaja, ou o Conde Libri, um dos maiores bibliófilos e ladrões de livros da história. Em 1841, Libri, conhecido por sua erudição e conhecimento da história do livro, conseguiu um cargo que dava acesso a bibliotecas de toda a França. Armado com tal posição, que envolvia a catalogação das obras, seu conhecimento especializado e uma enorme capa que utilizava para esconder seus espólios, estava sempre viajando pelo país e exigia ficar sozinho nos arquivos das bibliotecas. Assim, gradualmente foi crescendo sua coleção de livros, autógrafos, manuscritos, cartas, todos raríssimos e de imensurável valor. 

Em 1847, estimava-se um valor de 500.000 francos para o tesouro bibliográfico (roubado) de Libri. Em 1848, houve uma revolução na França, e Libri descobriu que estava prestes a receber um mandado de prisão, mas ele não esperou por isso e fugiu para Londres. Antes de deixar a França, no entanto, ele providenciou que 30.000 de seus livros e manuscritos fossem enviados a ele na Inglaterra em dezoito baús. Logo, apesar de entrar num exílio forçado sem sua fortuna, com a venda dos livros roubados foi capaz de criar uma nova.

O Conde Libri também não hesitava em mutilar as obras, cortando páginas para exibir e vender. Ademais, Alberto Mangel argumenta: 

“De acordo com o mexeriqueiro do século XVII Tallemant des Réaux, roubar livros não é um crime, exceto se os livros forem vendidos. O prazer de segurar um volume raro nas mãos, de virar as páginas que ninguém virará sem nossa permissão, com certeza movia Libri até certo ponto. [...] Por que esse bibliófilo apaixonado vendia os livros que roubara correndo tantos riscos? Talvez acreditasse, como Proust, que ‘o desejo faz todas as coisas florescerem, a posse as faz murchar’. Talvez precisasse apenas de alguns poucos e preciosos, selecionados como as pérolas raras de seu butim. Talvez os tenha vendido por pura ganância – mas essa é uma suposição muito menos interessante.”

É aí que entra o ex libris – que são marcas de proveniência bibliográfica responsáveis por afirmar a memória, com nome do dono e arte simbólica, atualmente usados em maior parte por bibliotecas. Os ex libris surgiram antes mesmo do Renascimento, entretanto, foi a partir do surgimento da Prensa de Gutenberg, em 1450, que passaram a ser mais utilizados, principalmente por colecionistas e bibliófilos. Muitas vezes, eram usados como símbolos de prestígio social, requinte intelectual e poder. Esses patrimônios são rastros de posse e da vida social do livro, assim como dedicatórias (rastros de relações afetivas), pó e amarelamento (rastros de tempo), ou até mesmo rasgos e rabiscos (rastros de uso). São, então, representações do elo entre sujeito e objeto, leitor e literatura. De acordo com Charles Lamb, "lemos melhor um livro que é nosso e que nos é conhecido há tanto tempo que sabemos a topografia de suas manchas e de suas orelhas, e lembramos que ele se sujou quando o lemos durante o chá com bolinhos amanteigados".

Inclusive, Manguel explica: 

“O ato de ler estabelece uma relação íntima, física, da qual todos os sentidos participam: os olhos colhendo as palavras na página, os ouvidos ecoando os sons que estão sendo lidos, o nariz inalando o cheiro familiar de papel, cola, tinta, papelão ou couro, o tato acariciando a página áspera ou suave, a encadernação macia ou dura, às vezes até mesmo o paladar, quando os dedos do leitor são umedecidos na língua (que é como o assassino envenena suas vítimas em O nome da rosa, de Umberto Eco). Tudo isso, muitos leitores não estão dispostos a compartilhar [...]. Ocorre também que a posse física se torna às vezes sinônimo de um sentimento de apreensão intelectual. [...] Acabamos achando que olhar para a lombada dos livros que chamamos de nossos, os quais obedientemente montam guarda nas paredes de nossa sala, prontos a falar conosco e somente conosco ao mero adejar das páginas, nos permitisse dizer ‘tudo isso é meu’, como se a simples presença deles já nos enchesse de sabedoria, sem que precisássemos abrir caminho por seus conteúdos."

Woman Reading. Portrait of Sofia Kramskaya, de Ivan Kramskoi (1866)

Hodiernamente, nas redes sociais, cresce a comunidade literária – e é cunhado o termo “bookstan” (fã de livro), o que gera debates sobre o consumismo inconsciente. Estantes particulares abarrotadas de livros, esteticamente cirúrgicas, reproduzidas de um modelo padrão. O livro é comprado como objeto ou literatura sem senso crítico, colocado num pedestal onde não se pode manuseá-lo livremente. O ato de ler apenas agrega à autoimagem do consumidor-leitor, sobrepondo o prazer do enunciado à enunciação ou vice-versa, sem lhe ser complementar. Acima de tudo, é sempre privado e acelerado, um quê de “possuir pelo possuir”, um reflexo do capitalismo e da vida na internet. Tudo isso contradiz a 1ª Lei da Biblioteconomia: os livros são para serem usados.

Além disso, vivemos na era da superinformação, da tecnotrônica, da sociedade disruptiva saturada de informações que nada pode distinguir do ruído de fundo geral. Vivemos na era da memória. Não somente pelas nuvens digitais com milhares de fotos, mas às vezes também por um culto ao pretérito, ao vintage, ao retrô, ao clássico. Seja no quesito estético, mercantil, intelectual, social, seja por permanências retrógradas ou demanda por justiça, em meio ao futurismo acelerado do século XXI, a sociedade respira pelo passado, para sentir pertencimento ou dar voz à sua luta. Afinal, essa questão vai de brechós e adaptações cinematográficas de Jane Austen até políticas públicas para redemocratização e pagamentos de débitos históricos. 

A explosão de uma cultura baseada em reminiscência, de acordo com a socióloga Elizabeth Jelin, “coexiste e se reforça com a valorização do efêmero, o ritmo rápido, a fragilidade e transitoriedade dos fatos da vida” e “é em parte uma resposta ou reação [...] a uma vida sem âncoras ou raízes”. A História sempre foi vital para a humanidade, e agora isso se dá num sentido muito mais pessoal ou comunitário, e absolutamente cotidiano. Mais importante ainda: para todos, não apenas elites. Para grupos oprimidos, por exemplo, a recuperação e ressignificação de obras seculares – como se faz em A canção de Aquiles (da autora contemporânea estadunidense Madeline Miller) com a Ilíada, de Homero – é um trabalho de memória capaz de dar força e um certo sentimento de validação. Infelizmente, nossos rastros bibliográficos sofrem por censura ou degradação, seja natural ou humana.

Tempo, passado e memória são subjetivos e complexos, construídos por pessoas reais que vivem e sofrem, e suas instituições e organizações. A experiência humana é um emaranhado de vivências, próprias e alheias, sobrepostas, impregnadas, significadas, ressignificadas, perdidas. Infaustamente, esse excesso de passado às vezes vem em forma de esquecimento seletivo, instrumentalizado e manipulado, como ocorre com o crescimento do neonazismo no Brasil e no mundo inteiro. É um suspiro de alegria perceber como a História urge que nos distanciemos do passado aproximando-nos do mesmo. No fim, seja pelo tempo ou pela alienação ou quaisquer coisas mais, não são nossas mentes humanas apenas bibliotecas saqueadas?

Referências




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Comentários

  1. Belo texto! Quando você faz a observação sobre "a explosão de uma cultura baseada em reminiscência," lembrei do fenômeno parecido que acometeu a classe artística vitoriana, que, acuada pelo progresso e inovação da rev. industrial, se voltou para a antiguidade clássica de forma idealizada. O tempo corre, mas nossa resposta aos desconhecida é sempre muito parecida, né?

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