Baseado no livro homônimo de Thomas Harris (1988), o filme O silêncio dos inocentes (The silence of the lambs, 1991) foi o maior responsável por eternizar, no imaginário coletivo, a imagem de Hannibal Lecter, o psiquiatra canibal interpretado por Anthony Hopkins. Apesar do impacto que causa a personagem – um homem instruído e inteligente que sente prazer em comer carne humana –, é comum interpretar o longa-metragem apenas como um clássico do cinema de terror, um ótimo filme de investigação policial. No entanto, a obra ganha novos significados quando analisada à luz de A política sexual da carne (The sexual politics of meat, 1990), de Carol J. Adams.
Em seu livro, Adams reflete sobre a existência de uma profunda relação entre machismo e consumo de carne. Tanto as mulheres quanto os animais são considerados inferiores e, por isso, são oprimidos. Carol mostra, inclusive, vários exemplos que elucidam essa conexão, apontando para um imaginário coletivo que animaliza mulheres e sexualiza animais. Essas ideias podem ser encontradas também, embora de forma implícita, em O silêncio dos inocentes.
A condição feminina
O filme acompanha a trajetória de Clarice Starling, policial em treinamento encarregada de conversar com Hannibal Lecter, preso há oito anos, a fim de desvendar a identidade de um serial killer. Nesse sentido, a trama realmente se assemelha à maioria dos filmes policiais, que têm a caça ao criminoso como principal aspecto do enredo.
Logo fica claro, no entanto, que a obra possui camadas mais profundas de significado, revelando o machismo institucionalizado: Clarice é uma mulher num mundo de homens, e precisa se adequar a esse ambiente masculino para conseguir o que deseja – desvendar o crime, sim, mas também ascender em sua carreira. Isso fica evidente já nas primeiras cenas, quando ela é mostrada como a única mulher num elevador cheio de homens; um pontinho azul num mar vermelho.
Clarice Starling contraria as normas da sociedade ao ser ambiciosa. Talvez ainda mais transgressoras sejam sua coragem e sua inteligência, pois ela está inserida num contexto em que a mulher é vista apenas como um objeto, passivo e desprovido de vontade própria. Sua atuação na investigação incomoda a maior parte dos homens, mas alguns outros dão em cima dela, como o diretor da prisão em que Lecter está detido ou um colega que a ajuda em certa altura. Ela é especialmente objetificada quando o vizinho de cela de Hannibal, que a assedia verbalmente assim que a vê, ejacula nela. Assim, para conseguir o que quer, ela deve se sujeitar a atitudes e comentários machistas.
O silêncio dos inocentes (1991) |
O fato de tudo isso acontecer com a protagonista chamou a atenção de espectadores para o machismo institucionalizado que a obra busca denunciar. Outro ponto crucial que auxilia na construção da crítica é o modus operandi do assassino que Clarice investiga, já que suas vítimas eram apenas mulheres e elas tinham parte de suas peles retiradas pelo homem.
Para além dessas questões, pouco se discute um outro importante aspecto da trama: a relação entre a misoginia e o tratamento dado aos animais na obra.
Hannibal Lecter e o consumo de carne
Em A política sexual da carne, Adams reflete sobre a histórica associação entre masculinidade e alimentação: conforme observa a autora, a carne foi associada, ao longo do tempo, à força e à virilidade, enquanto as plantas, associadas a uma dieta feminina, foram consideradas alimentos de ordem inferior – afinal, as mulheres eram também vistas como inferiores. Isso fica evidente quando dizemos que alguém está "em estado vegetativo" para nos referir a uma condição de inércia, impotência, passividade, e a autora fornece ainda outros exemplos para deixar claro como essa mentalidade persevera até hoje:
"Uma propaganda do utilitário esportivo Hummer de 2006 apresenta um homem comprando tofu num supermercado. Ao lado dele outro homem compra uma grande quantidade de 'carne suculenta'. O homem que compra tofu, preocupado com a sua virilidade por causa do outro homem com toda aquela carne ao seu lado na fila, sai correndo do supermercado e vai direto até um revendedor Hummer. Compra um Hummer novinho e é visto dirigindo feliz, mascando ruidosamente uma cenoura. O mote original do anúncio era 'Restaure a sua masculinidade'."
Numa sociedade falocêntrica, os poderosos comem carne, explica Adams. No entanto, é preciso saber quem pode virar alimento: na época das Grandes Navegações, o horror gerado por povos que comiam a carne de seus semelhantes justificou o domínio europeu sobre eles – afinal, alimentar-se de outros humanos revelava que os nativos eram "menos civilizados". Desde então, consolidou-se a visão dos canibais como bárbaros, amorais, pessoas incapazes de se adequar à vida em sociedade.
Hannibal Lecter mostra o contrário: inteligente, instruído, apreciador de arte e de gastronomia, gosta de degustar carne humana acompanhada por um bom vinho. Ele não é menos civilizado. Na verdade, ele é um exemplo de civilização: suas preferências alimentares são apenas uma consequência daquilo que já acontece. Se os humanos consideram que outras espécies são inferiores e que, portanto, podem comê-las, o que impede que um homem que se sinta superior aos demais se alimente daqueles que considera insignificantes? A lógica é a mesma, embora agora aplicada à mesma espécie. É um risco que se corre ao assumir que alguns animais podem virar comida.
Buffalo Bill e a retalhação feminina
Buffalo Bill é o assassino procurado por Clarice. Explica-se, a certa altura, que ele é chamado assim porque gosta de "skin his humps", isto é, de esfolar suas reses. Sua assinatura – aquilo que o distingue de outros criminosos – é o fato de que as vítimas são mulheres cuja pele fora parcialmente arrancada depois da morte, da mesma forma como se tira o couro do gado. Ao chamá-las de "reses", a própria obra evidencia, talvez sem intenção, a aproximação entre o tratamento dado às mulheres e a outros animais, considerados inferiores.
O silêncio dos inocentes (1991) |
O fato de não haver vestígios de abuso nos corpos surpreende a polícia que, de costume, imaginaria que a agressão às mulheres seria fruto de desejo sexual. Clarice, então, é levada a criar suas próprias teorias sobre o que teria ocasionado os crimes e, principalmente, sobre o que estaria por trás da assinatura do assassino. Num primeiro momento, imagina que Bill esfole as vítimas para guardar as peles como lembranças de seus crimes, como fazia Ed Gein, o serial killer que inspirou Psicose, de Alfred Hitchcock.
Mas a pele das vítimas tem um significado muito mais profundo: o criminoso quer se tornar uma mulher. Depois de ser impedido de realizar uma cirurgia de redesignação sexual, mata e arranca a pele de suas vítimas a fim de costurar para si mesmo uma pele feminina. Hannibal, que conhece Buffalo Bill, afirma que ele não é transexual, embora acredite ser. Parece, de fato, pouco provável que alguém que banaliza a vida de mulheres e vê nelas apenas um corpo, pronto para servir a seus próprios desejos, acreditaria pertencer a esse grupo. O que se pode imaginar é que sua visão do que é viver como uma mulher seja muito limitada: numa das cenas do filme, ele aparece se maquiando e dançando seminu, performando o que provavelmente é sua ideia de feminilidade – sexy e alegre –, sem perceber que ele mesmo é responsável por perpetuar misoginia. Para Bill, então, a mulher não deixa de ser um objeto. Seja de forma metafórica, pelo consumo de uma ideia romantizada de feminilidade, seja de forma literal, pelo uso da carne feminina para a construção de uma fantasia, a mulher é apenas um meio para que Bill atinja seus objetivos, desconsiderada enquanto à sua condição de sujeito.
Isso fica ainda mais evidente numa cena em que o assassino discute com uma de suas vítimas, Catherine. Bill insiste em se referir a ela como it, pronome em terceira pessoa usado comumente para fazer referência a objetos ou animais. Assim, ele se recusa a lhe dirigir diretamente a palavra, a exemplo de quando diz "Isso passa a loção na pele, isso faz tal coisa sempre que eu mando" (It rubs the lotion on its skin, it does this whenever it's told), ou até mesmo nega encaixá-la na categoria de humana, não referindo-se à Catherine pelo pronome ela. Isso contrasta com o tratamento afetuoso dado à cadela de estimação que ele segura no colo, a quem chama carinhosamente de Preciosa.
Uma das teorias de Carol J. Adams é a de que só conseguimos perpetuar a violência contra os animais quando os desassociamos do ato de comer: não comemos boi, comemos bife. Não comemos filhotes de galinha que nunca chegaram a nascer, comemos ovos. O nome escolhido é, então, uma forma de gerar afastamento.
Com isso, cria-se um referente ausente, isto é, apesar de comermos o corpo de um animal, procuramos não pensar na imagem do animal durante as refeições. O mesmo pode ser visto na forma como Buffalo Bill se dirige à sua vítima, usando o pronome it e demonstrando ter dificuldade de olhar diretamente para ela. Por isso, quando a senadora, mãe de Catherine, faz um apelo para salvar a vida da filha na televisão, repete seu nome constantemente e mostra fotos dela quando criança. "Se o sequestrador a enxergar como uma pessoa, e não como um objeto, será mais difícil feri-la", diz Starling ao ver o discurso da senadora. O referente ausente, então, também é criado no ato de violência contra mulheres, cuja carne é consumida, tanto metaforicamente, no ato sexual, quanto literalmente, no filme, no ato de retalhamento.
O silêncio dos cordeiros
Não por acaso, Clarice Starling se comove diante da opressão animal. Numa conversa com Lecter, ela confessa ter fugido da casa dos tios, quando pequena, por ter ouvido os gritos de cordeiros que estavam sendo abatidos. Ela chega a tentar salvar um deles, mas não consegue. É esse incidente que, de acordo com o conhecimento psiquiátrico do psicopata, gera nela um desejo de ajudar os demais – é como se apenas assim ela conseguisse silenciar os cordeiros em sua mente, o que explica o título original da obra (The silence of the lambs, ou seja, O silêncio dos cordeiros).
O silêncio dos inocentes (1991) |
Este talvez seja o aspecto da trama que mais evidencie uma relação com as ideias de Adams. Lecter não demonstra empatia pelos cordeiros, assim como não empatiza com outros seres humanos, mas o objetivo de vida de Clarice surge justamente de um momento de solidarização frente ao sofrimento animal. Essa aproximação afetiva entre a personagem e os cordeiros pode ser fruto de algo que Carol observa em A política sexual da carne: por também ocuparem uma posição de inferioridade sob o patriarcado, mulheres tendem a sentir mais compaixão em relação aos animais – são, inclusive, maioria nos movimentos vegetariano e vegano.
Mas os cordeiros não são os únicos animais que aparecem na história: além da cadela Preciosa, Buffalo Bill também cria mariposas, cujos casulos coloca dentro da boca de suas vítimas a fim de simbolizar sua própria transformação. Apesar de realmente gostar de Preciosa, percebe-se que o assassino não tem uma relação com as mariposas em si: assim como admira as mulheres apenas enquanto corpos, desprovidos de vontade própria ou de humanidade, ele admira as mariposas apenas pela metamorfose que simbolizam. Elas também estão ali, então, apenas para sua satisfação pessoal.
O silêncio dos inocentes não nos mostra apenas como o machismo institucionalizado cria obstáculos para mulheres ambiciosas, mas sugere também uma complexa rede de violência que surge sob o patriarcado e que vitimiza tanto mulheres quanto animais. Vemos na figura de Hannibal Lecter como menosprezar a vida de outras espécies, em prol do consumo de carne, pode facilmente levar ao desrespeito pela vida de outros seres humanos. Vemos na figura de Buffalo Bill o ápice de uma sociedade machista que não enxerga mulheres como sujeitos. Os dois aplicam aos humanos práticas antes empregadas apenas em relação a outras espécies. A carne, as mulheres, os animais são metaforizados, vistos como símbolos, o que justifica – ou, ao menos, romantiza – a violência.
Referências
- A política sexual da carne: uma teoria feminista-vegetariana (Carol J. Adams)
- O serial killer como herói da pós-modernidade (Miriam Gorender)
- O silêncio dos estereótipos: Clarice Starling, uma personagem essencial (Renata Fonseca Wolff)
- O silêncio dos inocentes (Jonathan Demme)
- O silêncio dos inocentes (Thomas Harris)
- O ogro no espelho: Hanibbal Lecter e o mito do mito do homem selvagem (Marina de Oliveira e Rosane Cardoso)
- The dark fate of Clarice Starling (The Atlantic)
Arte em destaque: Mia Sodré
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