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Doctor Who, livros e chá: o mistério de Agatha Christie


Se há alguém que pode roubar a cena da dupla Donna Noble e Doctor, protagonistas de Doctor Who, esse alguém é Agatha Christie, a inconfundível e amada escritora de romances policiais cujo nome está eternizado na literatura inglesa. Agatha Mary Clarissa Miller nasceu em Torquay, no ano de 1890, e publicou seu primeiro livro, O misterioso caso de Styles, em 1920. Agatha escrevia mistérios e histórias de detetives - e ela mesma, por sua vez, acabou por se envolver em um grande enigma: em 1926, desapareceu por onze dias e reapareceu tão de repente quanto como sumiu, alegando não se lembrar do que houve.

Buscando preencher lacunas dos fatos com elementos fantásticos, a série Doctor Who presta uma homenagem àquela que já foi condecorada como “dama” pela ordem do império britânico: em O unicórnio e a vespa, episódio de 2008, parte da quarta temporada da nova era da série, descobrimos uma possível solução do mistério de Agatha Christie. No contexto de uma das muitas festas às quais era convidada, a autora é apresentada a uma dupla peculiar: o Doctor e Donna Noble. Mas não é o viajante no tempo ou a mulher do futuro que chamam a atenção, mas sim a presença da autora e sua aura indecifrável. E, como tudo o que envolve essa série, coisas extraordinárias estarão envolvidas.

" — Eles são britânicos; eles seguem em frente."

Não é difícil notar o porquê de Doctor Who resgatar a história de Agatha e reverenciar sua obra nesse divertido episódio, já que os livros dela são clássicos do gênero de crime, também chamados de "mistérios aconchegantes", traduzindo livremente o conceito de cozy mystery. Os livros dela são de linguagem acessível e possuem narrativas que envolvem muitos elementos cotidianos, como viagens de trem, brigas por herança, conflitos familiares… E Agatha Christie conseguia escrever livros que, no fim, eram sobre o que é ser britânico, mais do que sobre cometer assassinatos.

Miss Marple, uma de suas personagens mais memoráveis, sintetiza isso muito bem: uma senhora muito simpática que realiza atividades comuns às mulheres inglesas desse período, como costura e chás da tarde - a diferença é que Miss Marple também se empenhava em investigar e resolver crimes. A escritora consegue, através de suas personagens e tramas, unir austeridade, discrição e interesse por situações que, no geral, são associadas aos ingleses. Todos esses aspectos ainda se somam ao prazer que essa sociedade encontra na leitura, conversas e… bem, chá.

Doctor Who parte desse princípio para construir a trama: em uma pequena festa de uma família rica, temos cerca de dez personagens, todas elas muito educadas; porém, o evento vira do avesso quando um corpo é encontrado na biblioteca – sim, uma referência ao livro Um corpo na biblioteca! No meio de traumas e mentiras, a autora resume seus sentimentos sobre tais acontecimentos: “mas eu sou britânica, sigo em frente”. E é sempre a isso que os crimes dos livros de Christie se voltam: por meio deles, são reveladas personalidades humanas, mais do que simples caricaturas embasadas em estereótipos. Por outro lado, há na personagem um quê de orgulho em ser uma mulher inglesa, uma condição que encontramos não apenas em Agatha Christie, mas também em Virginia Woolf, Jane Austen, Emily Brontë, dentre outros grandiosos nomes da literatura.

Agatha Christie

Conforme os assassinatos continuam, três mentes brilhantes precisam se unir para desvendá-los: o Doctor, Agatha Christie e Donna Noble. Juntos, as três personagens descobrem que quem estava cometendo os crimes era uma vespa gigante. Há também outros pequenos mistérios que são investigados paralelamente ao enigma principal: quem é o “unicórnio”, o ladrão de joias que está perturbando a região? O que houve com Lady Edison, também personagem da trama? E, não menos importante, embora seja um mistério apenas para nós: o que aconteceu com Agatha Christie no fatídico dia 4 de dezembro de 1926?

Não se trata somente de uma homenagem às engenhosas narrativas desenvolvidas por ela, mas, sumariamente, de um tributo ao seu entendimento único da natureza humana. Afinal, para além de venenos e armas do crime, um assassinato sempre terá algo em comum: uma motivação. Isto é, quando se trata desse tipo de delito, é com emoções que se lida; mais do que uma vespa gigante, é um ser humano de carne e osso que está fazendo vítimas.

Mas mesmo com todos os mistérios resolvidos no final do episódio, na cena típica de revelação do assassino, que muito se encontra nos livros de Christie, há ainda um mistério em aberto: como e por que a autora desaparecera? Muitos teorizam que ela havia descoberto a traição de seu marido e, por isso, fugira. Na série, inclusive, ela diz que de fato é melhor aproveitar o relacionamento antes do casamento, e confessa à Donna que se sentia pressionada após aqueles acontecimentos. Todos a seu redor acreditavam com veemência que ela resolveria o mistério da vespa, e ela assim o faz; todos esperavam que ela tomasse uma decisão sobre seu casamento, e ela assim o faz - mas isso pouco importa em Doctor Who.

Doctor Who

Esse episódio não se trata do marido de Agatha Christie, ou de sua filha, e tampouco é sobre o que Agatha teria feito naqueles dias que passou sem dar notícias. Ele é fundamentalmente um retrato de uma escritora que criava e resolvia mistérios, uma mulher talentosa e inesquecível.

Doctor Who nos presenteia com inúmeras referências à vida e obra da autora. Ao longo do episódio, muitas referências aos seus livros são feitas, e perceber elementos tão icônicos tornam a narrativa um prato cheio para os leitores de Agatha. Não obstante, esse é um episódio que nos prestigia com as interações Doctor-Donna, além de pôr em tela efeitos visuais baratos, a exemplo de um alienígena com formato completamente sem sentido e, claro, um mistério delicioso de acompanhar.

Sabemos que Agatha Christie desaparece, segundo essa versão imaginada, porque tentou salvar outras pessoas do assassino, sobretudo por se sentir culpada pelo fato de que a motivação do crime partia das tramas que escrevia. A narrativa do episódio deixa claro que a sua escrita era tão marcante que se tornou inspiração para assassinatos. Mas é essa a verdade? Além disso, havia mesmo um Senhor do Tempo, uma mulher ruiva e uma vespa gigante no mistério de Agatha Christie? Bem, não. Mas é fato que Agatha se casou de novo, viajou o mundo, conheceu a rainha e viu um de seus livros virar filme. E, claro, as pessoas continuarão a ler suas histórias por muito tempo.

Referências



Arte em destaque: Mia Sodré



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Comentários

  1. Que delícia relembrar esse episódio, sou apaixonada pela fase Donna Noble. Em relação ao mistério da Agatha, gosto de pensar aqui com os meus botões que uma mente tão ardilosa e analítica sabia o efeito que seu sumiço causaria. A graça deve residir em guardar a motivação para sempre. Espero que ela tenha se divertido sozinha pensando na confusão das pessoas! hehe

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