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As convidadas: o realismo mágico de Silvina Ocampo

Quando falamos de realismo mágico, os nomes de Gabriel García Márquez e Isabel Allende nos vêm à cabeça imediatamente. Os autores são os maiores representantes do subgênero, que se destaca especialmente na América do Sul - mas isso não quer dizer que sejam os únicos. Em 2019, Silvina Ocampo, pouco conhecida no Brasil, teve seu livro de contos, A fúria, lançado por aqui pela Companhia das Letras, que havia também feito o lançamento de um espólio da Cosac Naify, Antologia da literatura fantástica, coletânea editada pela própria Silvina Ocampo, por Jorge Luis Borges e por Adolfo Bioy Casares. Essas edições trouxeram luz a um nome pouco falado em terras brasileiras, e abriram espaço para que pudéssemos conhecer os contos sinistros da escritora argentina. 

Em 2022, foi a vez de As convidadas ter seu espaço nas estantes dos leitores brasileiros. Coletânea composta por 44 contos, o livro oferece ao seu leitor um mergulho no universo do caos, onde tudo é possível - e mesmo o acontecimento mais absurdo é tratado com o olhar monótono de uma narradora que a tudo já viu, que a tudo conhece, a quem nada surpreende. É esse olhar blasé que nos faz aproximar de eventos espantosos sem que duvidemos da veracidade daquilo que está sendo contado - claro, é ficção, mas é uma ficção que nos convence, que nos pega pela mão e nos diz, com toda a sinceridade: "É sério que você nunca viu isso acontecer?". Diz-se que no terror é preciso ter a suspensão de descrença para que a história não seja estragada. Nos contos de Silvina Ocampo, a suspensão de descrença é automática, tamanha a atmosfera mágica, porém, ainda assim completamente plausível, habilmente criada por ela. 

Talvez o mais interessante dos contos, à parte da atmosfera fantástica presente em cada um deles, é como suas personagens são pessoas comuns, gente como a gente, que está apenas vivendo e lidando com o insólito no dia a dia. Não se trata de princesas, um cenário medieval, algo muito longínquo e estrangeiro - a realidade distorcida encontra-se ali, com gente comum, em dias normais, sem nada de espantoso exceto tudo. Isso também faz parte do realismo mágico, movimento que, alguns afirmam, teria nascido durante os primeiros anos do século XX, em solo latino-americano. 

Foi Alejo Carpentier, escritor caribenho, que, em 1949, fez a famosa referência ao termo "realismo mágico" para falar de uma literatura latino-americana que misturasse elementos cotidianos com o maravilhamento do estranho. Para Carpentier, o cerne do realismo mágico estava na realidade do povo latino-americano, em sua linguagem viva, sem os academiscismos dos mais estudados, que msituravam sua língua materna com estrangeirismos e conceitos complicados, afastando os leitores de sua realidade. No realismo mágico, a própria realidade, por mais simples que pareça, está repleta de elementos maravilhosos - nossos elementos maravilhosos. 

Silvina Ocampo

Silvina viveu de forma inusitada para a época - casou-se com Bioy Casares, mas só após anos vivendo junto dele fora do casamento. Era bissexual e teve casos amorosos com homens, mulheres, e até com uma sobrinha menor de idade. Inclusive, Mariana Enríquez, também escritora, diz haver uma história na família sobre um caso entre a autora e a mãe de Bioy Casares, seu marido. Embora sua vida fosse escandalosa naqueles tempos, Silvina Ocampo era uma mulher reservada, que não queria os holofotes em cima de seu cotidiano. Escreveu oito livros de contos - dois deles publicados no Brasil -, e sua produção literária permaneceu constante até poucos anos antes de sua morte, quando ela já estava na casa dos 80 e poucos anos. 

É difícil dizer o que leva um escritor a produzir sua literatura. Podemos conjecturar, pesquisar, ler diversas biografias, analisar o período histórico... Todavia há coisas que nem os próprios autores sabem - porque a psique humana é repleta de caminhos tortuosos, desvios que criamos para nos protegermos de coisas que não queremos encarar, e que acabam virando simbolismos. Assim sendo, a literatura é múltipla porque é diferente para cada leitor. A mesma palavra que evoca memórias afetivas em um pode passar desapercebida a outro. Se o fato de Silvina Ocampo ter levado uma vida fora da curva é o motivo de sua literatura ser tão única, é quase impossível afirmar. A memória subconsciente traz à tona imagens que transformamos em palavras - e o consciente lhes aplica significados com os quais conseguimos lidar. Mas a afirmação que aqui vale é a de que ela foi uma mulher interessantíssima - assim como o são seus contos. 

"Mas elas, cada uma delas, no primeiro momento se sentiam sozinhas, como se uma armadura de ferro as revestisse de modo a deixá-las incomunicáveis, endurecidas. A dor de cada uma era uma dor individual e terrível; a alegria também, e por isso mesmo era dolorosa."

(Assim eram os seus rostos, Silvina Ocampo)

Mesmo os contos mais "comuns" do livro são ótimos - não há nele uma só história que seja menos do que boa. Mas alguns, é claro, destacam-se, como aquele que abre a coletânea, Assim eram os seus rostos, focado no imaginário infantil e na dificuldade de todos ao redor em discernir o que é fato e o que é a ficção que tecemos para nós mesmos mediante uma tragédia. Assim como em A fúria, há alguns contos que têm seu foco em crianças - perturbadoras, estranhas, inquietantes. É o caso de Êxodo, uma narrativa que deixa o leitor ansioso por descobrir mais - mas que termina no ponto certo para ser excelente. Após os primeiros contos estabelecerem-se uma temática e um ritmo, o tom do livro muda em Carta debaixo da cama, que parece ter saído diretamente da mente de Charlotte Perkins Gilman - se esta tivesse sido desafiada a escrever uma história de horror; é perfeito. Os demais contos vão alternando entre tipos de personagens, locais e situações - mas a sensação de haver algo esquisito acontecendo, algo que está ali, mas que só vamos desvender no momento em que a autora o quiser, nos acompanha durante toda a leitura. 

Entre contos sobre crianças que descobrem ser anjos, mulheres que encontram a violência no que deveria ser amor, canibalismo, assassinatos e fantasmas reais ou metafóricos, As convidadas nos faz mergulhar numa América Latina palpável, próxima a nós em suas peculiaridades e na aceitação do insólito no dia a dia. É uma bela visão - ainda que terrível. 


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Referências 



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Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Já estava na minha lista de leitura e agora deu mais vontade de ler ainda. Amei!

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