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Cleópatra: a mulher além do mito

“Deusa em criança, rainha aos dezoito anos, celebridade logo depois, foi objeto de especulação e veneração, de intriga e de lenda, mesmo em nosso tempo.” 

Assim a escritora vencedora do Pulitzer, Stacy Schiff, começa Cleópatra, uma biografia, nos descrevendo a complexidade de uma das figuras mais fascinantes da história. Romanceada, pintada e dramatizada, Cleópatra virou sinônimo de sedução, paixão e traição, numa imagética construída ora pelo inimigo, ora pela moralidade vigente. A verdade é que, por trás do mito sexual cimentado ao longo de dois mil anos, pouco se sabe de fato sobre ela, mas muito se especula (e se cria), dificultando um vislumbre claro da soberana que governou o Egito por vinte e dois anos.

Para resgatar a “mulher Cleópatra”, Schiff nos contextualiza, primeiramente, no ambiente em que essa figura histórica nasceu, cresceu e morreu, valendo-se de estudos antropológicos, geográficos, arqueológicos e históricos diversos, visto que as fontes primárias sobre ela são basicamente inexistentes ou limitadas, e quase tudo que se escreveu a respeito de Cleópatra depois de sua morte foi elaborado por poetas, biógrafos e historiadores romanos dentro de uma agenda política específica, que visava perpetuar a sua imagem como a encarnação do mal oriental, que havia seduzido e enfeitiçado dois generais romanos.

Schiff nos lembra que para os romanos, que não estavam acostumados a legitimar o poder das mulheres, uma rainha que governava toda a costa do Mediterrâneo representava tudo o que era considerado antinatural e, por isso, deveria ser destruído. Cleópatra ousou se colocar no delicado cruzamento entre mulheres e poder, e os homens que a sucederam a condenaram por isso. Se não em vida, na versão da história que escreveram para a posterioridade.

“Restaurar Cleópatra significa resgatar uns poucos fatos e também remover o mito incrustrado a propaganda envelhecida. Ela era uma mulher grega cuja história ficou a cargo de homens cujo futuro estava em Roma, a maior parte deles funcionários do Império. Seus métodos históricos são pouco claros para nós. Eles raramente mencionam suas fontes. Confiavam em grande parte na memória.”

 

Nascida em 69 a.C., Cleópatra VII descendia de Ptolomeu I, general grego-macedônico que havia atuado ao lado de Alexandre, o Grande. Pertencente a uma família em que mulheres poderosas, influentes e ambiciosas tomavam o poder nas mãos tanto quantos os homens, a pequena “glória de sua pátria” havia sido educada para governar desde criança. Recebeu uma formação clássica grega, além de ter sido instruída em aritmética, geometria e astrologia. Fluente em nove idiomas, incluindo o egípcio – a língua do povo, que os ptolomeus evitavam aprender –, era extremamente versada em retórica, o que lhe foi útil durante toda a vida, tanto nos negócios quanto na vida pessoal. Adulta, administrou e comandou o exército e a marinha, organizou a economia, negociou com reinos estrangeiros e presidiu os templos e seus rituais. Conciliadora, conduziu a política através de períodos de secas e apaziguou as inimizades entre gregos e egípcios dentro da sua capital, Alexandria.

“No auge do poder, controlava praticamente toda costa Oriental do Mediterrâneo, o último grande reino de qualquer soberano egípcio. Em seguida, durante breve instante deteve o destino do mundo ocidental nas mãos.”

Foi sua educação esmerada e seu senso diplomático apurado que a fez entender desde cedo que estabilizar a economia e fazer o Egito crescer sob sua mão de nada valeria se o país não fosse autônomo. E isso dependia da boa convivência com um inimigo que espreitava como um lobo constantemente à porta: Roma. O pai de Cleópatra, Auletes, havia pagado durante toda a vida altos tributos a Roma – um acordo que visava evitar que o país fosse invadido. E, após a morte dele e dos dois filhos sucessores homens (que Cleópatra habilmente tirou do próprio caminho), coube a ela gerir a proximidade – e as dívidas – com o país estrangeiro. Isso ela tentou fazer através de duas alianças romanas poderosas que influenciaram o seu destino para bem e para mal: primeiramente com Júlio César e depois com Marco Antônio.

Cleópatra e Júlio César: intelectualidade e poder

Em 48 a.C., depois de ser exilada pelo irmão e marido, com quem estava em conflito, Cleópatra se colocou habilmente no caminho do general romano Júlio César que, por sua vez, estava instalado na capital egípcia enquanto lidava com a guerra civil contra outro general romano, Pompeu. O encontro deliberado de uma fugitiva e herdeira ao trono com o homem que tinha os meios de ajudá-la a restaurar sua posição foi visto pelos cronistas como a primeira grande sedução de Cleópatra. Schiff, no entanto, nos dá uma versão mais realista de uma jovem versada em retórica e política que entendia como os acordos se formavam e que via em César um aliado igualmente sábio nas questões de poder. E ela estava certa. O general apoiou a sua hegemonia e a colocou de volta no trono ao lado do irmão, marido e inimigo (enfurecido com a situação). A versão de uma junção de interesses fica ainda mais evidente quando se considera que um Egito estável era extremamente importante para a economia de Roma e para César.

Se a ligação entre eles foi apenas um arroubo de paixão ou uma negociação de interesses entre pares, nunca se poderá afirmar com certeza. Mas é impossível ignorar que intelectualidade, poder e ambição faziam parte do relacionamento entre a jovem Cleópatra e Júlio César. Ambos eram eruditos, ousados e ansiavam pelo poder absoluto. Ela como rainha. Ele como ditador de Roma.

Busto de Júlio César

“Os ambiciosos brilham, sobretudo, na companhia de ambiciosos; César e Cleópatra encontraram-se, como poderiam ter se encontrado dois herdeiros lendários, maiores que a vida e muito conscientes de seus dotes, acostumados a pensar em si mesmos no plural ou a se referir a si mesmos na terceira pessoa.”

O relacionamento de César e Cleópatra resultou também em um filho, o pequeno Cesário, que nasceu em 47 a.C. Para ela, sempre elucubrando acerca do destino do seu país, era provável que uma criança com sangue romano representasse mais uma conexão diplomática em potencial. Infelizmente, quaisquer que fossem os seus planos para o futuro com o general romano, eles tiveram que ser recalculados quando, em 44 a.C., César foi assassinado nos Idos de Março e o mundo Ocidental convulsionou em caos.

Cleópatra e Marco Antônio: cumplicidade e necessidade

Os primeiros anos após o assassinato de Júlio César podem ser descritos como uma miríade de desordem que não demorou a se desdobrar em uma nova guerra civil. Entre os opositores estavam dois afetos de César: de um lado o seu antigo general, Marco Antônio, e do outro o herdeiro formal do ditador, seu sobrinho-neto, Caio Otaviano. Em uma guerra, em que territórios e fundos podem ganhar batalhas, não tardou para que Cleópatra e suas riquezas fossem cobiçadas por um deles. Schiff assinala que se manter neutra nunca foi uma opção para Cleópatra. Mesmo que ela quisesse, o Egito sempre estaria no caminho da ambição romana, e uma negativa seria vista como um gesto de hostilidade. Dessa forma, quando Marco Antônio interpelou Cleópatra, ela se aliou a ele primeiramente como uma estratégia que pensava ser correta.

O relacionamento entre Cleópatra e Marco Antônio começou nesse nível, para Schiff. Ele, um homem em busca de fundos e de uma frota marítima para os esforços de guerra. Ela, uma rainha que poderia provê-lo, se isso lhe fosse favorável. Outro fator muito importante também parece tê-los unido nos primeiros encontros: a insatisfação com o herdeiro nomeado por César em testamento. Para ele, que sempre fora leal ao general, a nomeação de Otaviano era um insulto pessoal. Para ela, um insulto ao filho, Cesário. Se não um amor romântico, ambos cultivaram desde o início um relacionamento equilibrado, em que mútuos favores foram concedidos e negociados, agora por uma Cleópatra experiente e estratégica.

A união de ambos incendiou ainda mais os humores romanos, que já não eram favoráveis a ela, quando Cleópatra deu à luz aos gêmeos Alexander Hélio e Cleópatra Selene em 39 a.C. Não apenas Marco Antônio, que era casado, havia se aliado a uma rainha estrangeira, como havia tido filhos com ela. Era o que Caio Otaviano precisava para lançar uma das estratégias mais nebulosas e efetivas da guerra civil: destruir seus oponentes moralmente. E quando ele o fez, solidificou a imagem negativa de Cleópatra para sempre.

Imperador Augusto


Otaviano, que se consagraria como o futuro Imperador Augusto, mobilizou não apenas suas forças bélicas contra o casal, mas também a opinião pública através de uma rede propagandista que criou, ampliou e distorceu informações sobre a devassidão de Cleópatra. Os erros táticos de Marco Antônio se tornaram dela. Os vícios do general, também. Em Roma, ela se tornou uma rainha imoral que controlava o general romano através de magia e venenos, emasculando-o. E se ela havia dominado um homem com tanta habilidade, em breve estaria fazendo o mesmo com o povo romano. Para que isso fosse evitado, ela deveria ser combatida, destruída – e o Egito, subjugado.

“Seria difícil dizer a quem Cleópatra era mais vital em 32: se ao homem de quem era parceira, ou ao homem para quem era um pretexto. Antônio não podia vencer uma guerra sem ela. Otaviano não podia começar uma.”

A propaganda foi efetiva e Otaviano conseguiu incitar a nação contra ela, um bode expiatório extremamente conveniente para seus planos. Ao derrotar Marco Antônio e Cleópatra, ele imediatamente consolidou a sua versão dos fatos nas narrativas oficiais. Marco Antônio desapareceu dos registros e Cleópatra se tornou uma víbora perniciosa (a versão que a associou a uma cobra não surgiu sem intenção), uma mulher antinatural que fora destruída para evitar que espalhasse a lascívia oriental por Roma. Os poetas e historiadores latinos reforçaram a imagética e, com o passar do tempo, ela foi se tornando cada vez mais passional e guiada por impulsos unicamente sexuais, em vez da governante notória que fora por mais de vinte anos.

Após a morte de Cleópatra, o Egito se tornou, como ela tanto temia, uma província romana. Alguns séculos depois, terremotos e tsunamis também arrasaram a bela Alexandria, da qual ela tanto se orgulhava. As suas estátuas foram derrubadas e seus registros oficiais, apagados e esquecidos. Dela, verdadeiramente pouco restou além das narrativas românticas ou moralistas que a transmutaram em um mito, ora de uma mulher fatal, ora de uma figura trespassada pela paixão e loucura. Mas dois mil anos depois, o fato de sua figura ainda se insinuar na vida cotidiana diz muito sobre sua influência e magnetismo. Por trás das lendas de serpentes e tapetes enrolados, Cleópatra ainda se desvela como uma representação da força feminina que nunca esmorece. Não importa o quanto tenham tentado destruí-la ou reescrevê-la, ela se recusa a sair de cena. Ainda bem.


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Referências




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Comentários

  1. Texto maravilhoso! Estou lendo Antônio e Cleópatra, o contexto acrescentou muito à leitura.

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  2. Nossa! Que texto maravilhoso! Fiquei com muita vontade de ler o livro e já adicionei na minha lista de desejos.

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  4. texto impecável!! mais uma vez homens na história ditando como uma mulher deve ser lembrada. ainda bem que cleópatra resistiu a essa tentativa e podemos conhecer quem ela realmente foi

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    1. obrigada, Cecilia! Cleopatra é uma dessas figuras que se perde no mito então foi interessantíssimo tentar atravessar essa névoa!

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