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3 vezes Irma Vep


O cinema é ciência ou magia? Para o público, talvez seja o segundo. Através do cinema entramos em contato com o impossível. O que seria isso senão magia pura? Mas para quem trabalha atrás das câmeras ele é, sem sombra de dúvidas, uma espécie de ciência. Técnicas e fórmulas são elaboradas, testadas e usadas repetidamente para produzir os efeitos que parecem magia para a audiência. As três vezes em que a personagem Irma Vep aparece nas telas ao longo de 110 anos de filmografia são retratações dessa dança de conceitos, sensações, verdades e mentiras entre quem faz cinema e quem o consome. Correndo o risco de cometer o crime da metalinguagem ao produzir um “filme sobre fazer filmes” com Irma Vep, em 1996, Olivier Assayas repete o feito em 2022, com a série da HBO de mesmo nome. Em ambos ele retrata o processo de uma equipe de filmagem gravando um remake de um filme mudo, do início do século passado, sobre uma gangue de criminosos.

Les Vampires, de 1916, do francês Louis Feuillade, tem 7 horas de duração, distribuídas em 10 episódios. Praticamente uma série antes do surgimento das séries. Produzido na década de 1910, quando a duração média das películas era de apenas 15 minutos, permanece sendo um dos mais longos filmes até hoje. Para comparar: a primeira série de televisão seria lançada nos Estados Unidos só dali a 12 anos (The Queen's Messenger, 1928). Exibindo as artimanhas e truques de um bando de ladrões, os tais Vampiros (que nada têm a ver com as criaturas fantásticas), o filme foca a maior parte da ação na personagem Irma Vep, cujo nome é um anagrama da palavra Vampire. Nesse filme, Musidora, atriz e escritora francesa, interpreta Irma Vep usando um traje que mais tarde seria conhecido como catsuit – a roupa que inspirou os figurinistas que vestiram todas as mulheres-gato desde 1966.

Les vampires (1916)

No filme de Assays em 1996, a história gira em torno da produção de um remake de Les Vampires, em formato de filme longa-metragem. Nele, uma atriz chinesa é escalada para interpretar Irma Vep, chegando a Paris vinda diretamente de Hong Kong, onde ganha a vida como atriz de filmes de ação. Maggie, interpretada por Maggie Cheung (In the Mood for Love e Supercop), logo no início faz amizade com Zoe (Nathalie Richard), a figurinista francesa. Em uma cena de prova de roupas, Zoe mostra à atriz um recorte de revista com Michelle Pfeiffer como Mulher-Gato em Batman: o retorno (clássico de 1992). É curioso captar o simbolismo nada óbvio nessa interação, quando a própria Irma foi a referência para a Mulher-Gato no passado. A arte se recicla de formas inesperadas. 

Nas três produções, o catsuit vestido por Irma Vep é uma ferramenta narrativa: ao mesmo tempo que marca e acentua as formas do corpo, também oculta a mulher por trás dele, com o monocromático efeito do tecido preto dos pés à cabeça. A curadora de cinema Aliza Ma aponta em um ensaio sobre o filme que, no caso de Maggie, “em um primeiro momento, o catsuit emfatiza seu estrangeirismo, mas quanto mais ela usa o catsuit, mais ela ganha controle sobre o novo ambiente e o papel que interpreta”.

Na adaptação de 2022, na série da HBO, quem usa o catsuit é a atriz sueca Alicia Vikander, no papel de uma atriz estadunidense de blockbusters chamada Mira. Mais tarde, em um dos últimos episódios, Mira conversa com Maggie – sim, a atriz do filme anterior está presente na nova série, como um espírito evocado pelo diretor – e revela que, na verdade, ela não é dos Estados Unidos, mas sim sueca. As duas então conversam sobre apropriação cultural e falam, com uma honestidade excessiva, como se sentem a respeito disso. 

Olivier Assayas

A intertextualidade das histórias é parte do enredo. É como se Assayas estivesse atualizando os temas do filme de 1996 na série de 2022. No primeiro usa-se uma citação famosa de Classe de lute (1969), documentário francês sobre a classe trabalhadora, e discute-se como os filmes cult, financiados com verba pública, estão destruindo o cinema francês – enquanto Hollywood salva-o com filmes de ação e luta, que agradam o povo. 

“O cinema não é magia: é técnica e ciência, uma técnica nascida da ciência e colocada a serviço do desejo: o desejo dos trabalhadores de se libertarem.”

(Classe de lute)

Já na série de 2022, discute-se exatamente o fato de que Hollywood acabou com o cinema. Quando Mira viaja para gravar Irma Vep em Paris, sua agente, Zelda (Carrie Brownstein), sugere que ela abandone o projeto várias vezes, tentando persuadi-la a continuar investindo em grandes produções de Hollywood. Convites para estrelar filmes milionários vão surgindo. Mas Mira é firme na decisão de gravar Irma Vep até o fim, mesmo nos períodos de adversidade, como quando o diretor some por dois dias de gravação, no meio de uma crise mental. Assim como Maggie, Mira tem uma opinião forte sobre a potência artística de Irma Vep e é seduzida pela interpretação de Musidora. 

Na versão mais recente, passagens do diário da francesa são dramatizadas para dar contexto de como a primeira produção aconteceu, na década de 1910. Nessas cenas, tanto Alicia Vikander quanto Lars Eidinger (interpretando Gottfried), cujas personagens até então se comunicam apenas em inglês com a equipe francesa, engajam-se interpretando um texto complexo em francês, com pronúncia impecável. Aqui, Assayas brinca com o absolutismo do inglês como língua cinematográfica; mostra que existem profissionais capazes de interpretar em múltiplos idiomas (lembrando que Vikander é sueca e Eidinger é alemão). Ao mesmo tempo, ele não nega a praticidade do uso do inglês no set de filmagem e no texto do próprio filme, já que metade dos diálogos continuam ocorrendo nessa língua. 

Irma Vep

Assim, o foco narrativo se desloca o tempo todo para a autocrítica, sem poupar ninguém, mas também sem vitimizar ninguém. A dinâmica entre a estrela do filme e o diretor se firma nessa premissa, desenrolando uma espécie de intimidade linguística entre os dois: mesmo distantes em suas identidades, eles conseguem compartilhar uma mesma fé pela magia do cinema. Não é à toa que Mira consegue atravessar paredes quando está vestindo o catsuit fora de cena. Ela invoca Irma Vep como uma entidade para dentro de si e adquire poderes. Não seria isso a magia do cinema?

O filme de 1996 termina com a demissão de Maggie do papel de Irma Vep, sem que aconteça nem mesmo um adeus entre ela e a equipe. Na série de 2022, Mira parte depois de atravessar as paredes do apartamento do diretor e vê-lo em um estado de espírito melhor. Ela precisa ir embora para gravar um novo papel do outro lado do oceano: uma heroína de ficção científica, uma espécie de antítese para a sombria Irma Vep. A última cena enquadra Mira no catsuit preto sobre telhados de Paris, observando a torre Eiffel iluminada. 

Referências




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Vanessa Guedes
Escritora de ficção especulativa, editora e tradutora português-inglês na Eita! Magazine, podcaster no Incêndio na Escrivaninha e fluente nas línguas das máquinas. Quando não está de férias no Brasil, toca a vida em Estocolmo, na Suécia.

Comentários

  1. Oi! Confesso que não conhecia nenhum dos filmes ou a personagem. Obrigada pelo texto, agora sei do que a série se trata!!

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  2. Amei o texto. Não sabia que o catsuit foi inspirado daí. <3

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