Les Vampires, de 1916, do francês Louis Feuillade, tem 7 horas de duração, distribuídas em 10 episódios. Praticamente uma série antes do surgimento das séries. Produzido na década de 1910, quando a duração média das películas era de apenas 15 minutos, permanece sendo um dos mais longos filmes até hoje. Para comparar: a primeira série de televisão seria lançada nos Estados Unidos só dali a 12 anos (The Queen's Messenger, 1928). Exibindo as artimanhas e truques de um bando de ladrões, os tais Vampiros (que nada têm a ver com as criaturas fantásticas), o filme foca a maior parte da ação na personagem Irma Vep, cujo nome é um anagrama da palavra Vampire. Nesse filme, Musidora, atriz e escritora francesa, interpreta Irma Vep usando um traje que mais tarde seria conhecido como catsuit – a roupa que inspirou os figurinistas que vestiram todas as mulheres-gato desde 1966.
Les vampires (1916) |
No filme de Assays em 1996, a história gira em torno da produção de um remake de Les Vampires, em formato de filme longa-metragem. Nele, uma atriz chinesa é escalada para interpretar Irma Vep, chegando a Paris vinda diretamente de Hong Kong, onde ganha a vida como atriz de filmes de ação. Maggie, interpretada por Maggie Cheung (In the Mood for Love e Supercop), logo no início faz amizade com Zoe (Nathalie Richard), a figurinista francesa. Em uma cena de prova de roupas, Zoe mostra à atriz um recorte de revista com Michelle Pfeiffer como Mulher-Gato em Batman: o retorno (clássico de 1992). É curioso captar o simbolismo nada óbvio nessa interação, quando a própria Irma foi a referência para a Mulher-Gato no passado. A arte se recicla de formas inesperadas.
Nas três produções, o catsuit vestido por Irma Vep é uma ferramenta narrativa: ao mesmo tempo que marca e acentua as formas do corpo, também oculta a mulher por trás dele, com o monocromático efeito do tecido preto dos pés à cabeça. A curadora de cinema Aliza Ma aponta em um ensaio sobre o filme que, no caso de Maggie, “em um primeiro momento, o catsuit emfatiza seu estrangeirismo, mas quanto mais ela usa o catsuit, mais ela ganha controle sobre o novo ambiente e o papel que interpreta”.
Na adaptação de 2022, na série da HBO, quem usa o catsuit é a atriz sueca Alicia Vikander, no papel de uma atriz estadunidense de blockbusters chamada Mira. Mais tarde, em um dos últimos episódios, Mira conversa com Maggie – sim, a atriz do filme anterior está presente na nova série, como um espírito evocado pelo diretor – e revela que, na verdade, ela não é dos Estados Unidos, mas sim sueca. As duas então conversam sobre apropriação cultural e falam, com uma honestidade excessiva, como se sentem a respeito disso.
Olivier Assayas |
A intertextualidade das histórias é parte do enredo. É como se Assayas estivesse atualizando os temas do filme de 1996 na série de 2022. No primeiro usa-se uma citação famosa de Classe de lute (1969), documentário francês sobre a classe trabalhadora, e discute-se como os filmes cult, financiados com verba pública, estão destruindo o cinema francês – enquanto Hollywood salva-o com filmes de ação e luta, que agradam o povo.
“O cinema não é magia: é técnica e ciência, uma técnica nascida da ciência e colocada a serviço do desejo: o desejo dos trabalhadores de se libertarem.”(Classe de lute)
Já na série de 2022, discute-se exatamente o fato de que Hollywood acabou com o cinema. Quando Mira viaja para gravar Irma Vep em Paris, sua agente, Zelda (Carrie Brownstein), sugere que ela abandone o projeto várias vezes, tentando persuadi-la a continuar investindo em grandes produções de Hollywood. Convites para estrelar filmes milionários vão surgindo. Mas Mira é firme na decisão de gravar Irma Vep até o fim, mesmo nos períodos de adversidade, como quando o diretor some por dois dias de gravação, no meio de uma crise mental. Assim como Maggie, Mira tem uma opinião forte sobre a potência artística de Irma Vep e é seduzida pela interpretação de Musidora.
Na versão mais recente, passagens do diário da francesa são dramatizadas para dar contexto de como a primeira produção aconteceu, na década de 1910. Nessas cenas, tanto Alicia Vikander quanto Lars Eidinger (interpretando Gottfried), cujas personagens até então se comunicam apenas em inglês com a equipe francesa, engajam-se interpretando um texto complexo em francês, com pronúncia impecável. Aqui, Assayas brinca com o absolutismo do inglês como língua cinematográfica; mostra que existem profissionais capazes de interpretar em múltiplos idiomas (lembrando que Vikander é sueca e Eidinger é alemão). Ao mesmo tempo, ele não nega a praticidade do uso do inglês no set de filmagem e no texto do próprio filme, já que metade dos diálogos continuam ocorrendo nessa língua.
Irma Vep |
Assim, o foco narrativo se desloca o tempo todo para a autocrítica, sem poupar ninguém, mas também sem vitimizar ninguém. A dinâmica entre a estrela do filme e o diretor se firma nessa premissa, desenrolando uma espécie de intimidade linguística entre os dois: mesmo distantes em suas identidades, eles conseguem compartilhar uma mesma fé pela magia do cinema. Não é à toa que Mira consegue atravessar paredes quando está vestindo o catsuit fora de cena. Ela invoca Irma Vep como uma entidade para dentro de si e adquire poderes. Não seria isso a magia do cinema?
O filme de 1996 termina com a demissão de Maggie do papel de Irma Vep, sem que aconteça nem mesmo um adeus entre ela e a equipe. Na série de 2022, Mira parte depois de atravessar as paredes do apartamento do diretor e vê-lo em um estado de espírito melhor. Ela precisa ir embora para gravar um novo papel do outro lado do oceano: uma heroína de ficção científica, uma espécie de antítese para a sombria Irma Vep. A última cena enquadra Mira no catsuit preto sobre telhados de Paris, observando a torre Eiffel iluminada.
Referências
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Oi! Confesso que não conhecia nenhum dos filmes ou a personagem. Obrigada pelo texto, agora sei do que a série se trata!!
ResponderExcluirAmei o texto. Não sabia que o catsuit foi inspirado daí. <3
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