“Tess Durbeyfield era, naquela ocasião de sua vida, nada mais do que um vaso de emoções, sem o colorido da experiência.”
É assim que Thomas Hardy nos descreve a sua protagonista no início de Tess of the d'Urbervilles: A Pure Woman Faithfully Presented (publicado no Brasil como Tess dos D'Urbervilles: Uma Mulher Pura), livro publicado de forma serializada em 1891, e depois em único volume em 1892. A sentença perspicaz introduz o leitor à personalidade de Tess e o faz começar a compreender o porquê a vida dela vai ser um emaranhado de sentimentos e tragédias. A jovem Tess traz dentro de si a sua maior virtude e a sua maior desgraça: a pureza de alma, sem o conhecimento das armadilhas da vida.
Pois, leitor, não há escapatória para Tess. Desde o início, o autor nos desvela as delicadas tessituras da tragédia que será a sua existência, e tal qual as moiras, vamos acompanhando o tecer intrincado dos infortúnios que se abaterão sobre a protagonista e as perdas de inocência pelas quais ela vai passar até o final.
No romance, Tess é uma bonita e delicada camponesa que vive na aldeia rural de Marlott com a família numerosa e pobre. Apesar dos progressos e do fulgor resultantes dos avanços industriais, que naquele momento enchiam cidades como Londres ou Manchester, em Marlott, o progresso parece nunca ter chegado. As estações marcam o tempo, os ritos antigos ainda são celebrados e a miséria se faz presente a cada novo nascer do sol.
Ao introduzir Tess, Hardy já nos incute a ideia de que ela é um ser puro, intocado pela vida e que traz em si algo de criança:
“No seu aspecto, escondiam-se ainda as fases da sua infância. Embora caminhasse à frente, naquele dia, com toda a sua formosa e exuberante feminilidade, podiam ver-se às vezes os seus doze anos em seu rosto, ou os nove a cintilhar-lhe nos olhos; até os cinco insinuavam-se vez por outra nas curvas de sua boca.”
Aqui, o autor propositalmente parece trabalhar em Tess a ideia de ter traços infantis para logo depois nos jogar o contraste de uma realidade que vai tirar isso dela. A pobreza da família e a perda do único meio de sustento (um cavalo), faz com que ela precise encontrar meios de ajudar a manter a casa, “a necessidade, quando não a miséria, acenava à distância".
Thomas Hardy |
Impulsionada pela pobreza e pelos delírios irresponsáveis dos pais (que alimentam a ilusão de serem descendentes de um antigo nobre normando chamado D’Urberville), Tess segue para o próximo episódio catastrófico de sua vida. Em busca de ajuda, ela é enviada sozinha e desamparada até a aldeia de Trantridge, a algumas milhas de distância. Ali ela vai conhecer o gatilho de sua próxima tragédia: o jovem Alec D’Urberville.
Alec é um libertino, sem nada a perder e sem nada a provar, que coloca em movimento a perda de outra inocência em Tess: a virtude social. Ele a acossa, amedronta e desconforta. Alec, aqui, lembra muito o progresso opressor do império britânico em expansão naquele momento, que tudo toma à força da sua ambição e do seu desejo. Como tantos homens em sua posição social, Alec é criado para ter o que cobiça. É com ele que Tess percebe que o mundo pode ser cruel com pessoas ingênuas e que a força do patriarcado não oferece consolo à nenhuma mulher que seja vítima dele.
“Oh, mãe, minha mãe! Como se haveria de esperar que eu soubesse? Eu era menina, quando saí dessa casa há quatro meses. Por que não me disse que havia perigo entre os homens? Por que a senhora não me avisou?”
A jornada de heroína trágica de Tess continua e ela, resilientemente, renasce para nós em um dos momentos mais bonitos da história e também em um dos mais polêmicos para o século XIX: Tess ousa se reconstruir ao invés de se deixar morrer depois de passar por uma mácula social. Essa escolha em seguir em frente foi motivo de crítica contra o romance, pois contrariou a convenção romanesca da “fallen woman” vitoriana, que deveria se arrepender, sofrer ou morrer para se redimir aos olhos do público. Aqui, Tess se levanta, e nós aplaudimos a sua coragem de não se deixar abater, ao contrário dos que a julgaram como imoral em 1890.
“Tess sentia dentro de si pulsar ainda quente a vida cheia de esperança; poderia ser feliz num lugar qualquer onde não houvesse a lembrança. Fugir do passado e a tudo o que pertencia a ele era aniquilá-lo; e, para fazer isso, teria de afastar-se.”
Mas Hardy sabia como ninguém que para uma alma de natureza gentil como Tess, a fragilidade da reputação seria um castigo eterno em uma sociedade pautada pelo moralismo hipócrita. E é quando Tess encontra um homem chamado Angel Clare que isso se torna ainda mais evidente.
Tess dos D'Ubervilles (1998) |
“Não era mais uma ordenhadora, mas a essência ideal da mulher – um sexo inteiro condensado numa forma típica. Chamava-lhe Ártemis, Deméter e outros nomes cheios de fantasia, um pouco em tom de pilhéria, do que ela não gostava, porque não os compreendia.”
Ao projetar em Tess uma inocência que só existe na cabeça dele, Angel a eleva, para depois deixá-la cair quando o passado vem à tona. E ela perde a inocência do amor tranquilo, que deveria ter lhe acolhido, mas foi tão injusto quanto tudo o mais em sua vida. Se Alec D’Urberville parecia representar o império britânico que a tudo toma e destrói, Angel surge aqui quase como uma representação da sociedade hipócrita vitoriana que exila e condena toda a mulher que falhe em viver a fantasia de pureza projetada sobre ela.
Quanto mais Tess pode perder? É a pergunta que nos ronda conforme o livro se aproxima de seu desfecho, pois tudo que queremos é que ela encontre um pouco de paz e conforto. Nesse momento, Hardy parece nos sorrir tristemente por detrás das cortinas enquanto mostra nas entrelinhas que a grande fatalidade é estar vivo em um mundo que não nos deseja e nem ampara. E assim, a sua doce Tess vai em direção ao seu derradeiro ato. Em um rompante, ela perde sua última inocência: ultrapassa a linha tênue entre vingança e justiça, que nessa altura parecem se confundir, tanto para ela quanto para nós.
Então, a cortina se fecha. Hardy se despede. E nós somos deixados para contemplar o pano escuro que recai sobre a história, atônitos.
“As coisas do passado nunca estariam completamente passadas, enquanto não fosse passada ela própria.”
No desfecho fatalista, que somou com seus outros romances para que o autor recebesse a alcunha de “pessimista”, Thomas Hardy parece nos entregar uma verdade crua: somos todos sopros insignificantes diante da mobilidade do universo e da implacabilidade do progresso irregular. Alguns são bons e honestos, outros não, e a sociedade, em sua estrutura desleal, nem sempre vai favorecer aos primeiros.
Mas, antes que pensemos em desistir de tudo ao fechar o livro, me parece que outra mensagem se entrelaça à história de tristezas de Tess dos D'Urbervilles, uma mensagem que nos orienta a olharmos com olhos mais empáticos às mulheres que nos rodeiam, que nos incentiva a estender a mão ao invés de julgar e que nos lembra que sempre é possível recomeçar. Pois se Tess não foi acolhida pela sociedade que a criou, julgou e condenou, que possamos hoje prestar atenção ao nosso redor e ter a sapiência de estender a mão, sempre que possível, para qualquer Tess que cruzar o nosso caminho.
Referências
- Tess (Thomas Hardy)
- "His Country": Hardy in the Rural (Ralph Pite)
- The Norton Anthology of English Literature – Volume E
- Culture writer Harpal Khambay tackles why Tess of the D’Urbervilles outraged the Victorians, and how Thomas Hardy deals with issues of consent that are still relevant in our society (Redbrick)
- De Wessex para o mundo: a universalidade de Tess of the D’Urbervilles (Isaías Eliseu da Silva)
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Muito bom! Sempre me surpreendo com teus textos!
ResponderExcluirobrigada! Fico feliz demais com o retorno!
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