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As bruxas de Goya


“Nós só vemos o que olhamos. E o olhar é um ato de escolha. […] A gente nunca olha só uma coisa; sempre olhamos para a relação entre as coisas e nós.”

(Modos de ver, John Berger)


As bruxas são presença constante na literatura, no cinema e na pintura. De fato, poderíamos fazer uma longa viagem pela história da cultura na Europa, evidenciando como transformações econômicas, religiosas e sociais foram lentamente alterando a concepção da bruxaria. Embora a proposta neste texto seja mais modesta, gostaríamos de estimular os leitores a contemplarem por alguns minutos as bruxas do artista espanhol Francisco José de Goya y Lucientes, ou tão somente como ficou conhecido, Goya.

Goya trabalhou o tema da bruxaria em diversas obras, adotando diferentes perspectivas. Ora cômica, ora satírica e até mesmo em gravuras com críticas sociais, as bruxas perpassam o itinerário artístico do pintor. Hoje, é difícil não pensar em Goya quando falamos do tema na pintura.

Para o pensador búlgaro Tzvetan Todorov, “Goya não é somente um dos principais pintores de sua época: é também um dos pensadores mais profundos daquele período”. Isso porque quando ele pinta, seu pincel é mais do que uma representação, trata-se também de ideias, de crítica, e até mesmo de crenças. Goya pintando fala profundamente sobre a nossa natureza humana. 

O homem enfeitiçado, de Goya (1798)

Todorov não foi o primeiro que considerou Goya como um pensador. Com efeito, interpretações e comentários de biógrafos ainda no século XIX ressaltavam a particular mescla do artista entre ideias e cores. Por exemplo, em 1867, escreveu Charles Yriarte: “Por trás do pintor, há o grande pensador cuja trilha foi fecunda... o desenho se faz idioma e serve para formular o pensamento”.

Aqui, é preciso evidenciar a pergunta básica: pode a imagem pensar? E se a resposta a essa pergunta for positiva, então de que modo isso acontece? Essas questões estiveram no radar de interesse de diversos críticos de arte e de filósofos da arte do século XX, de Merleau-Ponty a John Berger, e também, claro, de Todorov. Aliás, a respeito disso, escreveu o intelectual búlgaro:

“A imagem é pensamento, tanto quanto aquele que se exprime por palavras; ela é, sempre reflexão sobre o mundo e os homens. Quer saiba disso ou não, um grande artista é um pensador de primordial importância.”

Então, se podemos dizer que a imagem é pensamento, o artista é um filósofo. Tratar-se-ia tão somente, a partir daí, de entender que tipo de pensamento é este. Ou seja, do que exatamente esse pensar se ocupa? Se é da moral, das paixões, da política, ou de outros temas. Aqui, nos concentramos na imagem-pensamento sobre bruxas.

Sabá das bruxas, de Goya (1798)
Como escreveu Todorov, falar das bruxas, ou no caso de Goya pintar sobre bruxas, está longe de ser uma mera arbitrariedade. Quando Goya pintava e desenhava bruxas havia sempre mais por detrás desse ato. O que exatamente está ali, então?

Goya adoeceu gravemente no ano de 1792. Não se sabe exatamente qual era a enfermidade, exceto que durou meses e deixou-o em péssimo estado, terminando por mudá-lo como pessoa. Ele ficou surdo, e a surdez, segundo Todorov, serviu para reforçar o sentimento pré-existente de solidão, já que o artista não se comunicava mais pela fala. Seu principal sentido, mais do que antes, era agora a visão.

É a partir daí que a pintura de Goya começou a ficar diferente. Ele renuncia a sua posição na Academia de pintura, afasta-se da vida pública e social que mantinha antes na corte. Em suas cartas pode-se ver que ele decide pintar não mais somente as encomendas, porém, também, para seu próprio deleite. Agora, bastava que o tema interessasse ao próprio pintor. E as bruxas, sem dúvida, o interessavam muitíssimo.

Quando essa mudança acontece, de acordo com Todorov, o pintor espanhol parece ter se dado conta de que deveria mostrar o mundo não tal como era, mas sim, tal como ele lhe parecia. A percepção subjetiva toma lugar da objetiva, as sombras e luzes tomam o lugar das linhas e das cores. Naquele momento a doença “abriu-lhe ao mesmo tempo os olhos sobre um aspecto da vida: a impotência ante o desastre”.

El Gran Macho Cabrio o brujas sábado, de Goya (1823)
Foi assim, que monstros, máscaras, caricaturas e bruxas entraram pela porta da frente na obra de Goya. Isto é, justo quando o pintor buscava penetrar o enigma do mundo mais profundo, o enigma do seu próprio ser.

Daí que em cartas trocadas com seu amigo Martín Zapater em fevereiro de 1784, o pintor afirmou: 

“Eu já não temo as bruxas, nem os duendes, nem os fantasmas, nem os gigantes fanfarrões, nem os poltrões, nem os larápios, nem qualquer tipo de ser, não temo nada nem ninguém, exceto os humanos.”

Por um lado, parece ser isso que as bruxas de Goya representam em suas obras então, a humanidade, em sua cara mais crua e monstruosa, em sua cara mais humana. Quem também percebeu isso foi Charles Baudelaire:

“O grande mérito de Goya consiste em criar a monstruosa verossimilhança. Seus monstros nasceram viáveis, harmônicos. Ninguém ousou mais do que ele no sentido do absurdo possível. Todas essas contorções, esses rostos bestiais, essas caretas diabólicas estão penetradas de humanidade. Mesmo do ponto de vista particular da história natural, seria difícil condená-los de tanta analogia e harmonia em todas as partes de seu ser; numa palavra, a linha de sutura, o ponto de junção entre o real e o fantástico é impossível de determinar: é uma fronteira vaga que a análise mais sutil não poderia traçar, de tanto que a arte é simultaneamente transcendente e natural.”

Capricho nº. 68: Linda maestra, de Goya (1799)

Nessa mesma linha, Todorov aponta que as bruxas de Goya são bruxas, mas não são exatamente representações sobrenaturais. Elas são reais, palpáveis, não há um brilho sobrenatural, não há algo transcendente em sua imagem. Pelo contrário, estão marcadas pela sua humanidade.

É claro que há quem discorde dessas intepretações, como lembra Todorov. Há quem vá ler a presença das bruxas a partir de uma perspectiva paradoxal. Por um lado, elas seriam empregadas pelo artista para zombar das superstições do povo, em moda na época. Aos nobres esclarecidos imbuídos de ideias iluministas, os quadros de gênero da bruxaria tinham um caráter quase cômico. De fato, o pintor espanhol teria produzido algumas telas desde essa perspectiva para a casa de campo do Duque e Duquesa de Osuna. Mas será que todas suas bruxas podem ser lidas assim?

Vuelo de brujas, de Goya (1798)
Particularmente, assim como Todorov, prefiro entender que há um tipo de mensagem indireta na escolha de Goya de pintar bruxas. Ele leva a sério as profundezas da mente e os terrores secretos que a razão não pode enfrentar; isso aparece em sua obra na forma de monstros, demônios e bruxas. Frente à razão, que tudo pretendia iluminar e esclarecer, triunfando vitoriosa, e ignorando as crenças supersticiosas e o profundo em nós, as bruxas dão vazão a esse outro lado. Representam aquele lugar da mente que não alcançamos racionalmente.

Isso quer dizer que Goya não mobiliza em vão a poderosa iconografia da bruxaria. Quando ele as pinta, o que faz é na verdade refletir sobre o lado mais escuro da humanidade, lado esse que não pode ser suprimido mesmo pelos mais árduos esforços do Iluminismo. Então, se suas bruxas são tão reais, é porque elas nos evocam o que há de mais humano em nós mesmos: a subjetividade, o terror e o eterno encantamento pelo mistério.

Referências





Arte em destaque: Caroline Cecin 

Laura Elizia Haubert
Doutoranda em Filosofia na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina (bolsista CONICET). Graduada e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cursando atualmente uma especialização em Arte e Filosofia pela PUC-Rio. Também é autora dos livros "Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul" (Patuá, 2017), "Memórias de uma vida pequena" (Quintal, 2019) e "Doce olho do furacão e outras fúrias" (Penalux, 2021). Atualmente vive em Córdoba, na Argentina.

Comentários

  1. Que texto maravilhoso! Não conhecia Goya, mas fiquei curiosa para saber mais :)

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