A busca pela definição figurada do símbolo "água" é um processo escorregadio. Assim como a sua imaterialidade, ela flui para todos os trajetos entre as setes artes e se vangloria por não se conformar com um veredicto. Veja bem, no cinema, nas artes plásticas, na literatura, e assim por diante, esse substantivo feminino já carregou os significantes de perversão, fúria, sexualidade, inocência, melancolia, revolta, pureza, renovação e tantos outros que com certeza se perderam pelo caminho. Todos, diga-se de passagem, referentes à imagem feminina. Foi essa miscelânea potente e singular de significados que ficou responsável pelo pano de fundo do último ensaio fotográfico realizado pela atriz Marilyn Monroe. É apenas justo que uma das mulheres que mais tentaram acoplar na definição de símbolo sexual, limitando-a às exigências masculinas mundiais, e que ao mesmo tempo permanecia uma figura indecifrável e completamente indefinida se despisse diante do público sob os respaldos das torrentes marítimas.
Como um desejo da própria atriz, o fotógrafo George Barris, amigo de anos, propôs um ensaio na qual o público iria ver a verdadeira Marilyn, aquela que tentaram solenemente apagar. Em meio às crises pessoais e profissionais, dilatadas pela demissão da Fox durante as filmagens do incompleto filme Something’s Got To Give (1962), Marilyn viu a oportunidade de provar para o mundo que os tempos de peão de estúdio haviam acabado e que iria seguir sua própria consciência. Planejava reabertura da sua produtora, autobiografias, ainda mais estudos com o Actor’s Studio, já havia supostamente fechado um contrato milionário para o seu próximo filme com a Fox após deliberações de ambas as partes... Parecia o momento perfeito para descortinar, de vez, o mito. Durante o ensaio, Monroe usava o mínimo de maquiagem e roupas básicas, que combinavam com o ambiente despretensioso. Dentre as inúmeras imagens que foram tiradas e transformadas em livro após a sua morte, uma que se destaca é a dela na praia acompanhada de uma senhora desconhecida que passava pelo local na hora do registro.
À primeira vista, é claro, o olhar é totalmente direcionado para Marilyn. Mais do que a própria essência da imagem, a atriz carrega em si uma aura camaleoa, que parece se adaptar a cada ensaio na qual é registrada. Em si, Marilyn carrega, nas palavras de Walter Benjamin, uma energia quase religiosa, que convida o observador a mergulhar na experiência prazerosa de olhar o outro. É sabido e declarado entre fotógrafos do passado e contemporâneos que Marilyn era uma das poucas que tinham o maior controle da sua imagem e da câmera sem que ao menos fosse compreensível o porquê. Aqui, a aura ganha ainda mais valor por ir além da experiência estética que perpetuava a aplicação do conceito em um primeiro momento do seu estudo. O objeto aqui não está sendo registrado somente a fim de proporcionar o culto do mito que engloba a figura - física - da atriz, mas sim os “mistérios na intimidade dos rostos fotografados em retratos que sugerem algo externo às próprias fisionomias, uma espécie de aura ou vapor misterioso que aparecia”. Trespassado pelos pensamentos do fotógrafo e intenções da atriz, o instante registrado reflete novas indagações e percepções acerca dela. Se no início o objetivo era mostrar uma outra faceta da mulher, sua história, “tentando recriar diversos períodos da vida dela nessas imagens. Até mesmo nas fotografias que tinham como objetivo mostrá-la na sua fase adulta”, hoje essa imagem, marcada pelo corpo cicatrizado, pelo biquíni molhado de desglamourização, pelas rugas do amadurecimento, expõe a busca incessante que o público nunca permitiu a Marilyn: a de simplesmente viver. O público segue encantado com sua imagem, sem dúvidas, mas dessa vez sob uma nova ótica completamente inesperada e surpreendente - aos olhos da época - de que por baixo de todo o glamour havia uma pessoa.
No entanto, em uma crescente análise, o que sobressai não é somente a aura da presença etérea da atriz enquanto objeto de admiração e contemplação como também o inconsciente ótico que denuncia o índice e presença de um instante de segundo que leva o observador, principalmente aquele com um leque maior de informações sobre a fotografada, para um tempo que não aquele somente registrado. Ao contrário da primeira percepção, o “punkto”, apontado em uma análise publicada por Mauricio Lissovsky como força de algum detalhe imagético capaz de mover o ser humano, não é a figura da Marilyn. O que reitera a magia desta aura é o anonimato da presença que se faz presente no fundo da imagem. Em suas anotações, no momento em que a senhora passa por trás da Marilyn, Barris questiona se deveria continuar fotografando com essa interrupção no quadro. Marilyn diz que sim. Na época, é claro, não havia como compreender o que essa interrupção iria resultar, mas hoje é evidente que a presença dela reafirma toda a intenção do ensaio. No momento que a anônima está atrás de Marilyn, esta se inclina para trás, como se estivesse em uma tentativa dela adentrar o espaço do outro e não ao contrário. É como se houvesse um magnetismo que a puxasse para o lugar-comum, para pessoas que representassem a realidade da vida, materializado na linguagem corporal totalmente confortável da atriz.
Nessa quebra da ordem imposta em um acordo estético com o fotógrafo, o que se expõe é uma ideia de pertencimento, de humanização de alguém que foi transformado em algo totalmente abstrato, tal qual um produto a ser consumido a preço de nada e às custas de tudo. Paradoxalmente, a presença dessa figura reafirma o aspecto quase que divino da Marilyn ao mesmo tempo que aponta para a necessidade dela de ser igual a todo mundo, de ser vista como qualquer outro ser humano.
São notórias as discrepâncias visuais entre as duas, mesmo com todo o desmonte acerca da produção da atriz, que legitimam esse paradoxo: Marilyn de biquíni enquanto a senhora está toda agasalhada em uma tarde fria na praia denuncia que a atriz é uma figura sempre exposta assim como é essa mesma condição que a atrai para a proteção que a roupa, a simplicidade, a normalidade e o anonimato a proporcionam. Por conseguinte, quando presta-se atenção na desconhecida, percebe-se que ela não devolve a cumplicidade, ela nem sequer olha para a atriz, mas sim para o fotógrafo. Por um instante, parece que ela deseja ser vista. Em um processo mutualístico, as duas parecem entrar em um acordo entre si, de se permitirem sair dos papéis designados para cada uma. No decorrer da vida, essa foi uma das suas muitas indignações, o que resultou em produções de diários de poemas e anotações. Um deles deixa claro que nem ela mesma concebia tamanha sub-humanização a qual lhe foi imposta pelo estúdio em Hollywood:
“Por que eu sinto essa tortura? Por que eu me sinto menos humana do que os outros seres humanos? Sempre me senti como se eu fosse sub-humana. Por quê?”
Este registro, portanto, oferece uma importância ao que foi capturado, só que dessa vez não foi à entidade Marilyn Monroe, foi ao indivíduo. Susan Sontag aponta que o ato de fotografar é, em sua natureza, um ato de cumplicidade entre o profissional, o objeto e a intenção ali investida. O fato de George Barris ter capturado esse instante, embora tenha sido algo inesperado, evidencia o comprometimento consciente com as “coisas como elas são, pela permanência do status quo (pelo menos enquanto for necessário para tirar uma 'boa' foto)” - neste caso, aqui, sendo a persona por trás do glamour e do jogo do entretenimento. A humanidade do ícone é o que Barris, em acordo com a atriz, “quer que torne um tema interessante e digno de se fotografar — até mesmo, quando for esse o foco de interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa”.
A cumplicidade do registro engrandeceu no decorrer do tempo e a partir de novos descortinamentos sobre a vida pessoal da atriz, corroborando o inconsciente ótico presente na dubiedade da imagem. No entanto, esse elemento invisível, essa troca, ainda se faz sorrateiro, quase que imperceptível aos olhos de um observador ingenuamente voyeur. A cumplicidade reside, mais do que tudo, na relação e solidariedade que aconteceram entre os cliques, sendo este registro apenas a comprovação de que ela, evidentemente, existiu. Sendo uma consequência de uma hierarquia entre os dois pólos envolvidos, para o bem ou para o mal, de modo que o ato de fotografar é “violá-las, ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter, transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente possuídos”, a cumplicidade corre o risco de ser uma faca de dois gumes e por vezes reitera a ideia de Sontag de que a fotografia não é neutra, de modo a não haver igualdade entre fotógrafo e fotografado. À luz dessa abordagem, entende-se que, na grande maioria das vezes, é a câmera que detém esse poder, tornando ainda mais esplêndido o fato de que neste registro, neste ensaio como um todo, o jogo foi invertido e em risco de ser desmantelado.
Se Barris decidiu que o clima nublado da praia no dia em questão evocava reflexões, foi porque ela permitiu que ele enxergasse suas turbulências pessoais nas horas de entrevistas que antecederam o ensaio; se ele capturou um vislumbre da inocência da infância em cada uma dessas fotos, foi porque ela se direcionou para o mar e se pôs a brincar na água, tal qual fazia quando era criança; se este registro nasceu, foi porque ele percebeu a presença da senhora e ela, em uma resposta à pergunta dele, permitiu que houvesse essa quebra enquanto ela se desnudava diante dele, da anônima e do mundo, do mar, das nuvens. Um precisava do outro para que o resultado refletisse a importância então sugerida: sem a sensibilidade de George Barris, Marilyn Monroe não teria podia mostrar o seu eu, e sem Marilyn Monroe, George Barris não teria registrado as imagens mais cruas e sinceras da pessoa mais fotografada do mundo e ainda assim nunca vista. Foi preciso um relacionamento de igualdade - ou ao menos quase isso -, uma idiossincrasia que não passou despercebida pelo autor, tendo apontado que “Ela entendeu instintivamente o que eu queria. A química entre nós dois fluía perfeitamente. Me parecia como se um ímã estivesse atraindo a nós dois para este projeto, o que nos deixava animados”. Marilyn tinha plena noção do que iria ou não mostrar, e Barris, a perceptividade de um gavião que nada deixa escapar.
Essa imagem é a epítome de todo o ensaio. Na companhia das imagens posadas, que ainda assim revelam a espontaneidade e honestidade almejada, entre elas, as dela sorrindo na praia ou no apartamento em um momento de contemplação da vista de Los Angeles, esse registro agrupa a intenção que um filme de milhares de imagens não seria capaz de sustentar sozinha. Embora George Barris afirme que durante o ensaio, que só veio a público após alguns anos da morte de Marilyn, “Às vezes, eu sentia uma tristeza ao assistí-la, uma garota linda que conquistou o impossível, o sonho de todas as garotas lindas e talentosas - o mesmo enquanto uma atriz da tela prateada. Eu podia sentir uma tristeza nos seus olhos; ela havia aprendido a sorrir, rir e brincar, mesmo que o seu coração estivesse quebrando”, o que sobressai é a verídica axioma de tudo. Todas as fotos carregam uma fidedignidade antes não vista em relação ao símbolo e que serão eternamente agrupadas no registro com a anônima: a humanidade, a vitalidade, a esperança, a empatia, o desejo, o pertencimento, a melancolia, a descrença, a solidão, tudo pode ser visto ali.
Percebe-se, portanto, a ocorrência da mais pura condição de estar vivo: um ser que por anos se perdeu em meio às dores da vida ao mesmo tempo que se recusava a ser definida por elas e lutava por um sonho, por um reconhecimento, por uma paixão que seria maior do que ela. Nesses olhos, nesse corpo que se chocava contra as ondas, não havia somente uma busca por um recomeço. Era uma súplica resiliente para que o público a aceitasse e a aclamasse em sua melhor e mais vívida performance: sendo ela mesma. Em suas próprias palavras, “enquanto alguém está vivo, este pode ser vital. Mas você não desiste até que você pare de respirar”, concluindo o que seria o seu eco perpétuo que só foi ouvido quando não estava mais aqui para clamar.
What do I believe inWhat is truthI believe in myselfeven my most delicateintangible feelingsin the end everything isintangiblenever spill don’t spill your precious liquidlife forcethey are all my feelingsno matter what(Marilyn Monroe)
Referências
- Pequena história da fotografia (Walter Benjamin)
- Marilyn: her life in her own words (George Barris)
- O sumiço da senzala: tropos da raça na fotografia brasileira (Mauricio Lissobsky)
- Fragments: poems, intimate letters, and personal notes by Marilyn Monroe (Marilyn Monroe)
- Sobre fotografia (Susan Sontag)
- Texto: Thaissa Barzellai é Produtora, Crítica de Cinema e Jornalista Cultural. Desde a adolescência, Thaissa cultiva o interesse pelo cinema hollywoodiano clássico, tendo desde cedo mergulhado na vida da atriz e produtora Marilyn Monroe, com quem se identificou imediatamente e até hoje investe em uma pesquisa séria e honesta acerca de sua trajetória pessoal e profissional. Sem abrir mão das suas duas áreas do coração, o Jornalismo e a sétima arte, Thaissa trabalha atualmente como Assistente de Produção Executiva na AfroReggae Audiovisual, como crítica cinematográfica para o site Cinematologia e repórter freelancer em coberturas de grandes festivais, dentre eles os Festivais de Gramado e do Rio. Enquanto cineasta, integrou o júri especial do Festival Curta Cinema do Rio de Janeiro e foi convidada especial da TV Gazeta.
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