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Entre arte e beleza: Charles Batteux e o conceito de belas-artes


Quando falamos de arte, independentemente do tipo de arte, quase sempre a beleza aparece como um componente importante. É um elogio comum para os filmes ou pinturas que vimos, ou ainda para as canções que escutamos. Inclusive, causa-nos certa estranheza e desamparo quando nos deparamos com obras que estão livres dessa concepção. Rapidamente nos questionamos se aquilo é verdadeiramente arte.

A verdade é que os conceitos de beleza e arte nem sempre estiveram juntos na história da estética européia, e muito menos na antiguidade grega clássica. Curiosamente, apesar de parecer um clássico de longa data, afinal, quem não chamaria de belo uma escultura da antiguidade grega? 

Por exemplo, como mostra Larry Shiner (2017), os antigos gregos, que tinham termos para quase tudo, não tinham sequer um termo parecido para o que hoje chamamos de arte, muito menos para as chamadas belas-artes. As artes eram, na época, uma técnica, um saber fazer. A beleza, por sua vez, estava relacionada a moral, isto é, a outra esfera de preocupações.

Então, de onde exatamente nasceu a fusão entre essas duas coisas, digo, entre arte e beleza? Essa é uma longa história que tem um pontapé inicial no Renascimento, mas que vê sua consolidação de fato apenas durante a Modernidade, no século XVIII.

É claro que foi preciso uma série de mudanças para essa afinidade se consolidar. Por exemplo, foi necessário que os artistas deixassem de serem considerados artesãos, de que as obras começassem a ser admiradas por algo além das funções práticas decorativas ou religiosas, de que se percebesse que as obras de arte tratam de uma experiência distinta que hoje se chama de estética. É depois desse longo caminho de séculos que a relação entre arte e beleza pôde criar raízes e se consolidar.

Com efeito, como mostrou Larry Shiner, durante todo o século XVII, a expressão "belas-artes" ("beaux arts") havia sido empregada para tratar de algumas formas de arte, embora estivesse longe de reunir todas elas. No entanto, é só mais especificamente com o pequeno ensaio do humanista francês Charles Batteux (1713-1780) intitulado “As Belas-Artes Reduzidas a um Mesmo Princípio”, de 1746, que vemos uma consolidação elaborada da ideia que reúne pela primeira vez o que ainda hoje chamamos de belas-artes. É aqui que se torna óbvio que beleza e arte teriam algo a ver uma com a outra, afinal de contas.


Batteux é uma figura pouco conhecida hoje. Nasceu em 6 de maio de 1713, em Paris, na França, e morreu em 14 de julho de 1780. Foi um humanista, retórico e filósofo que se dedicava a teoria literária e a poesia grega, tendo lecionado no Collège Royal de Paris, além de ser um ilustre membro da Academia Francesa. É graças a ele que um de nossos conceitos mais comuns do mundo da arte nasceu.

Aliás, como herdeiros de sua tradição, ainda que inconscientes, a ideia de associar beleza e obras de arte nos parece um tanto óbvia. Contudo, essa associação não é necessariamente tão elementar e uma breve pincelada pelo contexto nos ajuda a entender melhor isto. Afinal, por que associar beleza e arte e por que só no século XVIII?

Aqui é de grande auxílio as investigações de Ernst Cassirer (1992), que nos pintam um certo panorama. Em resumo, com Renée Descartes e o surgimento da filosofia moderna, estabeleceu-se a ideia de que a natureza estava submetida a leis universais e invioláveis, como deixaria mais evidente depois Isaac Newton. Ora, como havia desde o Renascimento a tentativa de traçar paralelos entre ciência e arte, nada mais natural que buscar para as artes, assim como existia para as ciências, um certo tipo de axioma. Isto é, as artes, assim como a natureza e a ciência, deveriam obedecer a um conjunto de regras. Essa regra é nada mais do que a beleza, ou mais propriamente a bela imitação da natureza na concepção de Batteux.

“Qual é então a função das artes? É a de transportar os traços que estão na natureza e apresentá-los em objetos que não são naturais. É assim que o cinzel do escultor mostra um herói em um bloco de mármore. O pintor, com suas cores, faz sobressair da tela todos os objetos visíveis. O músico, com sons artificias, faz bramir a tempestade, embora tudo esteja calmo; e o poeta, enfim, com sua invenção e com a harmonia de seus versos, preenche nosso espírito de imagens fingidas e nosso coração de sentimentos artificiais frequentemente mais encantadores do que seriam se fossem verdadeiros e naturais. Donde concluo que as artes, naquilo que é propriamente arte, são apenas imitações, semelhanças que não são a natureza, mas que parecem sê-lo; e que, assim, a matéria das belas-artes não é o verdadeiro, mas somente o verossímil."

(Charles Batteux)

Essa ideia de belas-artes de Batteux, isto é, de reunir sob um mesmo axioma determinados tipos de produção reconhecendo-as como artísticas e belas, é inovadora e logo se propagou com sucesso por toda a Europa. Ainda hoje empregamos o termo nesse sentido para tratar de determinados tipos de produção artística. Afinal, quem nunca escutou a expressão "belas-artes"?

As belas-artes são, portanto, aquelas produções que imitam a bela natureza, isto é, que são regidas pela regra da imitação e que visam produzir objetos belos que nos permitam fruir experiências do tipo estética. Essas produções agrupadas pela primeira vez de forma mais completa pelo humanista reuniam as seguintes atividades sob o nome de belas-artes: a música, a poesia, a pintura, a escultura, a dança, e também a eloquência e a arquitetura.

“Definiremos a pintura, a escultura e a dança como uma imitação da bela natureza, expressa pelas cores, pelo relevo, pelas atitudes; a música e a poesia, a imitação da bela natureza expressa com sons ou pelo discurso medido.”

(Charles Batteux)

Essa noção de Batteux de que existia certo conjunto de atividades que eram belas e que constituam o núcleo da arte vigorou por mais de um século. Foi objeto de debate de inúmeros intelectuais, e ainda hoje segue firme em nosso imaginário popular quando associamos beleza e arte quase que automaticamente, tornando-nos todos seus herdeiros intelectuais.

Embora no século passado, com o surgimento das vanguardas e com as novas formas e concepções da arte contemporânea, a beleza tenha perdido terreno e a ideia de imitar belamente algo tenha quase desaparecido, não podemos esquecer de suas origens e desse pensador que contribuiu para a sistematização do mundo da arte. Talvez, hoje, arte e beleza já não andem de mãos dadas, porém isso não tira o mérito e a importância dessa teoria estética que reinou soberana por mais de um século.

Referências 

  • As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio (Charles Batteux)
  • A filosofia do Iluminismo (Ernst Cassirer) 
  • La invención del arte: una historia cultural (Larry Shiner)
Laura Elizia Haubert
Doutoranda em Filosofia na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina (bolsista CONICET). Graduada e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cursando atualmente uma especialização em Arte e Filosofia pela PUC-Rio. Também é autora dos livros "Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul" (Patuá, 2017), "Memórias de uma vida pequena" (Quintal, 2019) e "Doce olho do furacão e outras fúrias" (Penalux, 2021). Atualmente vive em Córdoba, na Argentina.

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