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Entre o amor e a liberdade: Court and Spark, de Joni Mitchell

Los Angeles, 1974. Âmago da cultura pop, a maior cidade da Califórnia atraía artistas de todo o mundo, com destaque para o ramo musical. Entre seus residentes estavam Frank Zappa, Carole King, James Taylor e Joni Mitchell, que havia estreado ali em 1968. Aclamada pelo público e pela crítica presentes no show do Troubadour, a performance foi descrita pelo jornalista Pete Johnson para o L.A. Times como: “sua voz paira perfeitamente através das canções, nunca se acomodando em interpretações de rotina, mas bordando tudo graciosamente”

Naqueles anos seguintes ao lançamento do seu primeiro álbum, Song to a Seagull (1968), Joni Mitchell já aparecia na TV, rádio e mídia impressa, sendo reconhecida principalmente pelas composições que se tornaram hits na voz de outros artistas, como “Both Sides Now”, por Judy Collins, e “Woodstock”, por Crosby, Stills, Nash and Young. As narrativas líricas e pessoais da cantora canadense a tornariam um nome essencial para o gênero folk, a exemplo do minimalista álbum Blue (1971), que revelava seus sentimentos mais íntimos após o término do relacionamento com Graham Nash

No entanto, ela nunca gostou de ser chamada de compositora confessional – “como se andasse por aí com cassetetes, dizendo ‘você vai confessar!’” – e, numa entrevista para a CBC em 2013, apontou as incoerências do rótulo: “O que é tão confessional? Estar triste? Então você nunca esteve triste?”. Se até então Joni soava como uma confidente para seus ouvintes, em breve esse tom intimista cederia lugar para o experimentalismo do seu maior sucesso comercial, Court and Spark. O álbum marca um momento de transição em sua carreira, que a levaria a ser capa da revista Time e a dividir o título de Artista do Ano com Stevie Wonder, em 1974. 

Joni Mitchell no Community Center de Berkeley, Califórnia (1974)

Em busca de autonomia

Joni Mitchell se tornou compositora por acaso. A sua maior afinidade era com a pintura mas, depois de abandonar o curso na Universidade de Artes de Alberta, em Calgary, e se mudar para Toronto, precisava escrever músicas como uma forma de sustento. Ela relata que vivia em uma casa repleta de artistas que passavam fome e, para conseguir algum dinheiro, começou a tocar violão em cafés (coffeehouses). Nos bastidores, porém, era comum outros cantores de folk perguntarem quais eram as canções de seu repertório e reivindicarem algumas para o repertório deles, demonstrando uma atitude territorialista, afinal, sequer eram seus autores. Para evitar esses atritos, Joni passou a compor. 

“Comecei a escrever minhas próprias músicas em meio ao trauma de ser mãe solteira e desamparada. Quero dizer, desamparada em uma cidade estranha, grávida, vivendo em um quarto que custava quinze dólares por semana. Era o quarto do sótão, e as grades... restava uma de cada quatro grades que havia originalmente porque, no inverno anterior, as pessoas tinham queimado algumas para manter o quarto aquecido. O dono era um chinês que, segundo comentavam, estava só esperando meu filho nascer para me mandar para Xangai ou algo do tipo.”

Mesmo após alcançar sucesso, ela preferia ser ouvida por audiências de 30 a 40 pessoas, em pequenos clubes, ao barulho da multidão. A respeito de sua personalidade reservada, o amigo e produtor David Geffen afirmaria: “você é a única estrela que eu já conheci que preferiria ser uma pessoa comum”. Dentre as preocupações de Joni estava evitar que houvesse um abismo entre o que ela apresentava e quem ela era, o que a levou a passar longos períodos sem conceder entrevistas para não ser incompreendida ou citada erroneamente. 

A revista Rolling Stone chegou a ser ignorada por sete anos após circular boatos sobre sua vida amorosa que também afetavam sua imagem. Isso porque, na década de 1970, o fato de ser divorciada, escrever sobre relacionamentos e viver em um meio predominantemente masculino gerava rumores de que ela teria se envolvido com outros cantores para escalar na indústria musical. Em 1971, uma matéria se referiu a ela como Mulher Vivida do Ano (Old Lady of the Year) e, no ano seguinte, um quadro contendo seus supostos interesses afetivos foi publicado. 

À esquerda: Rolling Stone (1972); à direita, capa da Time (1974)
Em 1972, a revista Rolling Stone levanta rumores sobre supostas conexões amorosas de Joni Mitchell a fim de alcançar sucesso. Em 1974, Joni ilustra capa da Time sobre a presença de mulheres no rock.

O fato de seu comportamento ser tão julgado, além de demonstrar o teor do sexismo vigente, reforça o quanto Joni rompia com as convenções sociais impostas sobre as mulheres. A sua busca por autonomia incluía a escolha de não se casar e já estava presente em músicas como “Woman of Heart and Mind” e “Cactus Tree”, cujos versos revelavam a ambição de se emancipar das expectativas masculinas. Ao mesmo tempo, crescia o desejo de romper com ritmos clássicos e, tendo Chuck Berry como uma de suas inspirações, explorar acordes mais extensos que os de rock, aproximando-se de um rocky jazz

Do folk ao jazz e pop rock 

Desde que começou a gravar discos, Mitchell buscava uma sonoridade específica vinda do baixo e da bateria, algo com maior ressonância, bem diferente do que os músicos de rock tocavam nos anos 1960. Acostumados a um som “mudo”, seco e curto, eles se recusavam a tocar da forma que Joni queria porque achavam o estilo antiquado. Essa busca durou mais de cinco anos e só chegou ao fim durante as primeiras gravações de Court and Spark, quando Russ Kunkel sugeriu que ela procurasse um baterista de jazz para substituí-lo. Em seguida, passou a frequentar clubes como o Baked Potato, onde encontrou a banda L.A. Express, um grupo de fusão de jazz-rock liderado por Tom Scott.

Ela e os membros do grupo começaram a trabalhar juntos no novo álbum, porém ainda levaram muitas sessões até chegarem ao resultado desejado. Devido à sua sonoridade única e complexa – ela era “a orquestra inteira em um violão”, nas palavras do baterista e percussionista John Guerin –, era desafiador para os músicos adaptarem as composições do violão para a banda. Concentrando seus esforços na gravação de Court and Spark, Joni só realizaria quatro shows ao longo do ano de 1973.

“Eles não sabiam direito a intensidade com a qual deveriam tocar, e eu já estava acostumada a ser toda a orquestra. Às vezes isso me desencorajava muito. Mas uma noite, de repente, superamos os obstáculos. E logo soubemos, tivemos a certeza de que estávamos fazendo algo único.”

Apesar do principal grupo de instrumentos ser composto por bateria, baixo, guitarra elétrica, piano elétrico e sopros, às vezes somados a trompete, sinos e clavinete, cada música foi concebida com uma combinação instrumental própria, a exemplo de “Down to You”, que também contém cordas, trompas, fagote, oboé, clarinete e até harpa. O resultado final viria a ser elogiado como a síntese perfeita entre folk, pop rock e jazz, com uma engenharia de som executada por Henry Lewy que levaria grandes nomes, como Brian Eno, a considerá-lo o melhor álbum neste quesito. 

Um divisor de águas

Court and Spark não se destaca apenas no aspecto melódico, com uma banda que combina a sensibilidade rítmica do jazz com o compasso quaternário do folk-rock, mas também no lírico, abordando como tema o conflito entre amor e liberdade. Nas palavras da própria Joni Mitchell, trata-se de “um discurso sobre o amor romântico contra o pano de fundo de seu tempo”. E por mais que haja diversos estudos e interpretações para as músicas que o compõem, impera o consenso de que o álbum foi um divisor de águas na carreira da artista.

Sob o olhar da jornalista Malka Marom, que entrevistou Mitchell durante os ensaios, a impressão que a cantora transmitia mudou drasticamente na companhia da banda L.A. Express: “Há algo masculino, um certo poder e confiança transmitido pelo baixo e pela bateria. Porém parte da imagem e do encanto de Joni Mitchell está na vulnerabilidade causada pela presença de uma pessoa solitária no palco”. Quando a jornalista perguntou se, ao compartilhar espaço com a banda, a cantora não corria o risco de perder aquela imagem, recebeu a resposta acompanhada por uma risada: “Eu não quero ser vulnerável!”

O escritor e músico Sean Nelson afirma que a originalidade do álbum, consagrado como clássico, está em abordar sentimentos e sons universais que evocam e revelam o momento cultural em que foi produzido. Situado entre a revolução sexual e o aumento nos índices de divórcio, o disco é “emocionalmente ambivalente, romanticamente desapontado, estilisticamente autoconsciente, espiritualmente modesto e pragmaticamente pop”. Capaz de soar otimista mesmo lidando com um tema tão denso, como as consequências da busca pela liberdade, a obra é radicalmente honesta ao explorar questões como a intimidade e o estranhamento.

Essa honestidade presente desde os primeiros álbuns, que inspiravam identificação intensa em seus ouvintes, era um dos parâmetros usados por Joni Mitchell para avaliar seus trabalhos. Revelar uma verdade cada vez mais profunda, além de envolver uma corajosa abertura diante do público, significava superar seus próprios limites. Na nova fase que se inaugurava, essa atitude soa como uma expedição fora de si, a fim de se reconhecer nas pessoas que encontra para, assim, lançar luz sobre os aspectos de sombra dela mesma e dos outros. 

Se os temas de amor e liberdade já estavam presentes em outros discos, neste a ambivalência é acentuada, de forma ao mesmo tempo pessoal e desapegada, para ser organizada em oposições como segurança e ceticismo, sanidade e loucura. O par “amor e liberdade” se destaca porque Mitchell vê o amor como antônimo de liberdade, esforçando-se para redefinir esses ideais ao mesmo tempo em que enfrenta dúvidas ao longo do caminho. A confusão se torna evidente em trechos sobre solidão e insegurança, como os versos melancólicos na transição entre “People’s Parties” e “Same Situation”:

“Sinto como se estivesse dormindo... Pode me acordar?
Você parece ter uma sensibilidade mais expansiva
Eu só estou vivendo de nervos e sentimentos / Com uma mente fraca e preguiçosa
E vindo para as festas do pessoal / Atrapalhada, surda, muda e cega
Eu queria ter mais senso de humor / Mantendo a tristeza afastada
Jogando leveza nessas coisas / Rindo de tudo
[...]
De novo e de novo a mesma situação / Por tantos anos…
Amarrada a um telefone que toca / Em uma sala cheia de espelhos
Uma garota bonita no banheiro / Verificando o próprio sex appeal
Perguntei a mim mesma quando você disse que me amava:
Acha que isso pode ser verdade?”

O álbum ainda pode ser lido como conceitual pelo fato de suas músicas apresentarem coerência ao serem ouvidas em conjunto, enquadradas dentro de uma ideia predominante, refletindo a tendência que se tornava cada vez mais popular de unificar discos em torno de um mesmo tema. 

A natureza cíclica do álbum 

Para Lloyd Whitesell, que desenvolveu um dos maiores estudos sobre a compositora, ao menos seis álbuns da sua discografia – Song to a Seagull (1968), Blue (1971), The Hissing of Summer Lawns (1975), Hejira (1976), Don Juan's Reckless Daughter (1977) e Mingus (1979) – podem ser considerados conceituais, porque estabelecem coerência através de enquadramentos e conexões textuais entre as músicas. A pesquisadora Susan Neimoyer contribui com o estudo defendendo que Court and Spark seja incluído na lista, mas considera que, neste caso, são os elementos musicais que formam o seu núcleo conceitual. A música, em vez de servir como mero veículo para a poesia, seria o resultado de um esquema composto cuidadosamente no qual as letras são apenas um dos elementos em atividade.

Desse modo, a ordem das músicas contidas em Court and Spark pode ser interpretada como uma história que segue o arco de um relacionamento romântico, do início ao fim, incluindo seus efeitos sobre a protagonista. Começando por “Court and Spark” e “Help me”, a primeira traduz a perspectiva externa do primeiro encontro entre dois amantes, e a segunda, a perspectiva interna de se apaixonar e ser tomada por um sentimento que beira a insanidade. A seguir, uma série de canções descreve as diferentes fases do relacionamento até o final, quando se atinge o ápice de uma crise psicológica em “Trouble Child”, que adota a perspectiva interna da personagem. A aventura termina com uma perspectiva externa através do cover de “Twisted”, escrita por Annie Ross, que encara com bom humor a situação vista pelos outros como loucura. 

Assim completa-se um ciclo que, para Neimoyer, lembra ciclos de canções alemãs do século XIX, como Winterreise, de Franz Schubert, ou Dichterliebe, de Robert Schumann. Essa análise cíclica se apoia no fato de que a intenção de Mitchell sempre fora, sobretudo, criar “arte” em um sentido mais amplo, de modo que as partes que compõem seus álbuns – texto, música e capa – integram um todo maior. Inclusive a aquarela A Montanha Ama o Mar (The Mountain Loves The Sea), datada de 1971, é assinada pela compositora, que costuma se comparar a uma artista renascentista por se dedicar a tantas linguagens artísticas. 

‘The Mountain Loves The Sea’, que se tornou a capa do álbum Court and Spark, foi feita no meu sítio em Vancouver, num momento de inspiração repentina. É uma metáfora para a maneira com que as ondas se encontram com a montanha; a forma como elas se abraçam.”

The mountain loves the sea, por Joni Mitchell (1971)

Seja qual for a interpretação ao ouvir Court and Spark, a obra é um marco da evolução musical, poética e performativa de Joni Mitchell, que segue influenciando gerações de músicos. Em março de 1974, apenas dois meses após seu lançamento, o álbum levou Joni a conquistar o segundo lugar no ranking da Billboard com “Help Me”, e boas colocações com “Free Man in Paris” e “Raised on Robbery”. Quando a turnê do álbum chegou ao fim, Joni embarcou com Bob Dylan na turnê Rolling Thunder Revue, e depois lançou o disco ao vivo Miles of Aisles com a banda L.A. Express

Acessível e popular, Court and Spark cumpriu o objetivo de conquistar uma audiência maior e abriu caminhos para Joni Mitchell se tornar cada vez mais experimental, o que acabou por distanciá-la do grande público. Ou, talvez por preferir audiências menores a ser mal interpretada, um alcance tão amplo tenha a levado a recuar alguns passos, e o disco revele algo além de sua sensibilidade artística e coragem de se expor emocionalmente. Ao escolher a liberdade – um ideal que, às vezes, também pode soar como loucura –, ela manifesta um caráter de individualidade que é indissociável dos artistas verdadeiramente originais. 

Referências


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