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Clara Wieck-Schumann: uma vida de amor e arte


"Vissi d'arte, vissi d'amore." Vivi pela arte, vivi pelo amor. Em 1900, a personagem Tosca, da ópera homônima de Giacomo Puccini, cantou essas palavras pela primeira vez sobre o palco do Teatro Constanzi, em Roma. Porém é possível pensar que ela não foi a única a viver de acordo com essas palavras, e tampouco a primeira. Quatro anos antes, na primavera de 1896, em Frankfurt, Alemanha, Clara Schumann, então com 76 anos, estava em seu leito de morte. Com partituras para piano e flores enfeitando as laterais de sua cabeceira, podemos imaginá-la de olhos fechados, serena, ponderando sobre a vida que finda e, com um suspiro, antecipando em pensamento as palavras que Puccini colocaria nos lábios de Tosca. Vivi pelo amor, vivi pela arte. A impressão de que essa frase se adequa especialmente bem à vida de Clara pode não se mostrar de todo errada — e este artigo vai tentar sugerir o porquê. 

Vida: a jovem Clara Wieck 

Clara Wieck nasceu em 1819, na cidade alemã de Leipzig. Filha de pais afinados com o meio musical — Friedrich Wieck foi um bem-sucedido professor de música, enquanto Marienne Tromlitz era cantora —, Clara contou com o privilégio de uma educação excelente desde a primeira infância. Tanto investimento, somado ao talento e ao empenho por parte da menina, não poderia deixar de frutificar. Foi Wieck quem se mostrou especialmente inclinado a apoiar e construir uma carreira para Clara, uma vez notando a predisposição artística da filha. Friedrich não tardou a querer mostrar para o resto da Alemanha e — por que não? — para o resto da Europa quem sua Clara Wieck poderia se tornar.

Diante de uma série de tensões familiares que resultaram na separação dos pais biológicos, Clara mergulhou numa vida profissional de fazer inveja a muita gente grande. Em 1830, com incríveis 11 anos, realizou a apresentação solo; aos 12, com um repertório que combinava criações próprias e músicas de terceiros, Clara saiu em turnê nacional, visando, porém, um destino internacional — Paris, nada menos que a capital do século XIX, como a cidade já foi chamada certa vez. Essa primeira viagem, além de inaugurar a vida itinerante que a jovem pianista levaria nos anos seguintes, também permitiu que Clara colhesse elogios graciosos e entusiasmados pelo meio do caminho, alguns vindos dos grandes nomes de seu tempo, como Johann Wolfgang von Goethe

Goethe por Joseph Karl Stieler (1828)

Como uma verdadeira promessa musical, a jovem Clara caiu rápido nas graças do público, sendo suas plateias como espécies de pilhas de pólvora que pareciam aguardar pelas primeiras notas da jovem pianista para entrar em alegre combustão. Até hoje podemos desconfiar que mal superamos, enquanto público, o nosso fascínio diante das crianças-prodígio que, de tempos em tempos, se tornam notícia nas mídias sociais. Tivesse nascido em 2009, ao invés de 1819, Clara bem que poderia protagonizar dezenas de vídeos no YouTube, nos quais desse mostras do seu virtuosismo artístico — todos eles muito bem curtidos, comentados e compartilhados, naturalmente.

Assim, a vida profissional da jovem Wieck poderia ser sintetizada nos seguintes termos: disciplinada e dedicada, levando uma rotina itinerante pontilhada por turnês na companhia do pai ou de mulheres de confiança — pois a impertinência da mulher que viajava sozinha não poupava da opinião pública nem mesmo uma jovem estrela em ascensão —, prestigiada por anônimos e famosos, crescendo e amadurecendo, tanto em idade quanto em técnica musical. Foi dessa forma que Clara procurou inscrever o próprio nome no livro de ouro da música clássica, enquanto buscava também alguma independência financeira, social e sentimental. Sua trajetória estaria longe de ser desagradável se o destino não lhe reservasse outra coisa. A promessa de crescimento em ritmo exponencial se afigurava no horizonte próximo, bem ao alcance da mão — e então ela se apaixonou. 

Amor: Clara Wieck e Robert Schumann 

“Você sabe sobre o que eu sonhei? Eu sonhei que eu estava deitada em um esquife, usando vestido e guirlanda brancas. Você e Henriette estavam ajoelhados ao meu lado, sorrindo tristemente. Eu ouvia os sinos celestiais o tempo todo; eles soavam tão divinos e, ainda sim, tão terríveis ao mesmo tempo! Eu vestia um véu com estrelas prateadas e elas cintilavam como as estrelas do céu. Embora eu estivesse no céu, eu estava triste! Oh, Robert, antes disso, eu devo ter pensado mil vezes: ‘Ah, se você ao menos pudesse ver o seu Robert!’. Eu vi você, de fato, mas foi deitada no meu esquife que eu vi você! Vão embora, pensamentos sombrios! Não, meu Robert, nós veremos um ao outro novamente e será nesta vida ainda. Nós seremos felizes nesta vida! Você ainda tem tanta fé em mim, quanto eu tenho em você? Ah, minha fé se torna mais forte a cada minuto. Veja, você é tudo o que eu tenho, sei que você irá me apoiar! Eu amo meu pai de forma incomensurável; ele me ama também, mas ele não é quem meu coração deseja. Você será tudo para mim, até uma espécie de pai, não será, Robert?”

O jovem Robert Schumann tinha tantas ambições musicais quanto Clara. Saindo de sua cidadezinha de origem, Zwickau, em busca de orientação artística, Robert foi bem acolhido pelo círculo paterno da família Wieck. De temperamento oscilante, ele vivia entre o allegro e o adagio, a felicidade e a melancolia, mas em geral, foi como uma personagem bastante agradável que o rapaz marcou a família Wieck, deixando boas impressões no pai de Clara e, principalmente, em Clara, então com 10 anos quando conheceu o futuro compositor renomado. Schumann tinha nove anos a mais que ela.

Robert Schumann por Joseph Kriehuber (1839)

Enquanto Clara, na fase de juventude, costumava compor e performar, Robert somente compunha, devido a uma misteriosa paralisia nas mãos, faltando-lhe, portanto, uma intérprete que desse vida às obras que tinha em mente. Assim, foi com aparente naturalidade que Clara passou a levar não só o próprio nome, mas também o de Robert, carregando-os como pólen na ponta dos dedos. Por onde passava, a talentosa Wieck os espalhava pelos salões tão logo começava a tocar suas composições e as de Schumann; do mesmo modo, a resposta do público não tardava a ecoar — aplausos, aplausos e mais aplausos ribombando interminavelmente no ar.

Levou tempo até que a flor da amizade e da cumplicidade, uma vez plantada e cultivada por ambos, enfim desabrochasse em amor. Quando Clara tinha 16 anos e Robert, 25, foi com um primeiro beijo que ambos selaram uma união que lutaria para existir até que a morte os separasse. Porém bem antes que a morte sequer sonhasse em lançar seu olhar sobre os jovens amantes, houve um obstáculo muito mais imediato e terreno a ser vencido para que o amor de ambos vingasse: o pai de Clara.

Friedrich Wieck não estava disposto a se afastar da filha, mesmo que o motivo para tanto fosse a união de Clara com um de seus alunos mais talentosos. A fim de mantê-la distante do olhar do jovem apaixonado, ele preferiu arranjar concertos e viagens que mantivessem ambos separados pelo máximo de tempo possível. Na sua missão de construir e difundir a própria fama, Clara era por demais sensata para fechar os olhos diante das oportunidades que surgiam e se entregar cegamente ao amor que nutria por Robert. Foi assim que ela partiu para as viagens em turnê que apareceram no seu caminho; mas se o velho Friedrich achava que a distância e o tempo apagariam os sentimentos dos jovens músicos, a história provou que ele estava redondamente enganado.

Clara escreveu a Robert, em janeiro de 1839, comunicando a saída para uma nova turnê. Nesse documento e em outros, todos podendo ser encontrados na edição crítica da correspondência do casal Schumann (The complete correspondence of Clara and Robert Schumann), vemos como a compositora tenta consolar o jovem músico e a si mesma, confiando na força do próprio amor:

“O Céu não irá nos abandonar, tenho certeza disso. Mantenha o seu queixo erguido, Robert querido, e não fique triste, caso não escute nada sobre mim por um bom tempo. Você sabe que não esquecerei você por um minuto sequer. Você é o meu primeiro e o meu último pensamento de cada dia. Eu amo você de verdade, de um modo que nenhuma outra pessoa seria capaz de amar. Você deve acreditar nisso, por favor, ou eu não poderei ficar em paz. Você consegue imaginar quão terrível isso é para mim, sabendo que você está tão longe, melancólico e infeliz? Não fique. Seja alegre e feliz! Com certeza, tudo vai dar certo [...]. Confie em mim, assim como eu nunca irei parar de confiar em você, e amarei você mais do que tudo!”

Diante de uma intriga tão calorosa, acabou que a paixão dos dois foi dar com as caras no tribunal. O plano, aparentemente orquestrado por Robert, consistia em mover um processo judicial contra Friedrich. Clara ainda não era maior de idade na época em que eles planejaram se unir, e esperar pela bênção de Wieck estava fora de cogitação. A jovem compositora precisou presenciar e participar desse duelo judicial que envolvia o homem que ela amava e o homem que ela queria amar.

Em uma nova carta que escreve para o músico, Clara dá mostras da esperança que a move:

“Eu tenho muita fé de que tudo vai dar certo. Veja, meu pai irá consentir. Ele não tem o coração tão duro como parece. Vamos apenas manter a coragem e esperar, e não fique triste, meu querido amado. Sou sua, sua para sempre e eu não vacilaria, nem que tivesse de ser paciente, esperar por mais dez anos e lutar por outros dez anos. Porém, o Céu não nos fará lutar por muito mais tempo, tudo deve chegar ao fim — exceto o nosso amor! Você me entende?”

Outra forma de ver dramatizados os empecilhos que a união dos dois encontrou e teve que vencer para se concretizar é pensar no detalhe do sobrenome, assunto que aparece e reaparece na correspondência de ambos. Em carta para Clara, Robert fala como “esse é o meu medo; às vezes, eu penso que vou morrer sem que você tenha o meu nome… mas chega, vamos esquecer esses pensamentos tristes”, ao que, certo dia, Clara se despede em uma outra carta com “mil beijos da sua noiva fiel, Clara Schumann. Ah, que nome maravilhosamente doce!”.

Clara Wieck-Schumann por Johann H. Schramm (1840)

Por fim, Clara estava certa ao vaticinar que tudo acabaria em breve, e a batalha envolvendo o amor dos jovens prodígios da música foi vencida. Finalmente, pouco antes do casamento, foi com entusiasmo que Robert escreveu à futura esposa sobre a adoção que ela faria de seu sobrenome — “Pela primeira vez, minha garota, você irá juntar o seu nome ao meu; e isso é dolorosamente maravilhoso!”. Nascia, assim, Clara Wieck-Schumann ou somente Clara Schumann, como é mais conhecida hoje.

Mas a chegada do novo sobrenome trouxe também novos papéis sociais a serem desempenhados, papéis tipicamente femininos no imaginário da época e que caíam agora no colo da musicista. Suas atividades passaram a incluir a administração da casa e o cuidado com os filhos, que chegavam sem parar — Clara e Robert tiveram oito filhos no total. Os sucessivos períodos de gravidez pareciam conspirar para deixá-la longe dos palcos, e logo tornou-se evidente como, ao trocar de sobrenome e se mudar para a cidadezinha de Schoenefeld, Clara estava como que cindida em duas: a pianista e compositora Wieck em oposição à mãe e esposa Schumann. A cada dia, parecia que a jovem Clara Wieck se afastava mais desta nova Clara Schumann, ameaçando virar um borrão, uma sombra indistinguível ou um fantasma translúcido e informe, tão remoto que sua veracidade poderia começar a ser questionada. Clara teria compreendido tudo isso, mas não sem uma boa dose de desgosto.

Foi o público quem não permitiu que a talentosa Clara Wieck, pianista e compositora, escapasse por entre os dedos com tanta facilidade; na verdade, o público continuou a acolhê-la muito bem assim que Clara voltou aos palcos. Porém algo havia mudado, inevitavelmente — Clara já não era criança e não compunha como antes. Virginia Woolf, em Um teto todo seu, lança luz sobre a demanda feminina por um espaço próprio e pelas condições materiais suficientes que favoreçam o desenvolvimento artístico. Clara já partilhava o teto com diversas cabeças que não a dela própria, e sequer “um piano só para si” ela possuía, como recorda Eliana Monteiro em sua dissertação "Clara Schumann: compositora x mulher de compositor". Como compor, como pensar em tocar? Vivendo tal ordem de tensionamento, Clara foi se tornando muito mais uma intérprete do que uma compositora de peças originais, atividade criativa que desempenhava tão bem na aurora da sua juventude.

Assim como, apesar de ainda apaixonada, algo de Clara-Wieck-musicista sofreu alterações com o casamento, também o próprio amor entre o casal Schumann não tardou em adquirir mais cores e camadas onde antes havia a simples afeição e admiração mútua. Nos seus concertos de maturidade, Clara fazia inevitavelmente mais sucesso que Robert, ainda que ela carregasse o seu sobrenome, ainda que as peças dele figurassem no programa, ainda que Robert estivesse ali, bem ao seu lado, partilhando o palco com ela na condição de regente. Todos os elogios eram concentrados em Clara, e o fato de que Schumann continuasse a priorizar o próprio desenvolvimento artístico, negligenciando, por sua vez, o dela, foi um ruído alto demais para se permitir ignorar.

A essa tensão somou-se outra: a saúde mental e física de Robert começou a definhar muito cedo. Ao que antes eram oscilações profundas e abruptas de humor, somaram-se outros fatores psicológicos e psiquiátricos que exigiram mais mudanças da parte de Clara, mas não da forma a que ela estava acostumada. Se antes havia turnês na companhia de um bom piano e de uma boa plateia, Clara passara a se instalar em cidades selecionadas a dedo, todas com supostas qualidades terapêuticas que favorecessem a saúde do marido.

Seria uma pena se tais excursões tratassem apenas de postergar o inevitável, ao invés de promover qualquer ordem de regeneração. Após tentar afogar-se de propósito, sem sucesso, Robert foi internado para tratamento psiquiátrico, e isso promoveu um novo distanciamento físico entre o casal Schumann. Ambos sofreram a dor da separação e o dilaceramento imposto à família como um todo; ainda pouco antes da morte do marido, Clara teve a oportunidade de reencontrá-lo no seu local de internação. Porém quando o fatídico dia chegou, a jovem Schumann estava novamente longe, uma vez que, ao lado do também músico Johannes Brahms, tinha ido até a estação de trem recepcionar um amigo recém-chegado — quando o deixou, aquele era Robert; quando voltou, era um corpo vazio.

“[...] sabemos nós que o pranto é vão,
Que a morte, à nossa dor, não dá atenção.
Isso fará esquecer-nos de prantear?
Ou que choremos menos fará então?”

Johannes Brahms (1833-1897)

O romântico inglês Lord Byron era um dos autores que Schumann mais admirava. Os versos do poema Oh! Snatched away in beauty’s bloom, tal como traduzidos por Péricles Eugênio da Silva Ramos no trecho citado (Oh, na flor da juventude arrebatada), podem vir a captar algo do impacto da morte de Robert sobre o coração de Clara, um golpe doloroso no meio dos tantos outros que já sofrera quando da morte do marido, e dos que continuaria a sofrer depois disso. Alguns dentre os oito filhos sobreviveram à mãe, mas muitos morreram antes, alvejando o coração da pianista — um dos casos marcantes, sem dúvida, foi a experiência de um aborto, sofrido por Clara ainda antes da morte de Robert, acontecimento que abalou a toda a família e, principalmente, Clara.

Porém é preciso sobreviver apesar de toda a dor, e uma das maneiras que Clara, nossa heroína do amor e da arte, encontrou para continuar vivendo foi, justamente, continuar amando. Hoje, muito comenta-se da sua relação, aparentemente platônica, com Brahms, mas marcada pela amizade e pela admiração sincera que perduraram por toda a vida de ambos, além de deixar quilos em testemunhos escritos.

Na vida profissional, Clara lecionou como forma de manter a si e aos filhos, além de continuar performando. Poucas são as composições originais criadas pela pianista após a morte de Robert, considerando um intervalo relativamente extenso de tempo.

Por fim, foi no dia 20 de maio de 1896 que Clara Wieck-Schumann abandonou o palco da vida; mas não o fez sem aplausos, que continuam estourando e ecoando para além das barreiras do tempo, até muito depois das cortinas terem caído.

Arte

Diante de uma biografia tão potente, o cinema soube dar os seus dois centavos sobre a vida de Clara, tecendo ficções que procurassem dar novas cores à vida da pianista e do casal Schumann em conjunto. Entre os títulos que mais se sobressaem está Sonata de Amor (Song of Love), de 1947, com ninguém menos que Katharine Hepburn como Clara Schumann e Robert Henreid como Robert Schumann. Reprisam esses mesmos papéis Nastassja Kinski e Herbert Groenemeyer na ficção alemã Sinfonia da Primavera (Fruehlingssinfonie), de 1983. Por fim, temos ainda Martina Gedeck e Pascal Greggory como Clara e Robert no também alemão Amada Clara (Geliebte Clara), de 2008.

Sonata de Amor (1947)

Uma das sortes de Wieck, no entanto, é que o atual interesse pela sua figura não se resume apenas à sua biografia pessoal ou aos vínculos que nutriu com Robert Schumann. Hoje, cada vez mais, a obra da compositora vem sendo pesquisada, tanto no exterior quanto no Brasil, como demonstram os trabalhos de Clarissa da Costa Cabral e de Eliana Monteiro da Silva, mulheres que vêm resgatando a obra de outra mulher e mantendo seu nome vivo por meio da discussão científica e séria de sua produção musical.

A arte de Clara estaria em consonância com uma estética romântica de composição, e algumas obras da musicista são especialmente admiradas hoje em dia. É o caso do maravilhoso Piano Concerto (op. 7), composição da autoria de Clara, iniciada aos 13 anos e performada pela primeira vez aos 16. Foi o único concerto para piano que Clara compôs e é possível entrever já aí, na composição da juventude, a beleza, o rigor e o fôlego que haveriam de acompanhá-la por toda a vida. Já nas Soirées Musicales (op. 6), Clara apresenta ainda uma variedade de danças, tais como costumam ser chamadas em música as categorias da polonesa e da mazurca, por exemplo, que compõem o conjunto da obra. 

Por fim, as Variações sobre um tema de Robert Schumann (op. 20) deixariam ver, de maneira bastante direta, o intercâmbio intelectual e artístico entre o casal Schumann. Do mesmo jeito que Clara era referenciada na produção de Robert, este também figurava nas composições da esposa, de forma implícita ou explícita. No caso das variações, o tema — um trechinho de melodia retirado de uma obra de Robert — é reconfigurado por Clara, que cria novas peças a partir da estrutura pré-dada. Ao longo da música, o ouvinte continua a escutar e a identificar o tema inicial, mas esse reconhecimento vai se tornando mais vago sempre que o tema é apresentado e reapresentado, uma vez e outra, um tanto ao sabor da imaginação de quem o maneja. A graça está em, ao final da música, ter transformado o tema inicial em algo quase irreconhecível.

Em termos de recepção e popularidade, quem comparasse os mais de dois milhões de ouvintes de Robert Schumann no Spotify com os quinhentos mil ouvintes de Clara imaginaria que o nome dele teria impulsionado o dela, quando, em vida, a situação se mostrou precisamente a contrária. Ao fim, como foi possível ressaltar, Clara é quem teria divulgado e construído, em grande parte, a fama do marido. Eliana Monteiro, ainda em sua dissertação, escreve como Clara, “com sua longa experiência, escolhia o momento certo para introduzir cada nova composição do marido, algumas das quais esperaram alguns anos até que a pianista julgasse que o público estava preparado para elas. Divulgar a música de Robert era para ela mais do que uma missão: era seu direito legítimo”.

Diante disso, do empenho da compositora em impulsionar o nome e a fama de quem ela amava, lembrar Clara e fazê-la reviver por sua própria música se torna uma questão da maior urgência. Na ocasião de seu recente bicentenário, comemorado em 2019 — ainda que de forma muito discreta e, com certeza, sem a ressonância de uma grande efeméride, diga-se de passagem —, eventos foram promovidos e artigos foram escritos sobre essa personagem da história da música clássica. No entanto, é possível considerar fazer um gesto ainda mais significativo, capaz de dizer mais do que qualquer homenagem e evento acadêmico importante, nota de rodapé jornalística ou artigo — trata-se de ouvir as composições de Clara Wieck-Schumann e deixar que as melodias contem a história da sua vida, marcada pela beleza e pelo amor que, de igual forma, perfazem toda a sua arte.


Michele Soares
Ensaísta ma non troppo — está mais para a expressão coup d'essai, em contínua tentativa. No momento, está tentando se graduar em Letras Clássicas, enquanto escreve poemas de sabor duvidoso, além de artigos sobre literatura e música; também está tentando viver sem fones de ouvido 24/7 e comprar menos livros para ler os que já tem. Mais de três vezes por dia, precisa lembrar a si própria e aos outros de que Salieri não matou Mozart, fora o projeto permanente de tentar falar com seriedade ao menos uma vez na vida — nisso, como se vê, está sempre falhando.

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