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Maria Antonieta: o retrato incomum de uma época


No dia 2 de novembro de 1755, nascia mais uma promessa para a linhagem dos Habsburgo, Maria Antonieta, filha de Maria Teresa, austríaca e que já aos onze anos despontava como possível futura esposa do delfim da França, que se tornaria Luís XVI. Por três anos, a criança real foi monitorada, mas Antonieta não era uma criança especial, era preguiçosa para as atividades cultas, facilmente abria mão dos livros e principalmente da educação, dessa forma a futura rainha da França mal sabia escrever o próprio nome. Desde a infância já despontava ao caminho dos prazeres.

Fatores como a falta de habilidade ao piano e toda a preguiça mental da criança não representavam um perigo imediato para os planos dos Habsburgo. Em Versalhes a beleza de Maria Antonieta seria o suficiente; deveria ser bela e tornar-se um símbolo. Sua preguiça diante daquilo que não a entretinha só se tornaria um problema quando já fosse tarde demais.

Com toda a pompa e luxo, a criança de catorze anos é enviada para a nova vida na França. Sai do seio familiar, fica sem a mãe, irmãos e sem sua própria língua; Maria Antonieta é provisoriamente uma expatriada para o bem maior. A infância ordinária compreendeu o casamento real. Ainda aos catorze, ela casa-se com outra criança, e juntos são conduzidos pelo rei, Luís XV, à alcova onde as crianças reais deveriam então produzir herdeiros tão crianças quanto elas mesmas. Entretanto nada acontece naquela noite e nem nos cinco anos seguintes: Luís XVI é vítima de uma doença, a fimose, e não consegue decidir-se sobre os procedimentos cirúrgicos.

Justamente nesse meio tempo de indecisão real, a fama que o acompanharia até a guilhotina começa a espalhar-se pela França. O rei impotente é ridicularizado pelo seu povo. O defeito da timidez é fatal a um rei; ele não sabia apresentar-se em público e muito menos tomar decisões. Dessa forma, desde a infância, o peso de um reino e principalmente a culpa caiu sob o colo da então Delfina, Maria Antonieta, até mesmo a impotência do próprio marido.

A jovem Maria Antonieta

Vive le Roi!


Em 1774, O rei da França Luís XV é acometido por uma doença, e sob os gritos de “O rei morreu, viva o rei” um novo Luís ascende ao trono. Maria Antonieta é a nova e última rainha da França. O problema de Luís XVI continua, sua fraqueza e impotência é sempre reconhecida como piada para o povo, e assim o que deveria ser o momento de exaltação do novo rei torna-se o desabrochar da rainha.

“Nem o mais áulico de todos os bardos da corte jamais ousaria exaltar um homem assim bonachão e pouco viril como grande imperador. Ao contrário, todos os artistas competiam para endeusar a rainha.”

(Stefan Zweig)

Diante da incapacidade governamental de Luís XVI, a imagem de adoração do povo tornou-se a rainha; ela estava no mármore, nas pinturas e no ouro. O retrato de uma rainha que era apenas uma mulher comum. Assim, é imposto a ela o papel de símbolo de sua época. A rainha da França percebe que agora ela pode ter tudo e não deseja nada que a perturbe, ela quer o prazer das jogatinas no palácio, das joias e dos penteados, e esquece cada vez mais da política do reino.

Maria Antonieta era acusada de preguiça mental, mas o que exigir de uma jovem cuja infância roubada aos catorze anos levou-a diretamente ao trâmite do casamento real? Chamar de preguiça mental parece soar pesado demais para a jovem que aos vinte carregava o peso de um reino. Parece mais do que justo dispensar os livros e usufruir do prazer que a ela era oferecido, dessa forma ela vivia “apenas para os sentidos, não para a sensatez”

Coberta por uma sede de prazeres, a sua leviandade junto ao parvo marido, o rei, levou-os ao ápice da mediocridade aristocrática, o que não refletiu positivamente sobre o povo. Tudo isso era um sintoma que estava prestes a denunciar a doença francesa; Maria Antonieta não se importava, com sua preguiça aos assuntos sérios nunca formulou as perguntas certas, e assim, nunca olhou para além do palácio de Versalhes.

Ela vivia em uma redoma, a redoma da corte. Seus costumes eram exagerados e particularmente caros; não são só seus, mas de toda estirpe que a circulava. Preferia o prazer à política, ser a rainha da moda a ser a rainha de seu país. Dessa forma contraía dívidas, pois não resistia às joias, aos vestidos e aos penteados de 90cm. Como forma de dar fim ao problema de dinheiro, começou a jogar. A diversão inocente no palácio passou a tornar-se clandestina, o rei não podia ver e qualquer um que tivesse dinheiro poderia entrar. Todos se aproveitavam da ingenuidade da rainha e trapaceavam, arrancando dela o dinheiro e a diversão. Dentro da corte de Maria Antonieta, ela era o mundo, e com todas as mordomias nunca explorou ser ela mesma. Vivia dos prazeres efêmeros e abominava aqueles que interrompiam sua diversão.


Em boa parte da história francesa os Luíses mudaram de geração e consequentemente de números sendo I, II, XVI, mas o que permaneceu no curso da história e nos holofotes foram as damas reais; Madame de Pompadour, DU Barry e finalmente Maria Antonieta. Um império que seguia o grande Deus do patriarcalismo dependia somente das vontades da rainha e das consortes.

Com o passar do tempo o círculo da rainha foi tornando-se cada vez mais restrito. Ela só inclua em seu pequeno Trianon quem a satisfizesse e a interessasse, e assim a queda do reinado de Antonieta só foi possível por conta do seu abandono às grandes casas reais da França; por realizar apenas seus íntimos desejos negligenciou as antigas grandes casas, e dessa forma, ao abandonar a pompa e a guerra de etiqueta, Versalhes também foi abandonada pela corte. Assim, em uma espécie de oficina de calúnias organizada pelos detentores dos bons costumes franceses, a austríaca começa a ter suas loucuras apontadas e logo é difamada por toda a França.

Dos jogos de poder


A apatia e inércia do rei diante de seus deveres levam a rainha ao papel de soberana de um país. A burguesia olhava para ela e esperava atitudes de soberana - mesmo que na época mulheres não assumissem papéis políticos. Maria Antonieta nunca aceitou o papel imposto, pois nunca o percebeu. Os seus palpites eram unicamente para nomear as famílias que com interesse a rodeavam para receber um bom ducado. Foi assim que a austríaca viveu em seu mundo: o palácio Trianon com seu séquito formado por 20 damas e cavalheiros, e ignorou os 20 milhões de miseráveis e a revolução que batia à porta de Versalhes.

O zumbido de uma revolução iniciou-se nos corredores reais pelas mãos aristocráticas. Nas pequenas oficinas de difamação, os excluídos da corte por Maria Antonieta confabulavam seu fim. Através de panfletos e folhetins - cuja autoria é desconhecida - aos gritos de puta, adúltera, sáfica e ninfomaníaca. Os sussurros dos sangue azul chegam ao povo.

Maria Antonieta nunca levou a preocupação revolucionária a sério. Para ela, estar acima do povo era natural, e o som de qualquer tumulto e líder que ousasse remexer as estruturas monárquicas, para ela, estava apenas causando o caos e indo contra a regra natural da existência e das leis divinas. Dessa forma, “Maria Antonieta foi injusta com a revolução, a revolução tornou-se durante injusta com ela”.

É interessante pensar no arquétipo de Luís XVI, homem fraco aos olhos do povo, que nunca segurou as rédeas do seu governo. Este era facilmente posto em segundo plano na revolução. Toda a culpa da fome, das injustiças e dos enclausuramentos na Bastilha não eram culpa do rei, homem do povo, mas sim de sua esposa, a estrangeira austríaca promíscua que envenenava e retirava do rei o pouco que tinha de poder de decisão. Mas é claro como o dia que, assim como Maria Antonieta, Luís XVI não se importava; durante a queda da Bastilha não queria ser acordado do seu sono real e o seu único arrependimento foi não ter abatido nenhum cervo durante sua caçada diária. Mas se ambos são igualmente apáticos quanto a situação revolucionária francesa, por que só a rainha promíscua era culpada?

Luís XVI

Do palácio que antes sediava peças teatrais, burburinhos de carteados na madrugada e grandes festas com grandes amizades, só restava o silêncio sepulcral dos amigos que fogem na calada da noite para abandonar a rainha odiada e se livrar do linchamento do povo. Maria Antonieta tornou-se mãe e abriu mão dos prazeres tarde demais, mas ela via em seus filhos seu passe para a liberdade. Após cumprir a pena que devia ao Estado da França desde os catorze anos - casar e garantir a dinastia - vê-se livre enfim.

O fim de Versalhes


No dia 5 de outubro de 1789, a revolução chega a Versalhes com os gritos e aventais femininos, uma massa de mulheres vem como linha de frente de Paris a Versalhes. A revolução, consequência do medo e da inércia de Luís XVI, foi jogada sobre os ombros de uma mulher, Maria Antonieta, e a vanguarda das fileiras eram as mulheres proletárias filhas de uma França faminta. Empunhando suas facas de cozinha, as 7 mil mulheres deram início a revolução francesa, que pode ser vista como a primeira manifestação política feminina. Sobre o trono feminino se iniciou e sob as mãos femininas foi executada.

A marcha sobre Versalhes levou toda a família real, sem pompa e orgulho, a Paris aos gritos de “estávamos levando o padeiro, a padeira e os pequenos ajudantes de volta. Agora a fome acabou”. Um rei apático e uma rainha com ódio, irredutível naquele cabriolé, de certo Maria Antonieta relembrou dos momentos de prazer que aquele mesmo cabriolé a proporcionou nas suas fugas para os bailes e óperas em Paris. Entretanto o caminho do prazer de antes tornou-se um corredor da morte.

Nos jogos de poder que sucederam a chegada da família real a Paris, quem protagonizava os trâmites políticos e compras de opinião era a rainha. A mesma que antes renegava tudo que lhe perturbava o prazer. As trocas de cartas não interessavam ao rei afinal, mas sim a Maria Antonieta. “O rei dispõe apenas de um homem, e este é sua mulher.” 

Enclausurados e sem liberdade em Paris, o rei, a rainha e sua comitiva vivem em uma espécie de amistosidade falsa, uma paz encenada. Todos os passos eram vigiados e a mínima vontade de fazer uma pequena viagem era aniquilada pela multidão ao lado de fora do palácio das Tulherias. Como último recurso, entre a cruz e a espada o rei decide fugir, e o que era para ser uma fuga na noite tornou-se uma viagem pomposa. As cabeças rolaram pelo simples excesso de pompa. Para a família real não servia apenas uma carroça, mas era necessário um cabriolé luxuoso com criadas e roupas para a chegada ao destino, junto disso era necessário mordomos e vinhos para servir ao rei. Assim, o que era para ser sigiloso e despercebido transformou-se em uma comitiva de 16 pessoas e muitos cavalos.

Em meio aos excessos da fuga, a família real chega a uma pequena cidade esquecida da França sob os disfarces de governanta e lacaio. Entretanto pelos seus luxos e atrasos da viagem, a farsa começa a desmoronar. O rei e a rainha abrigam-se na casa de um vendeiro da cidade a fim de esperar o exército alemão que viria salvá-los, e é assim que “Maria Antonieta, de trinta e seis anos de idade e dezessete como rainha, põe pela primeira vez os pés mancada de um cidadão francês”.

Infelizmente, a assembleia nacional e a revolução do povo chegam antes da proteção real. Assim, de cabeça baixa inicia-se o cortejo fúnebre de volta a Paris. O rei e a rainha fugitivos retornam ao cativeiro. A partir desse dia a monarquia caiu, na França não existe mais rei ou rainha.

A rainha do rococó, que até então abominava o tédio da política, torna-se a figura central da trama e vê-se obrigada pelo desespero a tentar fazer política, uma política confusa e sem propósito, apenas na esperança de continuar viva e com a dignidade que há tempo lhe fora roubada. Maria vê-se abandonada pelo próprio irmão e por todos, suas cartas pedindo ajuda são confusas, não sabe se quer conflito armado ou a paz, e assim, Luís XVI, o rei, é apagado do cenário da revolução e apenas Maria Antonieta fica nos holofotes sendo acusada de falsa. A rainha foi abandonada por toda a França.


Em meio às tensões que Luís XVI achava ter resolvido, inicia-se uma força da assembleia para pôr em prática a guerra contra a Áustria, terra da rainha, sendo essa a melhor forma encontrada pelos republicanos para derrubar o problema interno, O rei e a Rainha. Maria Antonieta sabia que a guerra só adiantaria a sua sentença final e fez talvez o pior a ser feito. Apoiou mesmo que secretamente a vitória do estrangeiro, jaz aí a rainha austríaca. Mesmo sem provas em Paris a máquina de moer que era a assembleia nacional proclama publicamente que a rainha tramava contra o rei e consequentemente contra a França.

 “Desta tribuna de onde vos falo pôde-se avistar o palácio, onde conselheiros degenerados corrompem e iludem o rei, que nunca nos deu a constituição; onde forjam as correntes nas quais nos querem prender e tecem as artimanhas que devem nos submeter à casa da Áustria.”

Dessa forma, a cabeça de Maria Antonieta já estava sendo lançada à ponta da lâmina. O poder do povo deve vencer. É assim que sob a canção “A marselhesa” e sob os gritos de “Allons, enfants de la patrie” (Avante, filhos da pátria) que os republicanos revolucionários, vindos de Marselha, marcharam pela capital prontos com a última cartada para pôr fim à monarquia.

É interessante pensar sobre o papel desempenhado por Maria Antonieta. Mesmo no corredor da morte, tendo seu palácio atacado, fugindo às pressas e usando roupas emprestadas de criadas, ela manteve a compostura durante as dezoito horas presa dentro da assembleia nacional, e até quando foi levada ao templo, ou melhor, da sua prisão até a guilhotina. Diante de toda a França ela foi o escudo de ferro de Luís XVI, o parvo rei que não conseguia dar ordens ao seu exército de proteção. A rainha não derramou uma lágrima diante da queda da Coroa, sentia apenas vergonha do rei que ao seu lado tirava sonecas e fazia banquetes perante a prisão.

Maria Antonieta é um símbolo, um símbolo produzido pela revolução, não é a heroína ou a vilã, mas como coloca Stefan Zweig: 

“Não foi a grande santa da realeza, tampouco a protótipo, a grue (mulher leviana) da revolução, e sim um caráter medíocre, na verdade uma mulher comum, não particularmente esperta, não especificamente insensata, nem fogo nem gelo, sem especial inclinação para a bondade e sem nenhum apego ao mal, a mulher mediana de ontem, hoje e amanhã, sem pendor ao demoníaco, sem ânsia pelo heroico e, talvez por isso, tema pouco adequado a uma tragédia.”

Maria Antonieta foi simples e puramente uma criança colocada em um trono, nascida no seio da monarquia sem nunca ter entendido que além do poder do monarca escolhido por Deus, existia um povo que pedia pão e que no futuro iria, com a guilhotina, decretar o fim de sua dinastia. Foi a vítima de um tempo, de um rei e da história.

A queda da monarquia não satisfez o espírito da revolução, esta precisava ter seu alicerce no sangue da família real, o exílio e a prisão não bastavam. É dessa forma que o rei é levado ao cadafalso e posto diante da guilhotina; um dia antes pôde encontrar-se com a rainha e seus filhos para a despedida, e a mesma inércia de todas as suas vidas os acompanharam até a morte, mas dessa vez o ato, tão julgado durante todos os seus dias, foi reconhecido como coragem. Foi assim que a primeira cabeça real rolou.

Aos 38 anos, Maria Antonieta desapareceu de si mesma. A mulher dos prazeres, jogos e beleza não existia mais. Após enviarem para a guilhotina o rei, Luís XVI, também promoveram a separação de uma mãe e de um filho, a rainha do Delfim. Maria Antonieta perde tudo: seu reino, sua beleza, seu marido, seu filho e sua honra. A rainha sabe que vai morrer, a monarquia caiu, seu nome e ancestralidade não são nada, e enfim nada mais importa. Nada mais pode machucar Maria Antonieta, a última rainha da França.


Da mesma forma que foi expulsa de Versalhes, Maria Antonieta enfrentou seu julgamento. Ereta, firme e sem medo. No meio de tantas cabeças condenadas à guilhotina, ela já sabia que seu último ato seria morrer, morrer bem, e como ela aguardava por isso, uma mulher de 38 anos que foi transformada em uma senhora cheia de pesares e dores. A morte não parecia tão difícil assim diante de tanto sofrimento. O orgulho da última rainha foi a memória mais vindoura que restou. Aqueles que a condenaram foram, no futuro, condenados também, mas nem de longe equiparavam-se à coragem da rainha diante da guilhotina. Estas são então as palavras que Jacques Hébert, um dos condenadores da rainha, recebe: “Quando se trata de agir, você tagarelava sem parar. Agora aprenda pelo menos a morrer”.

Conhecida pela vida barulhenta e cheia de falatório aos olhos do público, a praça pública que a aguardava com a guilhotina e com o povo silenciou-se. Nem um só grito de escárnio poderia ser ouvido. Tudo aconteceu rápido, e só após o carrasco segurar a cabeça loira e austríaca para a multidão foi que os gritos de "salve a república!" puderam ser ouvidos. Maria Antonieta foi, antes de tudo, humana. Uma mulher comum colocada em um papel de endeusamento. Fatídico foi o dia em que o casamento de uma criança aconteceu, fatídico foi o dia em que ela adentrou a alcova real.


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Comentários

  1. Estou louca por essa biografia e teu texto me deu ainda mais vontade de ler. Perfeita tuas colocações!

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  2. Nossa, adorei o texto e agora quero ler o livro! 💜

    Acho que o filme Maria Antonieta (2006) foi perfeito em mostrar essa criança real que se sentia entediada e distante do reino estrangeiro para onde foi enviada. Ela se ocupou com o que tinha à sua disposição e foi odiada por isso. Inclusive basta ver como a maioria dos críticos homens reagem ao filme, que consideraram ser de "mulherzinha".

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