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A máfia no cinema: a violência, os homens e as mulheres


É extremamente previsível, principalmente na comunidade cinéfila, um homem dizer que seu filme favorito é O Poderoso Chefão (1972), Os Bons Companheiros (1990) ou até mesmo outros clássicos como Pulp Fiction (1994) e Scarface (1983). Essas obras são quase sempre citadas na lista de melhores filmes de todos os tempos.

Mas é considerado comum uma mulher dizer que Era Uma Vez Na América (1984) é seu filme favorito da vida? Filme esse que contém mulheres sendo sexualizadas, violentadas e resumidas a par romântico do homem criminoso? Esse tipo de representação com as personagens femininas não é vista apenas no filme dirigido por Sergio Leone, mas sim em quase todos do gênero.

Quando se trata da máfia no cinema, há muitas chances de nos deparamos com uma imagem mental de Robert DeNiro, Al Pacino e outros grandes astros interpretando latinos, estadunidenses ou descendentes de italianos querendo ter o respeito e o próprio legado no crime. Todos os protagonistas são homens e todos são violentos. Principalmente com seus rivais, geralmente sendo concorrentes de seus negócios ilegais (afinal, é a máfia, então é claro que a violência e o crime são fatores comuns, até mesmo necessários) e também, obviamente, com as mulheres, que costumam ser as esposas ou amantes desses protagonistas.

As mulheres, a beleza e os abusos


Elvira Hancock (Michelle Pfeiffer) é uma personagem do filme Scarface, dirigido por Brian de Palma. Ela é conhecida principalmente por usar um vestido azul com um corte profundo no meio, destacando parte dos seios da protagonista. Isso acabou se tornando uma de suas marcas registradas.

Apesar de ter uma personalidade forte e um grande potencial para ser uma mulher rica em desenvolvimento, no filme Elvira é apenas a namorada de Frank Lopez (Robert Loggia), que mais tarde se torna a esposa de Tony Montana (Al Pacino). Além de ser também um tipo de sex symbol do filme. Algumas mulheres nos filmes da máfia, às vezes fora desse gênero também, não passam disso. São somente um sex symbol.


A menos que a mulher seja do tipo bela, pura e angelical. Um exemplo perfeito disso é a Deborah Gelly (Elizabeth McGovern) em Era Uma Vez Na América. A personagem também sofre abuso sexual do protagonista, David (Robert DeNiro). Ela é estuprada no carro e o ato está presente em uma cena desnecessariamente explícita e longa. Isso sem contar a primeira cena de estupro em um assalto ao banco.

Nesse mesmo filme, há muitas mulheres que só estão ali para se prostituir ou levar tapas em seus rostos. Absolutamente nenhuma tem uma história que foge muito disso, apesar de Deborah ter um destaque maior por ser o interesse romântico de David desde a infância.


Quando as personagens não são sexualizadas ou violentadas, elas são negligenciadas, simplesmente deixadas de lado pelos maridos. Esse tipo de representação acontece com Karen Hill (Lorraine Bracco), personagem de Os Bons Companheiros. Ela é a típica esposa e mãe que, apesar de estar ciente das diversas traições do marido, tenta manter a boa imagem de uma família tradicional e perfeita dentro e fora do lar.

A esposa em O Poderoso Chefão


De acordo com o crítico Fábio Rockenbach, a porta pode ser interpretada como uma metáfora muito presente na trilogia de Francis Ford Coppola. No primeiro filme, a porta que se fecha para Kay Adams (Diane Keaton), esposa de Michael Corleone (Al Pacino), demonstra que ela não tem lugar nos negócios da família, mesmo que antes disso Michael tenha prometido a ela que tal situação mudaria, pois diferentemente de outras personagens femininas presentes na trilogia, como Apollonia e Carmela, Kay nunca aceitou sua posição submissa.

No segundo filme, Michael novamente fecha a porta a ela, como uma espécie de expulsar a própria esposa do núcleo familiar.

Somente no terceiro e último filme que a situação muda por alguns instantes. Quem fecha a porta é Kay, deixando Michael sozinho em busca da sua própria redenção. Então ao final, sem ter nenhuma autoridade sobre a esposa, ao invés de fechar a porta, ele apenas se esconde, isolando Kay na Sicília.


“Isso nunca vai ter fim” é uma das frases ditas por ela. Kay, já com uma idade mais avançada e tendo adquirido muita experiência ao lado do marido e da família Corleone, toma consciência de que não tem lugar dentro dos negócios e nunca terá. Sua situação nunca terá fim.

Um outro detalhe interessante de analisar é o guarda-roupa da personagem durante a trilogia. No começo do primeiro filme, durante o casamento de Connie, Kay usa um vestido laranja acinturado, o que acaba a destacando entre as cores neutras e escuras dos demais convidados. Aliás, laranja e vermelho eram as cores preferidas da personagem.

O colorido das roupas de Kay vai sumindo a partir do momento que o envolvimento com os Corleone aumenta, principalmente quando ela se torna uma mulher casada.

A masculinidade dentro da mídia e do crime


Sempre pensamos que os nossos heróis têm a ver com morte e guerra [...] raramente é uma jornada sobre amor. É sobre feitos que tem a ver com conquistar, dominar. E vivendo como vivemos, em uma cultura de dominação... escolher amar é heroico.

A autora bell hooks aborda temas sobre homens, masculinidade e amor no seu livro The Will To Change e há dois capítulos da obra que podem se encaixar para complementar esta análise, principalmente se usarmos como foco o comportamento violento dos protagonistas.

Resumidamente, no capítulo quatro, "Stopping Male Violence", ela explica que o comportamento violento dos homens é considerado natural dentro da psicologia do patriarcado. O abuso emocional e físico se tornaram um comportamento aceito nas relações homem-mulher, seja entre marido e mulher, pai e filha, irmão e irmã ou namorada e namorado.

No capítulo oito, "Popular Culture: Media Masculinity", a autora explica como o cinema e a TV têm um papel muito importante na formação de um garoto. Ela deu o exemplo de um dos programas infantis mais populares da sua infância, que continha um subtexto sobre masculinidade, O Incrível Hulk. Era o programa favorito dos meninos das mais diversas classes sociais e raciais. O programa foi fundamental para ensinar a noção de que, para um homem, a força física (brutal e monstruosa) era uma resposta viável a todas as situações de crise.

hooks considera Bruce Banner um símbolo de homem patriarcal supremo, pois ele é um cientista por formação (a personificação máxima do homem racional) e quando sente raiva, se transforma em uma criatura de cor e comete atos violentos. Depois de cometer a violência, ele volta a ser o homem branco racional. Ele não tem memória de suas ações, e portanto, não pode assumir a responsabilidade por elas. Além de que, por ele ser incapaz de formar laços emocionais com amigos ou familiares, ele não pode amar.

Isso lembra alguns personagens além do Bruce, certo? Dentro dos filmes de crime não é diferente.

Os protagonistas desses filmes costumam ser traficantes, empresários corruptos, ou seja, homens de negócios em um geral, por mais ilegais que esses negócios sejam. Então são homens racionais que levam o trabalho muito a sério. Eles desejam ter poder e uma marca dentro do crime. Usam a violência para terem o que querem, isso dentro dos negócios e dentro de casa (buscando respeito, buscando ser o homem e chefe da casa, assim como no trabalho) com as mulheres e crianças.


A forma como o público adulto masculino adora e às vezes até mesmo defende e tenta se espelhar nesses personagens pode ser comparada com a situação das crianças querendo ser o Hulk.

O cinema mostra um homem criminoso, poderoso, rico e que pode fazer o que bem entender. Além de ter uma mulher sexy ao lado sempre que desejar. Por isso, hooks defende a criação de uma cultura popular que afirme e celebre a masculinidade sem defender o patriarcado.

Ela encerra o capítulo oito declarando que os meios de comunicação de massa, como o cinema, são um veículo poderoso para ensinar que isso é possível. Os homens e as mulheres devem criar uma cultura popular progressiva que ensinará aos homens como se conectar com os outros, como se comunicar, como amar.

Por mais que os protagonistas declarem que estão perdidamente apaixonados e amando as mulheres que são seus interesses românticos, por que eles também são agressivos com elas? E por que isso não é discutido? Por que isso é simplesmente ignorado e normalizado dentro da comunidade cinéfila?

O público feminino e masculino


Voltando ao questionamento do início: por mais não que seja impossível e muito menos incomum mulheres gostarem de filmes de gângsteres, é inevitável não afirmar que esses mesmos filmes são, na grande maioria das vezes, feitos por e para os homens. Os roteiristas e diretores pensam em maneiras de agradarem a si mesmos e ao público masculino.

Particularmente, acho difícil a possibilidade de ter passado na mente de algum diretor desses filmes as frases "Será que as mulheres vão gostar dessa cena de ação em plano-sequência?", “Esse ângulo destacando o decote da personagem ficou bom, a mulherada vai se sentir representada”, “É muito necessário essa cena de estupro explícito no filme, acho que as mulheres não vão se incomodar” ou outras semelhantes. Eles mal desenvolvem suas personagens femininas, às vezes elas simplesmente não existem, ou quando existem são apenas para usar vestidos curtos e serem violentadas. Que o dirá pensar nelas como seu público, pensar se elas vão gostar do que veem na tela.

Claro que há poucos casos a parte, principalmente no quesito de bom desenvolvimento das personagens. A trilogia O Poderoso Chefão, já citada anteriormente, é um exemplo disso. Mas se pensarmos e analisarmos em um parâmetro geral, o público feminino que gosta de filmes mafiosos é uma espécie de Kay Adams.

As mulheres simplesmente não têm lugar nesses filmes, pelo menos não nos negócios. Elas são representadas como mulheres sexys, esposas ingênuas, obedientes, negligenciadas, traídas e/ou abusadas quando o protagonista está bravo porque os negócios ilegais não vão muito bem.

Alguns homens podem afirmar que é apenas uma questão de mostrar "a realidade" dentro dessas histórias. Afinal, será que mulheres têm mesmo um lugar na máfia?

Se procuramos a resposta nas obras clássicas e mais famosas do gênero, a resposta será não.

Referências

Sharline Freire
Estudante e leitora voraz de fanfics, assiste filmes e séries mais do que deveria e escuta músicas dos anos 40. Parece fria e séria, mas já chorou escrevendo sobre Sherlock Holmes e John Watson na internet.

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