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4 motivos para assistir Kwaidan: As Quatro Faces do Medo


Em 1965, o mundo cinematográfico viu surgir um lançamento um tanto inusitado vindo de um diretor cujo nome já havia conquistado certa notoriedade. O diretor era Masaki Kobayashi (1916 - 1996), um japonês que ganhou seu espaço com épicos dramáticos de longas horas de duração, e o filme era Kwaidan: As Quatro Faces do Medo (Kaidan), uma antologia de horror. Como se já não fosse atípico o bastante ver um “estrangeiro” atraindo os olhares das críticas especializadas, o citado lançamento foi indicado ao Oscar como Melhor Filme Estrangeiro no 38º Academy Awards, situação rara para os longas do gênero até mesmo nos dias atuais.

Kwaidan: As Quatro Faces do Medo conta com quatro segmentos narrativos distribuídos em pouco mais de três horas de duração. As histórias não são originais, antes, foram selecionadas a partir de coletâneas de contos compilados pelo escritor Lafcadio Hearn (1850-1904). São elas: Os cabelos negros (Kurokami); A mulher das neves (Yuki-Onna); Hoichi - O sem orelhas (Miminashi Hōichi no Hanashi) e Numa taça de chá (Chawan no naka). Cada uma dessas histórias seguem personagens comuns que, de uma hora para outra, se veem metidos em situações assustadoras e extraordinárias que acabam por trazer consequências bastante desagradáveis; dentre as quais ter as orelhas cortadas parece ser o destino menos trágico.

Os quatro tópicos a seguir têm o objetivo de expôr, para aqueles que ainda não tiveram contato com essa obra por um motivo ou por outro, as razões pelas quais vale a pena separar três horinhas para dar uma chance ao longa. Vamos lá!

1 - Se você é fã de terror e horror, precisa conhecer os kaidan

Uma das traduções possíveis para a palavra “kwaidan” (kaidan) é “narrativas do estranho/misterioso” e nada mais autoexplicativo que isso. Derivadas de uma herança oral, essas narrativas tiveram seus primeiros registros escritos no Período Edo (1600 - 1897), um período conhecido pelo relativo isolamento do Japão em relação aos outros países. Com atividades econômicas mais autocentradas, a relação entre o urbano e o rural estreitava-se, e ali, em meio aos encontros e desencontros, histórias de fantasmas eram contadas, recontadas, inventadas, transmitidas e, enfim, registradas em coletâneas chamadas de kaidanshû - e sabe-se bem que os movimentos e possibilidades de uma história nunca terminam em sua publicação.

Enquanto apenas narrativas orais - que não evocam apenas histórias de fantasmas, mas tudo o que é estranho, desconhecido e extraordinário -, os kaidan se popularizaram a ponto de darem nome a uma atividade bastante peculiar, que consistia em reuniões de pessoas para contar cem histórias kaidan com a expectativa de provocar eventos sobrenaturais. Essas reuniões eram chamadas de “encontro para cem kaidan” (hyakumonogatari kaidankai), e se tornaram verdadeiros ícones para a cultura do que logo se tornaria um gênero literário ainda no Período Edo. Encontros para histórias sinistras talvez evoquem um cenário de inverno, frio e fogueira, mas em terras nipônicas, o terror ganha força mesmo é no verão. Na estação do calor, acontece o Festival do Dia dos Mortos (Obon Matsuri), ocasião na qual os japoneses revisitam a tradição de cultuar seus ancestrais; é também quando os falecidos, de acordo com a crença, aproveitam para ver seus entes queridos encarnados. Esse festival, que ocorre anualmente, é um dos grandes responsáveis por manter a cultura das narrativas bizarras ainda bem vivas no imaginário japonês e cria uma atmosfera propícia para reuniões que relembram, inauguram e reinventam antigas histórias.

É inegável a força do horror e terror na produção cinematográfica e literária japonesa, e muito desse sucesso vem da tradição dos kaidan. Exemplos de roteiros que envolvem espíritos vingativos, desdobramentos surpreendentes e cenas horripilantes é o que não faltam, e dentre eles podemos citar o clássico O Chamado (Ringu, 1998) do diretor Hideo Nakata, o cult Pulse (Kairo, 2001), sob direção de Kiyoshi Kurosawa, Noroi: A Maldição (Noroi: The Curse, 2005) de Kōji Shiraishi e, claro, Kwaidan: As Quatro Faces do Medo.

2 - O filme prova por a mais b que inexperiência não é sinônimo de inaptidão

Quando se sabe do prestígio que Kwaidan: As Quatro Faces do Medo detém hoje, fica até difícil de acreditar na incredulidade e resistência que Kobayashi enfrentou durante e pós-produção. A recepção foi de estranheza e as críticas não foram poupadas: o diretor aparentemente não respeitava as regras das narrativas de horror e seu histórico de não proximidade com o gênero era uma prova cabal de que ele não sabia o que estava fazendo.

De fato, Kobayashi passava longe de ser um veterano no cinema de horror, sendo Kwaidan seu primeiro e único filme dessa categoria. Após uma trajetória de muitos acontecimentos marcantes, como o fato de ter sido prisioneiro de guerra e ter passado por um campo de concentração durante o conflito do Japão com a China, seus filmes até então tinham um teor de denúncia dos horrores das guerras, críticas ao próprio Japão e aos japoneses e um certo pessimismo em relação a personagens fortemente idealistas. Após o sucesso estrondoso de seu longa Harakiri (1962) - um drama samurai ambientado na Período Edo - premiado no Festival de Cannes, Kobayashi ganhou atenção internacional -, ou melhor, a atenção ocidental -, e pode ser esse um dos motivos para ter se lançado em um projeto tão ambicioso e distante do que produzira até o momento.


O estranhamento não vinha somente do fato de Kobayashi ter desviado do território conhecido do drama para uma produção horripilante, mas também com os elementos que compõem a obra em si e os fatores que orbitavam o quadro cinematográfico do período. Os cenários surrealistas e artesanais, o distanciamento do ocidente em relação aos elementos culturais japoneses, o já conhecido descrédito que o terror e o horror encaram até hoje e a até então recente e ainda tímida “perda” da hegemonia das produções hollywoodianas foram alguns dos fatores dificultantes para a boa recepção da crítica.

Hoje em dia, o longa é lembrado como uma icônica obra do horror e figura em listas de clássicos cults do gênero, além de continuar a causar deslumbramento pelas técnicas empregadas, embora ainda não tenha alcançado a popularidade merecida.

3 - Esmero com a estética é o que não falta

A trajetória dos filmes de terror e de fantasmas do Japão já vem de tradições ricas em elementos que são um prato cheio para os estudiosos da arte e estética. Uma das grandes influências para as produções das primeiras décadas do século XX foi o teatro, em especial o kabuki, que tinha por principais características as fortes estilizações das interpretações e as maquiagens marcantes. Sendo assim, muitos desses filmes não tinham tanto compromisso com o “realismo”; antes, preocupavam-se com a dramaticidade dos movimentos dos atores e atrizes e em causar fortes impressões no público. Essa herança, embora já diluída com outras influências e tendências, além do estilo próprio da produção, não deixa de emergir em Kwaidan: As Quatro Faces do Medo, que é bastante eficiente nesse resgate.

Kwaidan foi o primeiro longa em cores de Kobayashi, o que exigiu um estudo intenso de cores e muitas referências artísticas que variaram desde as técnicas plásticas tradicionais de seu país até o surrealismo e cubismo. O produto final mais marcante dessa pesquisa foram os cenários exuberantes pintados à mão e de dimensões tão grandes que tiveram de ser instalados em um local em Kyoto que estava sendo utilizado como depósito de carros depois de já ter servido como um hangar de aviões. Bem como se faz com pinturas emolduradas, os takes longos e com captação estática permitem ao telespectador uma experiência de contemplação.


Sendo uma antologia que conta com vários seres fantasmagóricos, técnicas analógicas de colagem e sobreposição foram empregadas para criar a impressão de translucidez e uma aura espectral ao redor dos atores. As maquiagens e ambientação são outro show à parte: além de belas e primorosas, criam uma esfera misteriosa única para o filme, que mais se assemelha a um sonho bizarro, além de cada uma das quatro histórias representarem as estações do ano em sua fotografia.

4 - Os leitores de plantão também vão ter com o quê se entreterem

Como já dito, o Kwaidan: As Quatro Faces do Medo foi inspirado em histórias registradas por um escritor: Lafcadio Hearn. Apesar do nome do filme carregar o título de uma de suas obras - Kwaidan: histórias e estudos de coisas estranhas (Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things), de 1904 - apenas dois dos segmentos presentes no filme foram retirados desta obra (A mulher das neves e Hoichi - O sem orelhas). As outras duas histórias (Os cabelos negros e Numa taça de chá) teriam sido selecionadas de outras antologias do autor.

O nome já denuncia que o escritor não era japonês, mas isso não o impediu de escrever diversos livros sobre o Japão e, principalmente, as narrativas mitológicas e folclóricas locais, gosto que já colecionava desde jovem - não só pelas que vinham de terras nipônicas, mas também de outras culturas que conheceu em viagens e livros. Lafcadio nasceu em 1850 na ilha grega de Lêucade, e sua vida foi marcada por altos e baixos que envolviam constantes mudanças de país - Irlanda, França, Inglaterra etc. - e até um período em que esteve morando nas ruas por dificuldades financeiras. Seu principal sustento foi a escrita, atividade que exerceu principalmente para jornais. A sua relação com o Japão começou quando ele tinha já seus 40 anos de idade, ocasião em que visitou o país pela primeira vez e se apaixonou. A paixão foi tanta que ele logo se casou com uma nativa, Setsu Koizumi, naturalizou-se japonês e adotou o nome de Yakumo Koizumi. Morreu jovem, com apenas 54 anos, no mesmo ano da publicação de Kwaidan, 1904.

No prefácio de Kwaidan: histórias e estudos de coisas estranhas, Lafcadio conta de onde tirou as histórias. Ele admite que grande parte delas saíram de livros antigos, dentre os quais ele cita: Yasô-Kidan, Bukkyô Hyakkwa, Kokon-Chomonshû, Tama-Sudaré e Hyaku-Monogatari. Uma das histórias presentes no filme, A mulher das neves (Yuki-Onna), ele diz ter escutado de um agricultor da província de Musashi, sendo esta narrativa uma lenda local do vilarejo do narrador-fonte.


No mínimo, pode-se dizer que Lafcadio ajudou com a divulgação das tradições japonesas para o resto do mundo. Sua estadia no país insular se deu no final da Era Meiji (1868-1912), período no qual o Japão vivia uma intensa troca cultural com outros países desde a abertura dos portos em 1854, sob pressão estadunidense, o que gerava nos países ocidentais uma grande curiosidade. Hoje, existem centros culturais e monumentos em seu nome espalhados pela Europa homenageando a sua contribuição.

Sejam esses quatro tópicos o suficiente ou não para convencer, o fato é que Kwaidan: As Quatro Faces do Medo continua a unir diversos públicos ao seu redor: os amantes do horror, os pesquisadores da cultura japonesa, curiosos e amantes das artes - da sétima ou de outras. Talvez não agrade a todos, mas certamente não vai sair da mente do espectador com tanta facilidade, e qual seria a maior atribuição da arte senão a de inquietar?


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