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A dor da maternidade em A Mulher Desiludida


Tão antiga quanto a sociedade ocidental são os mitos que envolvem a maternidade. Muitos autores como Liev Tolstói e Gustave Flaubert (em Anna Kariênina e Madame Bovary, respectivamente) narram a vivência de mulheres que, além da maternidade, trilham questões mundanas. Entretanto, a partir do século XIX, quando as mulheres começaram a ter voz na literatura, o tema passa a ser encarado de forma mais complexa, sensível e dolorosa. Afinal, a dor da maternidade é inerente à existência feminina?

Simone de Beauvoir, filósofa e escritora francesa, a partir de suas leituras de mundo e seus estudos sociológicos - estudos esses que deram embasamento para escrita do livro O segundo sexo, de 1945, usado até hoje como referência bibliográfica nos estudos de gênero - desmente o maniqueísmo da “mãe devotada” versus a “mãe narcisista”. Em seus escritos, Beauvoir dá protagonismo a mulheres humanas, com erros e acertos que, diferentemente da maior parte da literatura clássica, já passaram da juventude e precisam encarar as escolhas que fizeram - ou, em determinados casos, as escolhas que foram obrigadas a fazer.

A literatura, como espaço de reflexão e espelho da humanidade, torna-se um solo fértil para discussão acerca da maternidade. Tanto que mesmo em obras contemporâneas o tema ainda é polêmico. Pode uma mãe decepcionar-se com seu filho? Pode uma mãe se colocar em primeiro lugar? Pode uma mãe não amar sua criança inteiramente?

Simone de Beauvoir, no livro A mulher desiludida (1967), produz três contos que debatem a maternidade crua e dolorosa. O primeiro, A idade da discrição, revela o sentimento de revolta de uma mãe que não enxerga seu legado no próprio filho. A personagem narra em primeira pessoa seus anseios em relação ao filho Philippe, que apesar de ter sido criado em um ambiente acadêmico por pais pesquisadores e com ideais revolucionários, casa-se e decide seguir carreira em outra área.

A protagonista, apesar de ser bem-sucedida em sua carreira e ter mantido um casamento feliz, enxerga no filho seu projeto mais ambicioso, sua oportunidade de transcender e enganar a passagem do tempo. Ela anseia fazer o que Beauvoir, em O segundo sexo, chama de “transcender a si mesmo através da reprodução” - algo permitido somente aos homens. Mas o que acontece quando o filho projetado para ser seu próprio espelho segue caminhos diferentes? O filho adulto é um projeto findado, e para a personagem, quando Philippe deixa de ser objeto de orgulho, sua existência torna-se também caótica. Passada a juventude, surge a dor de não se reconhecer em seu próprio corpo - cada dia mais transformado pela idade - e não poder se enxergar no filho, que viria a ser seu legado para a sociedade. Ela diz: 

Perguntava-me como se consegue viver quando não se espera mais nada de si. Ver o mundo transformar-se é, ao mesmo tempo, milagroso e desolador.

Não é segredo que a maternidade compulsória guia a vida das meninas desde seu nascimento, seja pelos brinquedos e brincadeiras ofertadas, seja pelo cerceamento para vida doméstica. É criada uma expectativa em torno do desejo de se ter um filho que é justificado pela ideia de gratidão: a criança será o maior e mais duradouro amor, haverá uma dívida eterna, a criança seguirá os ensinamentos da família. A jura, entretanto, é mentirosa. O bebê gerado crescerá, se tornará autônomo e seguirá sua vida. Daí surge a angústia de notar as imperfeições do filho que julgou imaculado, aceitar a separação que vai se acentuando dia após dia, rompendo os laços que a mãe julgou inquebrantáveis. 

É verdade que relações parentais saudáveis podem ser duradouras e benéficas para toda família, não há motivo para um rompimento radical entre mãe e filhos nesses casos, mas a expectativa criada pela romantização da maternidade pode levar a uma negação da autonomia dos filhos que por sua vez, acaba optando pelo afastamento. No trecho “Ele me abandonou no instante em que anunciou seu casamento, me abandonou quando nasceu: uma ama poderia me substituir.” é perceptível a mágoa da mãe em relação ao filho. Se a maternidade é o que lhe garantirá um amor verdadeiro, como aceitar que o filho se tornará mais independente e mais distante dela? A criança que se formou dentro da mãe, que se nutriu do corpo dela, cresce e se torna um adulto que não precisa de ninguém para se cuidar. A angústia de ser desnecessária ao filho, somada ao choque geracional - de ideologias e vivências - anuncia o medo da solidão e da velhice. A protagonista é, enfim, uma mulher que não se orgulha do próprio filho.


O segundo conto, Monólogo, é uma avalanche de sentimentos. Murielle, a protagonista, narra em fluxo de consciência a raiva que sente de todos à sua volta pela morte de Sylvie, sua filha adolescente. Beauvoir faz a escolha artística de não pontuar o texto com vírgulas, dessa forma, a leitura se torna tão frenética quanto o ritmo de pensamentos da personagem. O mote desse conto é a reprodução das violências maternas: Murielle culpa sua mãe por não ter lhe dado atenção, por ter sido preterida em relação ao irmão. Seu rancor perpassa pelo abandono paterno e a leva a adoração cega aos homens (o pai e depois os maridos). A culpa que relega à mãe gera em Murielle uma infinita rivalidade com outras mulheres, incluindo a filha. A protagonista enxergava ingratidão na filha e a reprimia alegando querer seu bem. A preferência pelo filho Francis e a amargura que sente em relação à Sylvie marca a reprodução dos traumas afetivos que carrega, repetindo os erros de sua própria mãe enquanto tenta se esquivar deles. Murielle é uma protagonista dúbia. Sua decisão de educar os filhos de forma rígida revela o desejo de protegê-los do que ela viveu, ainda assim ela culpa as crianças por não compreendê-la. 

Eu a reprimia sim eu era firme mas terna sempre pronta a conversar com ela queria ser sua amiga.

Sua consciência varia entre ter raiva de Sylvie por tê-la deixado e momentos em que sente culpa pela morte da filha, nesse ponto ela sempre repete “Fui a melhor das mães. Você teria me agradecido mais tarde”. Outra frase sempre repetida é “Um filho precisa de uma mãe”. A construção de Murielle por Beauvoir deixa o leitor dividido entre odiar uma mãe abusiva e se compadecer da dor de uma mulher ferida que tentou evitar a qualquer custo que os filhos tivessem a mesma vida que ela. Ela acusa a filha de ingratidão, diz que a menina tinha um temperamento difícil, afirma que “Os mortos não são santos”. Ao mesmo tempo, os “e se…?” a atormentam: Murielle nunca se conforma que a filha decidiu morrer, nos momentos em que não acusa a filha tê-lo feito para feri-la, ela defende que a menina “brincou de morrer” e se responsabiliza por não ter ido vê-la antes de dormir, ou por não ter sido a mãe que fica o tempo todo em casa. Ela lamenta: “se uma filha se mata a mãe é a culpada”. No momento em que a filha morre, Murielle não tem o conforto da mãe: ela é acusada. 

Minha mãe gritou ‘Você a matou’. Minha própria mãe.

Murielle não consegue demonstrar seu amor à filha, seu cuidado torna-se violento, pois o que recebeu da mãe foi indiferença. O ciclo de dor é quebrado por Sylvie, que morre antes de se tornar mãe.

Por último, o conto homônimo ao livro, A mulher desiludida traz Monique como uma devotada dona de casa que criou duas filhas ao lado do marido, Maurice, a quem muitíssimo admira. Monique nutriu a esperança de viver para o marido após a saída das filhas de casa. 

Quero, enfim, viver um pouco para mim mesma. E aproveitar com Maurice essa solidão a dois, da qual tanto tempo estivemos privados. 

Seus planos são frustrados quando descobre que Maurice estava tendo um caso. Pior do que a traição, Monique se sentia ameaçada por Noëlle por ela ser seu oposto: costumes livres, divorciada, advogada brilhante. A vida que ela abriu mão de bom grado para se dedicar à família a confrontava, levando-a a refletir sobre suas decisões e seu futuro. Por páginas a fio Monique aceita o caso do marido, torcendo para que seja passageiro, tentando ser compreensiva para que ele não a abandonasse. O que uma mulher que se dedicou somente à sua família durante toda a vida faz quando as filhas crescem e o marido a abandona? É ela ainda dona de si mesma - de seu desejo, de seu corpo, de seu futuro?

Ao longo do conto, leitora e personagem compreendem onde dói a traição desse marido: ele permitiu que ela se dedicasse a ele, que amasse somente a família, e o único retorno que ela teria seria a companhia, o amor, a parceria… Mas ele quebrou esse acordo, deixando ela sem nada. Monique lamenta:

Deveria ter me prevenido. Eu também teria tido alguns casos. E teria trabalhado. Há oito anos, teria tido coragem de fazer alguma coisa, não haveria esse vazio em torno de mim. 

Mais uma vez a questão etária perpassa a situação: Monique sente que seu dever como mãe e esposa foram cumpridos, portanto seria o momento de alegrar-se com as conquistas das filhas, ajudar com netos, viver uma vida a dois novamente. “Mas então é monstruoso: escolheu me abandonar no momento em que eu não tinha mais minhas filhas.” ela pensa. A solidão a aterroriza.


A narrativa de Beauvoir, sem ser panfletária, faz o leitor refletir sobre como é pedido às mulheres que abram mão de sua autonomia e desejos para viver uma vida familiar, que abram mão de ambições em troca da promessa de um casamento feliz, mas que no fim não há garantias. É perigoso que toda felicidade esteja concentrada em uma relação. Não há estímulo às meninas a terem outros interesses. Os homens - casados e solteiros - têm famílias, carreiras, amigos, círculos sociais diversos. As mulheres ficam presas às famílias, estimuladas desde a infância a se adequar ao papel de mãe e esposa. Muitas param suas carreiras e estudos para se dedicar a vida doméstica - como é o caso de Monique. Cria-se uma simbiose afetiva: os filhos são nutridos e educados por elas, são parte de seu corpo durante meses e depois vivem muito próximos para que a ruptura ocorra. Na adolescência, o menino se afasta, mas a menina ainda é domesticada pela mãe, para aprender a ser o corpo-nutriz. A separação entre filhos e mães é dolorosa justamente porque a autonomia dos filhos significa um vazio na vida dessas mães. Monique admite:

Quando se viveu de tal maneira para os outros, é um pouco difícil começar a viver para si.

O sistema que coloca mulheres como reprodutoras é o mesmo que cria filhos obedientes. Monique, assim como Murielle - talvez com uma abordagem mais passiva -, teme que as filhas sejam infelizes: tem medo que Lucienne odeie o casamento, “também é minha culpa, essa recusa de amor. Meu sentimentalismo a enojou, fez tudo para não se parecer comigo”; tem medo que Colette viva um casamento infeliz seguindo seus passos.

Simone de Beauvoir escreve de modo que é possível sentir a amargura em cada linha do texto sabendo que Maurice está deixando Monique aos poucos, enquanto ela questiona cada vez mais suas decisões, baseando-se em acusações infundadas do marido: “Você empurrou Colette para um casamento cretino e foi para escapar de você que Lucienne partiu”. Em uma briga, ele a chama de autoritária, possessiva e intrometida. Maurice ainda diz que “as mulheres que não fazem nada não suportam as que trabalham”, deixando-a desnorteada ao compreender como o marido a preteria. Monique justifica seus motivos para nunca ter tido uma carreira profissional além dos cuidados domésticos: “não lidaria bem com o fato de não ficar totalmente à disposição das pessoas que precisam de mim.”

A percepção de que uma vida toda em prol de sua família não havia significado nada ao marido, que todo tempo investido e a crença de que ele lhe era grato e admirava suas decisões desfez a identidade de Monique. Com a saída de Maurice de casa, ela se perde em si mesma, sentindo-se vazia. Monique acaba aceitando os conselhos da família e das amigas: começa a trabalhar fora, refaz sua vida aos poucos. O conto termina com a frase “Tenho medo” e nenhuma expressão poderia ser mais dolorosa; ela, uma mulher adulta, mãe de duas filhas é jogada na inconstância da existência, dessa vez sem nenhuma promessa. Monique, que se dedicou a uma vida que perdeu, seguiu um desejo que não se concretizou, acabou confrontada pelo seu maior medo: a solidão.

As três personagens de A mulher desiludida têm em comum, além da maternidade, a faixa etária acima dos 40 anos. A primeira protagonista sente as escolhas políticas do filho como traição, mesmo tendo outras paixões, como sua profissão e seu marido, o filho é seu objeto de transcendência, é através de Philippe que ela deixaria seu legado. A idade a perturba: sente as mudanças de seu corpo e se retrai, percebe a ação do tempo no marido e se irrita; a sensação de tempo se esgotando a deixa angustiada. Murielle, mãe de uma adolescente morta e um menino com quem não pode ter mais contato, sente o peso da idade nos anos vividos, não em sua situação atual. Seus traumas a definem e o passar dos anos somente serviu para acentuar suas reservas quanto as pessoas. Diferentemente de Monique e da primeira protagonista, Murielle já está só, não teme mais nada, apenas sofre as consequências de não ter sido amada como deveria. Monique é a mulher desiludida. Viveu uma vida de devoção à família e acabou solitária. Todas as três vivem a dor de ser mulher, a dor de ser mãe, a dor das promessas não concretizadas. Três personagens distintas, que contam suas histórias em primeira pessoa, quase como uma confissão que não fariam a mais ninguém além de si mesmas; que temem a solidão, todavia narram seus medos inconfessáveis sem perceber que parte de si mesmas sempre esteve solitária.

Beauvoir é genial em suas narrativas porque suas personagens são humanas demais: nem Maria, mãe obediente e casta, nem Eva, mãe pecadora e curiosa, estão livres da dor da maternidade. As três protagonistas percebem a velhice se aproximar sem saber as respostas certas e sem o amor incondicional que foi prometido a elas.

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