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A weltliteratur do sertão: o universo no quintal de Inocência


Apesar da literatura regionalista contar com grandes autores e obras de qualidade inquestionável, não é difícil nos depararmos com críticos que recorrem a essa catalogação como forma de desprestigiar um livro ou autor. O julgamento costuma orbitar o embate entre os dilemas do homem regional versus os do homem universal e em como estes se relacionam com seu entorno; mas seriam esses infortúnios tão destoantes conforme o local em que o homem está inserido? Seriam as inquietações de um sertanejo tão diversas quanto as de um europeu cosmopolita? O conceito alemão de weltliteratur e o romance Inocência, de Visconde de Taunay, nos ajudam a responder a essas questões.

Weltliteratur – o universal a partir do local

Ao abordar a weltliteratur em uma troca de cartas informais e sem se aprofundar em teorizações, Johann Wolfgang von Goethe vislumbrava a universalidade cultural, e sua inspiração teve origem em seus hábitos de leitura que contavam com literaturas além das europeias. Segundo Goethe,

[...] a poesia é patrimônio comum da humanidade e que em todos os lugares e em todos os tempos se manifesta em centenas de pessoas. [...] Literatura nacional não quer hoje dizer coisa muito importante: chegamos ao momento da literatura mundial e todos devemos contribuir para apressar o advento de tal época.

O autor alemão valorizava a cultura popular e acreditava que a criação poética era universal e não uma exclusividade de algumas poucas nações. Diferentemente da ideia de globalização e da consequente cultura de massas, a proposta do autor era que chegássemos em um “patrimônio comum da humanidade” (de acordo com Eloá Heise) por intermédio de um intenso intercâmbio cultural e assimilando as diferenças entre as literaturas nacionais. 

Goethe

Assim sendo, o conceito alemão não visa o abandono do local, pelo contrário, seria a partir dele que chegaríamos ao universal. Nas palavras da professora Heise, especialista em literatura alemã, “a vivência e a convivência com uma cultura estrangeira tornam-me mais cônscio de minha própria identidade ao mesmo tempo que servem de força motriz para essa minha identidade, colocando-a em movimento”. O que Goethe realmente almejava era a empatia e a troca cultural entre os homens, independentemente de fronteiras geográficas e sem o abandono de tradições culturais específicas de cada nação. 

Regionalismo – o local como universal

A prolificidade de textos regionalistas deu-se, principalmente, na década de 1930, quando surgiram nomes como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado. No entanto, o regionalismo esteve presente em nossa literatura desde as origens, como destaca o professor Antonio Candido – a brasilidade, como chama o professor, foi essencial para diferenciar o que aqui era produzido das literaturas europeias. Na ânsia em representar o povo brasileiro e em provar que éramos capazes de produzir literatura, tomar o caminho do regionalismo foi inevitável para os autores românticos que também buscavam a consolidação da nossa identidade cultural.

Embora muito apreciada pelo público que, graças às obras regionalistas, conseguiu reconhecer a história de sua família naquelas retratadas na ficção ou estabelecer algum tipo de contato com regiões distantes de nosso país – e ainda assim achar similaridades em situações corriqueiras –, é comum que críticos qualifiquem obras regionalistas como menores ou de qualidade duvidosa, sendo vistas repetidas vezes como obras meramente documentais.

Muito dessa desconfiança em relação à qualidade de livros regionalistas deve-se a autores que, na tentativa de reproduzirem fielmente tradições e linguajares de regiões mais afastadas dos grandes centros, acabaram por cair no lugar-comum dos estereótipos. Porém muitos críticos fizeram e fazem vistas grossas às histórias que retratam o homem rural brasileiro mais pela escolha do personagem e do espaço em que ele se encontra do que pelo valor estilístico das obras.

Podemos começar, por exemplo, com a crítica do ensaísta português João Gaspar Simões que abre seu ensaio sobre o alagoano Graciliano Ramos afirmando que “está patente a incapacidade do escritor americano para descer ao estudo do homem no que nele há de mais complexo” ou então que “quando abandona os casos de humanidade complicada, para tratar tipos humanos brasileiros, atinge uma verdade, uma ‘exatidão’, a que nenhum dos seus camaradas chegou ainda”, na qual exclui, explicitamente, os tipos brasileiros de uma tal humanidade complexa.

Durval Pereira (1921 - 1984)

Para que não pareça somente arrogância europeia ultrapassada, recorremos a outras declarações problemáticas sobre o valor da literatura regionalista, levantadas por André Tessaro Pelinser, como uma citação de Alfredo Bosi (autor de História concisa da literatura brasileira), na qual o intelectual diz que “os regionalistas típicos esquivaram-se aos problemas universais, concentrando-se na estilização de seus pequenos mundos de província, cujo passado continuava virgem para a literatura brasileira” ou ainda a uma situação mais recente e também envolvendo outra intelectual brasileira:

Não suficiente, uma obra menos modesta e mais recente, voltada ao público estudantil, continua a reproduzir as mesmas linhas teóricas que parecem desejar esquecer a presença do regionalismo na Literatura Brasileira. Trata-se do manual de Helena Bonito Pereira, editado em 2000, o qual postula que, apesar de retratar personagens de um ambiente rural, Guimarães Rosa não chega a ser exatamente um escritor regional, já que suas narrativas põem em relevo situações universais e a sua linguagem não corresponde à fala do sertanejo.

Os exemplos deixam nítida a hesitação diante ao regionalismo em diferentes contextos e autores: enquanto um não consegue ver humanidade nos personagens de Graciliano Ramos por eles não pertencerem a um grupo cosmopolita europeu, outro refuta o regionalismo em Guimarães Rosa por ver humanidade demais nas questões tratadas no sertão mineiro. Isto é, nos casos citados, o que parece incomodar os intelectuais – indivíduos com alto nível de erudição que, comumente, são provenientes de classes abastadas e que circulam em meios elitistas de nossa sociedade – é a existência de humanidade e sociedade complexas em meios sociais/territoriais dos quais se esperam somente miséria, homens animalizados e formas primitivas de interações sociais que não apresentem questionamentos universais.

Na verdade, como destaca Antonio Candido, é justamente essa representação humanizada que evitaria descrições e marcas de linguagens estrambólicas, uma vez que retratar o personagem regionalista sem recorrer a maneirismo é o que gera a empatia no leitor: “este [o homem rústico] deixa de ser um ente separado e estranho, que o homem culto contempla, para tornar-se um homem realmente humano, cujo contato humaniza o leitor.” (Candido), sendo justamente esse reconhecimento no outro a partir das diferenças o que foi aventado por Goethe, em sua weltliteratur.

O universo no quintal de Inocência

Para Candido, Visconde de Taunay foi um caso raro na literatura devido a sua sensibilidade, experiência de vida e refinamento estético. Por ter morado no Mato Grosso, Taunay conseguiu ver o sertão com mais clareza e era a essas lembranças que o autor recorria para narrar as paisagens de suas histórias.

O romântico e vaidoso Visconde de Taunay acreditava que seria apreciado pelas gerações futuras graças ao seu livro Inocência, publicado em 1872, tido por ele como a base da “verdadeira literatura brasileira”. Ainda que não tenha atingido o sucesso perdurável de outros de seus coetâneos, como José de Alencar, Taunay figura no cânone de nossa literatura e, de fato, merecia mais destaque nos dias de hoje.

Em Inocência, acompanhamos a viagem do jovem Cirino de Campos pelo sertão de Santana do Paranaíba, interior de Mato Grosso, até encontrar pelo caminho com Pereira, um sertanejo de bom coração que, ao saber que o rapaz era médico, lhe oferece estadia em sua humilde casa. Convite prontamente aceito, Cirino descobre que Pereira tem uma filha, Inocência, que se encontra muito doente e acaba por curá-la com suas mezinhas. O problema é que além de não ser médico, Cirino acaba apaixonando-se pela jovem sertaneja que é prometida a outro.

Exemplo de literatura regionalista, o romance conta com descrições belíssimas do sertão mato-grossense, bem como traz a definição do que seria um verdadeiro sertanejo e seus hábitos. Porém muito se engana quem acredita que Taunay tenha deixado de lado questões universais ou então diminuído a potência de seus personagens, tornando suas tradições e fala em caricaturas de mau gosto. O romântico nos entrega, com Pereira, um personagem tão complexo quanto o próprio sertão que o moldou, começando a história como um homem bem-humorado, gentil e de costumes rígidos, que vai se tornando cada vez mais paranoico ao desconfiar que querem desonrar sua filha, além de nos apresentar uma estrutura social cruel para com as mulheres. 

Inclusive, o grande trunfo da história é justamente a personagem que dá nome ao livro – filha única, analfabeta, criada só pelo pai e obediente às leis impostas às mulheres do sertão, Inocência cresce de forma espetacular no desenrolar do enredo e se mostra uma moça inteligente, questionadora e inconformada com sua situação. Também apaixonada por Cirino, a moça lutará até o fim pela sua liberdade de escolha e pelo seu amor. 

Com passagens nada convencionais para um romance do século XIX, Taunay pontua questões que até hoje nos são caras, como na declaração de Cirino a Pereira em uma conversa sobre as mulheres: “No meu parecer, as mulheres são tão boas como nós, se não melhores: não há, pois, motivos para tanto desconfiar delas e ter os homens em tão boa conta”, ou ainda ao mostrar, na continuação da mesma discussão, que a força de espírito da personagem principal sempre esteve presente, afastando qualquer ideia de que suas ações são impulsionadas única e exclusivamente pelo seu amor pelo rapaz: 

Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que ideia!... Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E você sabe o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens.

Com isso, o autor apresenta um livro com personagens humanizados e questões universais e atemporais como a rigidez dos costumes e tradições, a condição da mulher na sociedade, o amor, o ciúme e a vingança. Contudo outro aspecto de diálogo com a literatura mundial são as epígrafes presentes em todos os capítulos. 

A epígrafe é um dos vários recursos de que um autor pode lançar mão ao escrever sua obra para inseri-la em uma tradição literária, estabelecendo diálogos com diferentes culturas e momentos históricos, além de fornecer pistas interessantes sobre a composição de uma obra literária. 

Visconde de Taunay

A professora Rita Félix Fortes analisa algumas das epígrafes que precedem os trinta capítulos que compõem Inocência. As epígrafes prenunciam os temas que serão abordados em cada capítulo e antecipam a evolução do enredo, bem como seu desfecho trágico. Em suas análises, a professora destaca de forma sucinta como as epígrafes empregadas por Taunay denotam a erudição do autor brasileiro, além de dialogarem não só com a tradição literária grega, mas também com seus contemporâneos românticos, servindo de prenúncio da história. 

Entretanto podemos ir mais adiante ao afirmar que as epígrafes asseguram o caráter universal dos temas tratados em Inocência, pois, ao relacionar as citações – que remontam a tradição literária ocidental ao utilizar trechos de obras da Grécia Clássica, da Bíblia e de românticos europeus – com a sua própria narrativa, o romântico brasileiro obriga seu interlocutor a reconhecer que sua obra aborda questões morais inerentes ao homem, independentemente dele ser um simples sertanejo ou um erudito europeu. 

A weltliteratur do sertão

É inegável que a relação do homem com seu meio será diversa em meio a tantas culturas e povos; a forma com que o homem lida com a natureza ao seu redor será fundamental na evolução e fortificação de uma estrutura social e, justamente por isso, não há nada que justifique a anulação ou diminuição da humanidade e da complexidade de um determinado segmento social baseado somente em sua localização geográfica e sua ligação com seu entorno. Em Inocência, temos um romance que aborda questões não só universais, como atemporais que não destoam das incertezas de tantos outros povos e épocas. Visconde de Taunay reafirma a complexidade de seus personagens e do sertão ao evocar autores e histórias universais para ajudá-lo a contar sua história. A sertaneja Inocência, em toda sua simplicidade, é tão vítima de uma sociedade patriarcal mato-grossense, quanto heroína de sua própria história ao adquirir uma consciência de si e do seu meio, se rebelando e sofrendo ao não aceitar mais o lugar social que lhe é imposto, e não seria exagerado colocá-la ao lado de personagens tão fortes, como a francesa Emma Bovary. 

A complexidade das relações humanas independe do meio, o que não significa que o meio não interfira na forma em como elas se estruturaram. E o caminho mais viável de leitura e compreensão de uma obra tida como regionalista, seja para um leitor brasileiro que se considera fora dessas regiões literárias ou para um leitor estrangeiro, seria, como proposto por Goethe, o de apreender as diferenças culturais já esperadas com tolerância para então voltar repensando e reconstruindo o seu próprio espaço a partir da assimilação das semelhanças entre as culturas. 


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