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O horror que o Oscar não vê


Ainda não consigo acreditar que teremos uma nova edição do Oscar e, novamente, o horror foi esnobado. Especialmente em um ano cuja definição de "horror" é o que mais se enquadra no cotidiano. É bem verdade que ficamos desfalcados de vários lançamentos esperados, mas tivemos bons filmes e que dialogam perfeitamente com o sentimento de pavor daquilo que não podemos controlar — e daquilo que pode estar dentro de casa, à espreita — que vivenciamos diariamente. 

Estivemos muito perto. 2019 foi o ano dos filmes de horror, afinal de contas. Embora tenham havido outros gêneros que também tiveram sua quota de sucessos, o horror esteve em sua mais alta forma em 2019 e era possível acreditar que finalmente passaria a ter um reconhecimento merecido por parte das grandes premiações. Pudemos ver diversas histórias que verdadeiramente nos assustaram por refletirem os nossos medos enquanto sociedade. Já 2020 foi um ano quase sem lançamentos. Muitas histórias esperadas foram postergadas por causa da pandemia — inclusive filmes do gênero, alguns pelos quais ainda esperamos. Todavia, houve lançamentos de qualidade tanto em 2019 quanto no ano passado para que possamos nos perguntar: onde estão eles no Oscar? E, por isso mesmo, é ridículo perceber que a Academia ignorou, mais uma vez, produções soberbas por considerarem o horror um gênero inferior. 

É quase impossível acreditar que Lupita Nyong’o não foi indicada ao Oscar no ano passado. Ela não deu uma, mas duas atuações dificílimas e assombrosas. Ao interpretar Addie e Red, em Nós, filme de Jordan Peele, vimos Lupita em uma atuação que certamente não será esquecida. Muitos foram os filmes de terror que se destacaram em 2019, mas nenhuma atuação — dentre todos os gêneros — ficou acima daquela que Lupita entregou em Nós

Lupita Nyong'o em Nós

Existem muitas discussões que podem ser feitas a partir disso. A mais chamativa é a questão racista por trás da escolha que a Academia tomou ao esnobar a atuação da atriz. Ela, que já ganhou um Oscar como Melhor Atriz por seu papel em 12 Anos de Escravidão, parece ter sido esnobada por três fatores: o racismo da Academia, que não costuma premiar pessoas negras mais de uma vez; o fato de que, no filme pelo qual venceu, ela interpretou uma escrava, que parece ser o único papel aceitável para Hollywood (o negro subserviente, o negro sofredor, o negro escravizado); e como o Oscar ignora filmes de gênero, em especial o terror. 

Apesar da atuação de Lupita ter sido a melhor de 2019, houveram outras que também se destacaram naquele ano, assim como obras que poderiam ser consideradas melhores, em questões técnicas e de roteiro, do que muitas das indicadas nas categorias principais. Florence Pugh ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel como Amy March, em Little Women, mas ser ignorada pelo que fez em Midsommar é bizarro. Sim, Amy é uma ótima personagem e Florence conseguiu transmitir mais camadas a ela do que podemos imaginar apenas lendo o livro mas, ainda assim, a atuação dela em Midsommar é visceral. Sua personagem, Dani, sofre um intenso luto e precisa lidar com o horror da solidão durante o filme inteiro para, só então, conseguir finalmente sua catarse. Florence representou isso muito bem, bem a ponto de me fazer ir para casa, após a sessão daquela noite, sorrindo o tempo todo, envolvida pelo final catártico de Dani. Ainda que Lupita tenha tido, incontestavelmente, a melhor atuação do ano, Florence merecia ao menos uma indicação por Dani. Na categoria masculina de atuação, me surpreendi ao perceber que Willem Dafoe e Robert Pattinson não foram indicados por seus papéis em O Farol. É bem verdade que, apesar de suas muitas qualidades técnicas, não considero o filme como um dos melhores do gênero, mas ambos carregam ele nas costas com atuações profundas. Porém, parece que O Farol é muito fora da curva para ser mencionado para além de uma indicação a Melhor Fotografia. É uma pena, pois os dois atores contracenam entre si durante o tempo todo, numa fábula de loucura e repressão sexual que leva ao horror. 

Em 2020, o streaming dominou o cinema. Nem poderia ter sido diferente: com a pandemia, a vida mudou e nós fomos forçados a mudar a forma como consumimos entretenimento (embora alguns teimosos tenham insistido em reabrir os cinemas para a estreia de seus filmes, coisa completamente irresponsável e egocêntrica, mas divago). Houve, inclusive, obras que representaram os nossos medos dentro de casa, como Host, filme que pode não ser o melhor em termos técnicos, mas que cumpre perfeitamente seu papel enquanto história de terror capaz de retratar a necessidade de contato que a pandemia nos faz sentir e o quão fácil é quebrar limites por causa disso — nem sempre para o bem. 

Cena de Host

Contudo, digamos que as premiações não aceitassem o streaming e quisessem levar em conta apenas aquilo que foi passado nas telonas. Ainda assim, houveram lançamentos, pouco antes da pandemia estourar, que poderiam — e deveriam — ter sido indicados. É o caso de O Homem Invisível, por exemplo, para muitos o melhor filme de 2020. O thriller mexe com os nossos nervos e é perfeito em cada detalhe. Mas a Academia não gosta de filmes de terror. 

E não gosta mesmo: em todos os anos de Oscar, apenas seis filmes de terror foram indicados ao prêmio na categoria Melhor Filme: O Exorcista (1974), Tubarão (1976), O Silêncio dos Inocentes (1991), O Sexto Sentido (2000), Cisne Negro (2011) e Corra! (2018). Desses, apenas O Silêncio dos Inocentes venceu. Devemos lembrar que o filme, apesar de se enquadrar no gênero, pode também ser visto como uma história policial sobre um serial killer, não necessariamente como terror. Os outros indicados também possuem ambiguidades, com exceção de O Exorcista, talvez o filme mais emblemático do gênero. É bem verdade que o terror flerta com diversos rótulos, podendo ser encontrado em dramas, suspenses, até mesmo em obras de ação. Mas é vergonhoso que, nos 94 anos de existência da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, apenas seis filmes de gênero tenham ganhado reconhecimento em sua categoria máxima. 

Filmes do tipo costumam ganhar holofotes apenas em categorias menores, como maquiagem e efeitos visuais — embora a última tenha sido dominada por filmes de heróis nos últimos anos. Apesar de esses serem prêmios importantes, não são os mais aguardados da noite, que ainda permanecem sendo sobre pessoas e suas mentes: ator, atriz, direção, roteiro, filme. Porém, ao todo, somente 13 filmes de terror ganharam o Oscar: Dr. Jekyll and Mr. Hyde, em 1931 e a adaptação clássica de O Retrato de Dorian Gray, de 1945, foram os únicos filmes do tipo que conquistaram o prêmio durante os primeiros anos da premiação. É bom lembrar que ambos são adaptações de clássicos consolidados na literatura de língua inglesa, o que pode ter influenciado para que eles tenham sido reconhecidos. Demorou mais de vinte anos para que outro filme do gênero levasse a estatueta. Foi apenas com O Bebê de Rosemary, em 1968, que os filmes de terror foram novamente lembrados pela Academia, quando Ruth Gordon levou o Oscar como Melhor Atriz Coadjuvante. O pesadelo de muitas crianças, O Exorcista, ganhou os prêmios de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Mixagem de Som, em 1973. Tubarão, de 1975, levou pra casa os prêmios de Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora, por John Williams

Os anos 1970 foram uma boa década para o terror, que teve mais dois premiados: A Profecia, que ganhou por Melhor Trilha Sonora em 1977, e Alien – O 8º Passageiro, que levou a estatueta de Melhores Efeitos Visuais em 1980. Já a próxima década não foi tão gentil, premiando apenas dois: Um Lobisomem Americano em Londres, por Melhor Maquiagem, e A Mosca, na mesma categoria. A década de 1990 também rendeu apenas duas premiações no Oscar: O Silêncio dos Inocentes levou muitos prêmios para casa em 1992; estes foram pelas categorias Melhor Filme, Melhor Ator (para Anthony Hopkins), Melhor Atriz (para Jodie Foster), Melhor Diretor (Jonathan Demme), Melhor Roteiro Adaptado (Ted Tally), não ganhando apenas por Melhor Mixagem de Som e Melhor Edição. Um ano depois foi a vez de Drácula de Bram Stoker levar para casa várias estatuetas, incluindo Melhor Maquiagem, Melhores Efeitos Visuais e Melhor Figurino. 

Sadie Frost como Lucy Westenra em Drácula de Bram Stoker

O novo milênio trouxe um pouco mais de terror para as premiações, mas os filmes continuaram a ser esnobados. Em 20 anos, tivemos apenas três que conquistaram a estatueta: Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, que levou para casa o prêmio de Melhor Direção de Arte em 2008; Cisne Negro, que foi indicado a muitas categorias de prestígio, mas ganhou apenas a de Melhor Atriz, pela atuação de Natalie Portman (prêmio merecidíssimo, por sinal) em 2011; e Corra!, que foi indicado como Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator e Melhor Roteiro Original, mas venceu apenas o último durante talvez a cerimônia mais progressista que já vimos nos mais de noventa anos da premiação, em 2018.

Falando de atuação, é comum que aqueles que trabalham em filmes de terror entreguem algo incrível nas telas. Mesmo que os enredos, muitas vezes repletos de seres sobrenaturais ou pingando sangue, não sejam os mais aprazíveis, já que sabemos que a Academia prefere o bom e velho drama, no máximo, um musical, as atuações costumam ser soberbas. Ignorar uma Elisabeth Moss, tanto em O Homem Invisível quanto em Shirley é um desserviço à categoria. Também o é indicar ignorar trabalhos excelentes e sensíveis como o de Małgorzata Szumowskae em seu delicado, porém potente, The Other Lamb. Isso nos passa uma mensagem sobre qual o tipo de narrativa dirigida por uma mulher é aceita em Hollywood. 

Raffey Cassidy como Selah em The Other Lamb

No entanto, a questão da votação de quem vai concorrer ao Oscar é uma das causas do esnobismo para com filmes de gênero. Os indicados ao prêmio são escolhidos mediante um complicado esquema de votos que, em geral, esnoba filmes mais polêmicos e premia aqueles que se destacam por terem temais mais planos (é o caso do que aconteceu com Never Rarely Sometimes Always, que não é de terror, mas trata da questão do aborto e, por isso, foi publicamente rechaçado, tendo votante que inclusive se recusou a assisti-lo). E tal esquema leva em consideração o dinheiro: produtoras e distribuidoras mais abastadas possuem mais chances de emplacar um filme na premiação do que as independentes ou não tão tradicionais dentro da indústria — que é o caso da maior parte das casas dos filmes de terror atualmente. Hollywood vive de campanhas e de tratados do tipo “uma mão lava a outra”. Raramente trata-se de uma questão de merecimento — ainda que muitos dos filmes vencedores sejam, de fato, excelentes, a palavra final continua a ser a das finanças e a da tradição. Mas nem o dinheiro salva um filme de terror de ser esnobado: O Iluminado, de Stanley Kubrick, um diretor que já era consagrado dentro da indústria cinematográfica nos anos 1980, não foi indicado a nada. E aqui estamos falando de Kubrick, um dos mais respeitados cineastas da história do cinema no século XX. Porém, a Academia não gosta de terror. 

Questões sociais também são levadas em conta. O horror sempre foi a forma mais agressiva de crítica cinematográfica aos problemas de uma sociedade. Se os votantes da Academia — majoritariamente branca, masculina e velha — preferem histórias tradicionais e não se importam com diversidade (como é o caso de Stephen King que declarou nunca levar em consideração a diversidade na hora de votar), sobra pouco espaço para um gênero que vive disso. É espantoso que Parasita, vencedor de Melhor Filme em 2020, tenha recebido tanto holofote, dado o fato de que o longa — que pode ser considerado de horror, ainda que certamente também possa ser lido a partir de outro viés — é uma grande crítica ao sistema capitalista e mostra os horrores da desumanização de pessoas pobres. Porém, talvez ele apenas tenha alcançado o prestígio que conquistou porque seu diretor, Bong Joon-ho, já é conhecido da máquina hollywoodiana e seu filme seja sul-coreano, com atores de lá, falado na língua coreana e dentro daquele contexto. Por mais absurdo que possa nos parecer, é possível que boa parte da Academia não tenha conseguido ler nas entrelinhas o significado de Parasita

Elisabeth Moss em O Homem Invisível

Infelizmente, o Oscar ainda é o prêmio de maior peso dentro da temporada de premiações. Ganhar um Oscar significa portas abertas, oportunidades, dinheiro e outros filmes no mesmo estilo. Não ser nem ao menos indicado é estar na balança. Enquanto a procura pelo cinema de horror cresceu exponencialmente nos últimos dez anos, suas conquistas em festivais e eventos de prestígio não acompanhou o crescimento do outro gráfico. Mas o horror continua sendo um dos gêneros mais populares, especialmente em tempos como os nossos, quando a própria realidade se aproxima de roteiros fantásticos e assustadores. Ver o reflexo de nossa sociedade e de nossos medos na tela grande é reconfortante, ainda que assuste. O Oscar pode não ver o horror, mas nós o vemos. 



Arte em destaque: Mia Sodré 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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