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A Geração Beat e o movimento de contracultura

“Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela loucura...”

Você provavelmente já ouviu essa frase famosa que dá início ao poema Uivo (Howl), do escritor estadunidense Allen Ginsberg. Juntamente de Uivo, Pé na Estrada (On the Road), de Jack Kerouac, e Junky (Naked Lunch), de William S. Burroughs, fizeram-se o manifesto e as obras cânone do chamado movimento beat. Mas quem foram os beats, como surgiram, e de que forma moldaram a sociedade de sua época e a que vivemos hoje?

Vivendo na era de ascensão do jazz e nos primeiros passos do rock’n’roll, os Estados Unidos e o mundo também passavam pelo período da Guerra Fria desde o final da década de 1940. Nessa época de disputas entre capitalismo e comunismo, os Estados Unidos viu-se fortemente marcado pelo macarthismo, uma prática política cunhada pelo então senador Joseph McCarthy que permeava que qualquer ato que fugisse do “normal” seria considerado prática comunista. O governo investiu fortemente nessa “caça às bruxas” contra os suspeitos comunistas, criando uma atmosfera de grande medo dessa ideologia política – medo esse observável até os dias atuais. 

Portanto, os membros da chamada “beat Generation” (Geração Beat) foram jovens boêmios estadunidenses que, oriundos do contexto pós Segunda Guerra Mundial, emergiram nos anos 1950 com o intuito de proclamar uma vida antimaterialista, muitas vezes negando o sistema capitalista questionando e rompendo com os padrões conservadores e moralistas da sociedade em que estavam inseridos. Desobedientes e inconformistas, esses “marginais suburbanos” negavam o academicismo, pregando a liberdade da “verdadeira arte”, e desprezavam a ideia do “american way of life”, tão presente no imaginário social devido ao modelo cultural e desenvolvimento econômico gerado na década de 1920, que proporcionou o surgimento da “Geração Perdida” (Lost Generation). Assim, um dos objetivos dos beats era de mostrar, através dos seus feitos literários, as desigualdades vividas pela população em sua época. Estavam inseridos, portanto, em um meio em que muitos estudantes e as minorias lutavam pelo reconhecimento de seus direitos. 

Suas obras, algumas já mencionadas, foram responsáveis por criar heróis que propagaram esse sentimento de revolta, inspirando homens e mulheres a buscarem viver semelhantes experiências: a “rebeldia” tomou conta dos escritos, que continham relatos de experimentos com junk, drogas pesadas e psicodélicas, bebedeira, viagens em busca de autoconhecimento, religiosidade e interesse pelo misticismo oriental (principalmente o budismo), política, amizade e liberdade sexual. A homossexualidade, inclusive, era um tema presente e recorrente nos livros beats, uma vez que os relatos neles detalhados eram, muitas, vezes, autobiográficos, o que causava escândalo entre o público puritano. Como consequência, houve uma abertura para o que viria a ser a “revolução sexual” dos anos seguintes.

Ainda que não estivessem formalmente ligados a uma religião, eles buscavam, cada um da sua forma, uma ligação com o sagrado. Nesse sentido, o poeta William Blake influenciou muito os beats na questão espiritual, especialmente Ginsberg.

John Clellon Holmes, importante cronista da cena literária em questão, foi quem cunhou definitivamente o termo beat em 1948, através do The New York Times, quando proclamou num artigo: “Essa é a Geração Beat”. O sentido da palavra vem de várias vertentes: no universo das drogas, designa o ato de ser enganado – ou apenas de estar cansado. Representa, ainda, as batidas rítmicas do jazz. Para Jack Kerouac, significava ainda mais: algo que designa conflito, “batimento, epifania, choque, exaustão, andamento rítmico, pulsação, um estado de plenitude”. Muito especulou-se na época que seria uma referência a Ernest Hemingway e ao glamour de sua “geração perdida”, mas de forma mais positiva. “Beatnik”, por outro lado, teria sido considerado um termo pejorativo. 

Movimento literário

Enquanto movimento literário, Holmes foi o primeiro nome a publicar um livro que realmente abarca a atmosfera do que seria a escrita beat: em Go, seu primeiro romance, o autor retratou aspectos de sua vida compartilhada com os demais autores da geração. O considerado “beat quieto” era extremamente próximo de Kerouac, Ginsberg e Neal Cassady, outro grande nome dentro do movimento.

Kerouac, porém, conquistou a fama de fato, e foi considerado um dos mais inovadores em sua obra On The Road. Lançado apenas em 1957, retratava os marginalizados da sociedade, mostrando beleza no fracasso. Poucas editoras se interessaram na publicação do manuscrito, e muitos foram os anos até que as viagens do outsider Sal Paradise pelos diversos cantos dos Estados Unidos fossem devidamente publicadas. Neal Cassady foi também extremamente importante para a escrita da obra: o personagem Dean Moriarty foi baseado em sua pessoa, representando o herói do Oeste americano. Detalhe curioso do processo de escrita deste se dá ao fato de que Kerouac utilizou-se de um extenso rolo de telex para escrever, em um total de 3 semanas, sua obra. Desse modo, o livro obteve o caráter de fluxo narrativo contínuo, além de ser baseado na improvisação, tal qual a forma improvisada do jazz que os beats tanto admiravam. As palavras voam da mente do autor direto para o papel, causando uma impressão de submersão no surreal.

“Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas.”

(On the road)

Além de On The Road, Kerouac também publicou diversas outras obras de destaque, como Big Sur, Os Vagabundos Iluminados, Tristessa, Viajante Solitário, e várias outras.

Jack Kerouac

No entanto, foi William Burroughs quem publicou o segundo livro beat: lançado em 1953, Junky só ganhou vida após o acidente trágico envolvendo a história de Burroughs e sua esposa, Joan Vollmer, quando ele, acidentalmente, acertou um tiro na cabeça de sua mulher em ocasião na qual esta teria duvidado de sua mira e colocado um copo na cabeça para servir de alvo. Esse evento marcou decisivamente o ponto de virada na vida do autor, que abraçou de vez sua vida marginal e criminosa, e, por insistência anterior dos amigos para que Burroughs compartilhasse sua história e suas experiências, dedicou-se à escrita seriamente.

Na obra, William Lee, personagem principal e alterego do autor, narra como se tornou um viciado e como levou sua vida a partir de então, desenvolvendo tramas para conseguir heroína pelos Estados Unidos e também no México. Sempre fugindo de policiais, praticando pequenos furtos e até vendendo morfina durante certo período, Burroughs descreve, através da persona de Lee, a vida daqueles que foram postos à margem da vida social americana, além de fazer denúncias do sistema para com o tratamento com os demais viciados. 

Burroughs também escreveu Queer e Almoço Nu (Naked Lunch). Em Queer, o autor vai narrar seu remorso por ter matado a esposa, e explorar sua homossexualidade e obsessão de envolvimento com um garoto menor de idade. O livro traz um tom de infelicidade do autor com sua aceitação sexual, e uma dificuldade em desenvolver uma narrativa saudável. Em Almoço Nu, portanto, segue a linhagem apresentada nos dois livros posteriores e conclui a trilogia principal do autor.

Allen Ginsberg

Allen Ginsberg, também conhecido como o “Walt Whitman moderno”, foi considerado o maior poeta da Geração Beat. Em Howl, seu magnum opus, utilizou-se do modelo de escrita livre para proclamar uma vida livre. Através de uma linguagem crua e direta, Ginsberg entoa o poema com seu ritmo frenético, repleto de obscenidades. Howl garantiu ao autor uma passagem pela prisão, acusado pela polícia de imoralidade. De tom extremamente autobiográfico, retrata suas preocupações com o futuro e de seus amigos, como também expõe o episódio em que foi expulso da Universidade de Columbia ao escrever “absurdos” na parede de seu quarto.


Também no poema “Kaddish”, Ginsberg utiliza de sua própria experiência de vida com sua mãe para escrever sobre a doença mental que a acometia de maneira tocante e profunda. Assim, com sua poesia revolucionária, ajudou a destruir as fórmulas que estavam cercando e enrijecendo a poesia e a literatura dentro e fora do meio acadêmico. 

Foi Ginsberg, ainda, quem organizou o The Six Gallery Reading, recital que reuniu os beats e onde seu poema mais famoso foi lido pela primeira vez.

Além desses três grandes nomes, temos também vários outros artistas que não alcançaram a fama máxima dos colegas, mas que foram tão importantes quanto no que tange o movimento literário. Michael McClure, por exemplo, foi um poeta, dramaturgo e novelista. Escreveu importantes obras, tais como: Dark Brown, The Beard e Love Lion Book. O estilo de escrita de seus poemas ficou bastante marcado na época, por se tratar de escritos centralizados e em letras garrafais. McClure tornou-se amigo de Bob Dylan e de Jim Morisson nos anos 1960. O personagem Pat McLear do livro Big Sur, de Kerouac, foi feito em sua homenagem. 

Lawrence Ferlinghetti é mais conhecido por ter sido o principal nome a publicar as obras beat em sua livraria City Lights, mas poucos sabem que ele próprio, além de editor, este também foi um poeta. Fortemente influenciado pelo surrealismo, sua obra seguia um curso não-linear, porém ainda mantendo a tradição de ritmo e imagem. Seus poemas tinham forte cunho político, como “A Coney Island of the Mind”.

A literatura produzida, no entanto, não foi levada a sério prontamente pelos especialistas, e ficou conhecida como subliteratura, fazendo com que o caráter comportamental da geração fosse mais valorizado que sua literatura em si. A crítica caiu dura e fortemente em cima dos jovens aspirantes, o que, por um lado, serviu como modo de impulsionar seus trabalhos, fazendo com que cada vez mais jovens buscassem e se interessassem por aqueles materiais difamados. Por outro, no entanto, eram vistos como uma ameaça (e das grandes) pelos conservadores, justamente por baterem de frente com seus valores: em 1959, a ONU propôs o tratamento da “delinquência juvenil” em aspecto mundial. 

Todo o sentimento de revolta propagado nos escritos extrapolou a dimensão do papel para a sociedade de modo geral: os estudantes, que compuseram parte significativa da cena beat, se engajaram ainda mais com as causas políticas e sociais, aderindo à protestos não violentos por todo o país, palestras, distribuição de panfletos e criação de núcleos comunitários nas áreas mais precarizadas. Os beats, portanto, dão início à um movimento com extremo impacto político, que viria a ganhar muito mais força nos anos de 1970, com a maior expansão do movimento hippie. Era o nascimento de uma nova era.

É interessante levantar que os hippies, bastante odiados por Kerouac, sofreram muitas críticas posteriormente, acusados de não passaram de uma “ressaca” do que teria sido o movimento contracultural do final dos anos 1960, e que, no final das contas, estes acabaram voltando e abraçando aquilo que os mesmos criticavam: jovens oriundos dessa vertente crítica ao capitalismo e ao consumismo desenfreado, que se adaptaram ao sistema. Estudiosos pontuam, portanto, que a atmosfera política vivenciada pelos hippies já não era mais a mesma a qual os beats se encontravam. A Geração Beat e seus componentes teriam sido, portanto, os “últimos grandes rebeldes” de revolta interna.

Influências dos Beats 

Exercendo influência às mais diversas camadas socioculturais, podemos tratar alguns exemplos dos jovens marginais na cena de produção musical dos anos seguintes: alguns creem que o nome da maior banda de todos os tempos, The Beatles, foi proveniente da geração beat. John Lennon teria contatado Kerouac para contar a origem da nomeação do grupo. 

Também o próprio Paul McCartney trabalhou em uma gravação com Allen Ginsberg em 1995, onde o músico dedilhava acordes em sua guitarra e o poeta recitava “A Ballad of American Skeletons”.

Ginsberg, no entanto, não foi o único a ter sua imagem relacionada com um beatle. Em 1967, o álbum que mudaria o rumo do rock estava sendo lançado: Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. E se analisarmos cada uma das personalidades presentes naquela capa icônica, encontraremos ninguém mais ninguém menos que o próprio William Burroughs – bem ao lado da igualmente icônica Marilyn Monroe.

Burroughs também teve um encontro com um dos maiores vocais do grunge: Kurt Cobain. Em 1992, semelhante ao feat Ginsberg-McCartney, o autor gravou a leitura de “The ‘Priest’ They Called Him”, e Cobain introduziu sua guitarra na gravação. Após a parceria, Kurt o convidou para participar do clipe de “Heart-Shaped Box”, do álbum In Utero, o último disco lançado pelo Nirvana. Burroughs, porém, recusou. Seis meses antes de cometer suicídio, Kurt realizou o sonho de conhecer seu ídolo na casa do próprio beat

Além dos Beatles e de Kurt Cobain, muitos outros artistas se mostraram altamente hipnotizados e com suas carreiras diretamente influenciadas pela literatura produzida por Burroughs: Lou Reed, que ficou completamente fascinado pela história contada em Junky, fazendo ele próprio de suas experimentações com junk relatos em forma de música, principalmente na banda The Velvet Underground, como vemos na canção "Heroin"; Patti Smith, que via em Burroughs um excelente mentor – “eu aprendi com ele como cuidar de mim mesma, como levar a vida, sobre literatura, viagens, e também como construir seu personagem”; Bob Dylan, que implorou a Allen Ginsberg para que o apresentasse ao artista, e David Bowie, que utilizou do “cut-up method” (ou “técnica de recorte”), disseminado pelo escritor, para compor suas músicas. O método consiste em recortar fragmentos de textos e misturá-los para criar um novo, sendo bastante influente até hoje e também bastante utilizado por Thom Yorke, vocalista da banda Radiohead.  

Patti Smith com William Burroughs

Ainda se tratando das influências que os beats tiveram em artistas posteriores, não podemos deixar de fora o quão importante foi o movimento para que The Doors surgisse. 

“Se Jack Kerouac não tivesse escrito On The Road, The Doors nunca teria existido.”

(Ray Manzarek)

Quando o livro foi lançado, Jim Morrison tinha 14 anos. Apesar de muito jovem, o artista já tinha percebido o impacto da obra na sua vida, e mais tarde muitas das referências apresentadas e as características dos personagens, especialmente Dean Moriarty, seriam incorporados na sua persona de rockstar. Também para Morrison, que além de grande cantor e compositor também era um grande poeta, o significado da poesia enquanto arte era o mesmo disseminado pelos beats: “a poesia não diz nada, apenas levanta possibilidades”

Assim, notamos que os beats, para além de um movimento literário, se firmaram como um movimento (contra)cultural que propunha questionamentos pertinentes ao cotidiano de sua época, dando origem a um novo estilo de vida e à cultura underground e marginal, responsável por mudanças radicais na postura da vida daqueles que se propuseram a mudar seu modo de se relacionar com o mundo, que se mantém impactantes, influentes e necessários até os dias de hoje. 

Referências

Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

Comentários

  1. Texto incrível, eu não sabia de tamanha influência exercida pela geração beat.

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  2. Que incrível! Estou começando a explorar agora esse mundo literário e me vejo fascinado ao descobrir a proporção que o movimento tomou, assim como sua enorme influência no campo artístico até os dias de hoje. Parabéns, um trabalho primoroso!

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