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Uma breve história da polêmica bossa nova


De tão marcante para a música brasileira, a bossa nova ainda habita o imaginário de muitos estrangeiros seduzidos pelas imagens contidas em suas canções: a garota de Ipanema, o barquinho a deslizar, uma tarde em Itapuã. Não é de surpreender que a própria história do Brasil tenha entre seus personagens um “presidente bossa nova”, responsável pela onda desenvolvimentista da década de 1950 e os anos dourados de toda uma geração. 

No entanto, ao mesmo tempo em que o ritmo é conhecido por sua sofisticação, também é criticado por seu suposto elitismo. Alguns diriam que a boemia do samba carioca apenas foi transportada para apartamentos de Copacabana e depois exportada, até chegar na mais tradicional sala de concertos estadunidense, o Carnegie Hall. 

No livro Pequena história da música popular, José Ramos Tinhorão expõe uma visão bastante crítica da bossa nova: ela marcaria o afastamento do samba das suas origens populares e não constituiria um gênero, e sim uma forma de tocar da elite carioca que rejeitava o ritmo tradicional estabelecido pela percussão negra. O seu posicionamento é embasado historicamente, pois na década de 1950 se acentuava o abismo entre as classes sociais que, ainda hoje, é tão evidente no Rio de Janeiro

Quando os mais pobres se estabeleceram nos morros e na Zona Norte e os ricos, na Zona Sul, tal fator teria colaborado para que não houvesse maior contato da classe média com os ritmos populares. Tinhorão aponta o início desse afastamento na década de 1940, na fase do samba bebop, e o seu auge em 1958, como um reflexo da “alienação das elites brasileiras, sujeitas às ilusões do rápido processo de desenvolvimento com base no pagamento de royalties à tecnologia estrangeira”.

Uma análise tão ferrenha, escrita pelo autor que é considerado um conservador musical, pode nos levar a buscar outras opiniões. Por exemplo, dizem que a palavra "bossa" significava “jeito”, e que a proposta de João Gilberto era inventar uma nova forma de tocar o samba. Esta forma ainda estaria dentro da tradição porque manteve a mesma base ritmica através do violão, que imitava o tamborim das escolas de samba, apesar de ter sido fortemente influenciada pelo cool jazz do Chet Baker, com seu caráter intimista e contido. Desse modo, o que a elite brasileira estava fazendo era ligar o violão à malandragem da Lapa, e, na perspectiva de Monnik Lodi Poubel no artigo “Só danço samba”, o novo uso do instrumento acabou servindo para desconstruir preconceitos.

É curioso notar que a “americanização” já era uma tendência antes mesmo da bossa nova, uma vez que o período pós-guerra disseminava o american way of life em todo o mundo e o Brasil não constituía exceção. Cantores com nomes em inglês, como Dick Farney, eram os preferidos de uma juventude que não se identificava com a típica “música de fossa”, sucesso nas rádios por meio do gênero samba-canção e outros ritmos abolerados, a lamentar toda sorte de sofrimentos amorosos.

Enquanto isso, em Copacabana, proliferavam-se boates que tocavam música para os estrangeiros e para a café society. As bandas, compostas por piano, violão elétrico, contrabaixo, saxofone e bateria, se especializavam em um misto de jazz e samba e, nos intervalos, imitavam as pioneiras jazz-bands com solos de improviso. Era tão harmoniosa a relação entre voz do cantor e orquestra que o musicólogo Brasil Rocha Brito assim a descreve: “ambas se integram e se conciliam, sem apresentar elementos de contraste”

Em 1956, alguns rapazes da classe média alta do Rio de Janeiro, dentre eles Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e Luís Carlos Vinhas, passaram a se encontrar no apartamento de Nara Leão para realizar samba sessions; basicamente, o mesmo improviso de samba com jazz das boates de Copacabana. Eles queriam se reconhecer em uma música mais introvertida e que não fosse puramente estadunidense, mas carregasse elementos que os representassem. Esse desejo enfim se realizaria quando conheceram João Gilberto e tiveram contato com aquela “bossa nova” de tocar violão com ritmo de samba, usando os três dedos mais agudos para imitar o tamborim. Para Tinhorão, o baiano João Gilberto foi, dentre todos esses jovens, “o único instrumentista, compositor e cantor realmente original”.

O autor destaca também, no capítulo sobre samba-canção do livro Pequena história da música popular, como a nova geração de músicos estava em uma posição de vantagem em relação aos compositores do morro:

“Os compositores das camadas mais baixas do Rio de Janeiro, é claro, continuavam a produzir belos sambas-canções (Cartola e Nelson Cavaquinho, por exemplo jamais deixaram de compor durante aquele período), mas como as suas músicas não chegavam a ser gravadas, a nova geração de jovens de nível universitário da década de 50 acreditou que a canção tradicional tinha esgotado as suas possibilidades, e partiu para a reformulação de inspiração jazzística do samba, que se chamaria bossa nova.”

Quando João Gilberto lançou Chega de Saudade (1959), disco que é considerado marco inaugural da bossa nova, causou estranheza em quem o ouviu. A música homônima, com poesia de Vinícius de Moraes, já havia sido gravada por Elizeth Cardoso, mas a sua versão bossa nova soava engraçada para os acostumados com o samba-canção. Era um ritmo muito diferente de outros estilos, e devido à música “Desafinado”, que apresentava uma harmonia dissonante com modulações inesperadas na batida de violão, muitos diziam que o cantor desafinava mesmo, literalmente. 

O que se pode observar nela, assim como no “Samba de uma nota só”, de 1960, é que a letra e a música dialogam entre si, complementando-se, à semelhança do que acontecia na inovadora poesia concreta e seus jogos de forma e conteúdo. De acordo com Santuza Cambraia Naves no artigo “Da bossa nova à Tropicália”, João Gilberto era o músico mais empenhado em provocar uma ruptura com o passado da música popular, aderindo a uma maneira de cantar à meia-voz e sem ênfase emotiva. Na contracapa do disco que fez história, Tom Jobim não só reconhece a imensa influência do músico – “simples, sincero e extraordinariamente musical” –  sobre aquela geração, como afirma que Dorival Caymmi concordava com ele. 

João Gilberto e Tom Jobim em "Copacabana Palace" (1962)

Vale destacar outra observação de Santuza Cambraia, que se baseia em José Miguel Wisnik para comentar sobre dois procedimentos modernistas fundamentais: um deles relativo ao mito do engenheiro, e o outro, comparável a uma bricolagem. Explica-se que, no Brasil, o modernismo se caracterizou fortemente pela segunda tendência, pois partiu do reconhecimento da diversidade e da riqueza de suas manifestações culturais e da influência que elas exercem entre si. O Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, por exemplo, simboliza o intuito de criar algo novo a partir de outras tradições, o que se repete em quase todos os momentos do modernismo, exceto talvez pela bossa nova de João Gilberto. Este teria assumido uma postura de ruptura característica da primeira tendência, o que o consagrou como o autor de um estilo completamente novo.

O sucesso da bossa nova também deve muito ao contexto otimista em que surgiu, como o governo do presidente Juscelino Kubitschek – que, por seu carisma, foi apelidado de “presidente bossa nova” –, e  por ir ao encontro das tendências estéticas modernas, tanto dos concretistas quanto da arquitetura de Oscar Niemeyer. Tais acontecimentos compuseram uma vitrine que projetava o Brasil para o exterior, passando pela construção da nova capital, Brasília, até o bem-sucedido Bossa Nova at Carnegie Hall, em 1962. Mas como diz a canção, “o amor, o sorriso e a flor se transformam depressa demais”, e a tranquilidade otimista dos bossa-novistas foi se esvaindo, o que exigia uma atitude mais politizada da parte dos universitários cariocas.

O movimento sofria críticas dos próprios participantes pelo excesso de estrangeirismos, como Carlos Lyra já expressava na canção “Influência do jazz”, em 1961:

“Pobre samba meu / Foi se misturando / Se modernizando se perdeu / E o rebolado, cadê não tem mais / Cadê o tal gingado / Que mexe com a gente / Coitado do meu samba / Mudou de repente / Influência do Jazz

Cada vez mais se tornava evidente o problema do intercâmbio excessivo com a cultura estadunidense, vista como colonizadora e de supremacia econômica, o que levantava a necessidade de uma reaproximação com os ritmos populares. Nara Leão foi uma das artistas que se distanciou da bossa nova das elites e, em 1964, reuniu-se com João do Vale e Zé Kéti – o primeiro de origem maranhense, e o segundo, do morro carioca – para estrear o espetáculo “Opinião”, dirigido por Augusto Boal. A ditadura militar já havia se estabelecido, e essa mudança no contexto político justificava ainda mais a busca por outras formas de cantar a realidade brasileira, deixando de lado as sessions que haviam dado ao ritmo projeção internacional. 

Por mais que Carlos Lyra e Nelson Lins de Barros estivessem se aproximando de Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho desde 1962, a divisão entre os bossa-novistas só ficou mais evidente após o show “Opinião”. De um lado, Ronaldo Bôscoli, Sylvinha Telles, Roberto Menescal e Aloysio de Oliveira negavam o elitismo da bossa nova, defendendo que não havia distinção entre ela e a “música do povo”, e que expressar através de seu estilo uma rebeldia política seria torná-la algo que não era. Enquanto isso, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Ruy Guerra e Geraldo Vandré se juntavam à ala mais contestadora, defendendo a importância da música para alertar o país sobre a situação que estava passando – mesmo que esses alertas chegassem apenas à classe média.

João do Vale, Zé Keti e Maria Bethânia no musical "Opinião" (1965)

Alguns críticos à tentativa de aproximação com as camadas populares julgavam a atitude paternalista, como se houvesse um certo autoritarismo na adaptação do samba a bossa nova, o que estabelecia uma barreira entre as classes e impedia a sua “comunhão”. Da mesma forma que, anos mais tarde, apareceriam críticos ao surgimento da canção de protesto, como demonstra o comentário de Walnice Nogueira Galvão feito em 1968, reduzindo-a à mera “evasão e consolação para pessoas altamente sofisticadas”.

Ao abordar qualquer forma artística, é importante abordar também o contexto e os valores atrelados a ela. Por isso é relevante levantar as contradições da bossa nova, como o fato de ela nascer em apartamentos de Copacabana e se esforçar, num período de maturidade, para tratar de problemas sociais que seus compositores nunca viveram. E se essa história reflete a desigualdade social que ainda hoje caracteriza o Brasil, desmerecê-la como manifestação legítima pode ser até contraditório.

Afinal, a intenção assumida pelos que se desvincularam da bossa nova tradicional foi a de valorizar manifestações culturais que ainda eram marginalizadas, e nesse sentido obtiveram relativo sucesso: o samba passou a ser reconhecido internacionalmente como o maior ritmo nacional. O que levanta mais uma questão, bastante atual, sobre os inúmeros artistas de origem popular que, por estarem espalhados pelo país, são agrupados sob o rótulo “regional” e acabam não obtendo o devido reconhecimento. 

A bossa nova foi um marco para a música popular brasileira, mesmo sem ser considerada um gênero propriamente dito, restringida a uma nova batida para tocar o samba. Movimentos posteriores, como a Tropicália, devem a ela o impulso necessário para enxergar o Brasil através de outros ângulos, o que permitiu o desenvolvimento de uma música cada vez mais complexa, incluindo a questão urbana e a influência antropofágica, a partir de uma variedade ainda maior de manifestações culturais. 

Mesmo que os efeitos da bossa nova sejam limitados ao campo de inovações artísticas, ela foi uma forma de se rebelar contra uma visão de Brasil subdesenvolvido, rural, colonizado. Não foi uma revolta popular, pois partiu da alta classe média carioca – disto sabemos. Mas no país em que, como tantos intérpretes já cantaram, “o morro não tem vez”, o que essa história diz sobre o que somos? Diante dos abismos sociais, a voz que se dedica a dar vez ao morro ainda caracteriza uma forma de protesto?

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