Crepúsculo dos Deuses, lançado 1950 nos Estados Unidos, sob o título original de Sunset Boulevard, foi dirigido por Billy Wilder e é um filme noir essencial para conhecer a história do cinema. A trama se desenvolve em torno de Norma Desmond (Gloria Swanson), uma geniosa e caprichosa atriz do cinema mudo que foi esquecida pelos grandes estúdios e vive em sua extravagante mansão na Sunset Boulevard, na companhia de seu mordomo Max (Erich von Stroheim). Como obra do acaso, Norma conhece o roteirista endividado e desempregado Joe Gillis (William Holden) e propõe que ele more em sua mansão para que juntos trabalhem no roteiro de Salomé, filme que pretende coroar seu retorno às telas. Joe, embora não acredite verdadeiramente na empreitada de Norma, tira proveito de um momento de insanidade e vulnerabilidade da personagem para suprir uma necessidade que também é genuína: ter um emprego e prover o próprio sustento.
Norma, por sua vez, é duplamente o retrato de uma geração de atores esquecidos pelos estúdios: os intérpretes do cinema mudo e as mulheres acima dos 40 anos. A chegada do cinema falado não agradou a diversos setores da indústria cinematográfica, visto que toda estrutura dos filmes era elaborada para filmar sem som e, inclusive, o público não era habituado a essa novidade. Em uma cena emocionante, Norma diz a Joe que “Havia um tempo nesse negócio, em que eles tinham os olhos do mundo todo, mas isso não foi o suficiente. Então eles abriram suas grandes bocas e começaram a falar. Eles tinham que ter os ouvidos do mundo também”. No cinema mudo, os atores têm trejeitos e formas de interpretar mais exageradas e expressivas a fim de suprir a falta dos diálogos, característica que integra a personagem de Norma, ressaltando tanto a sua especialidade profissional como a sua insanidade. No cinema falado, por sua vez, os atores precisam decorar o texto, saber controlar a entonação da voz e ter uma boa dicção, fatores aos quais os intérpretes da época não estavam habituados. Todo um modo de produção é alterado por essa virada tecnológica. A própria Gloria Swanson, intérprete de Norma Desmond, foi uma importante atriz de filmes mudos que sofreu um grande golpe com a chegada do som a uma indústria dominada pelos filmes não falados. Além disso, não é novidade que Hollywood sempre foi etarista, outro fator que impactou a vida de Norma: uma grande atriz condenada ao ostracismo e ao esquecimento por não se enquadrar nos padrões estéticos da juventude da época. Outras atrizes importantes como Joan Crawford e Bette Davis enfrentaram o mesmo processo, embarcando em uma história que originou novos gêneros cinematográficos e filmes clássicos como O que terá acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?), de 1962.
Quando Norma e Joe concluem seu roteiro, Max leva as páginas e páginas de Salomé até a Paramount e garante que DeMille o leia. DeMille, junto de Erich von Stroheim (sim, ele mesmo, o ator que interpreta Max), foi um dos direitos mais influentes do cinema mudo e, em Crepúsculo dos Deuses, interpretou a ele mesmo como alguém que havia dirigido diversos filmes estrelados por Norma. Essa visita, feita com o carro de Norma, um Isotta Fraschini, motiva o produtor de um dos filmes de DeMille a ligar para a mansão Desmond na esperança de conseguir alugar o carro. Norma, ao saber das ligações do estúdio, acredita que o motivo é outro: DeMille quer filmar seu roteiro. Convencida da versão que ela mesma fantasiou, se dirige até a Paramount. Dentro de um estúdio de filmagem, senta-se na cadeira de DeMille enquanto um boom-pole (microfone com uma haste, largamente usado no cinema para captar as falas dos atores, especialmente em cenas de movimento) transita em cima dela e esbarra na sua cabeça. Os atores figurantes, assim como um técnico de luz, reconhecem Norma porque, assim como ela, são pessoas mais velhas e viveram outrora momentos de glória nos estúdios. Esse é, com certeza, um dos momentos mais emocionantes e tristes do filme já que o reconhecimento de Norma pelos demais causa comoção, assim como o microfone batendo em sua cabeça é uma afronta ao seu título de estrela.
Dois triângulos amorosos são formados no decorrer do filme: um entre Norma, Joe e Max, e outro entre Joe, Betty e Artie (amigo de Joe e noivo de Betty). A paixão aqui é complexa e representa não apenas um desejo filosófico romântico, mas também os anseios dos personagens em encontrar seu espaço profissional e o sentido de suas existências. Joe é, para Norma, a oportunidade de se tornar relevante novamente, enquanto Norma é para Joe o ensejo para se tornar o que ela foi um dia. Próximo ao final do filme, Max revela que outrora dirigiu alguns filmes de Norma, além dos dirigidos por seu primeiro marido. Mesmo humilhado e abatido, Max alimenta os delírios de Norma lhe escrevendo e enviando cartas todos os dias como se fossem de fãs, entre outros arranjos, de maneira que continua a exercer seu papel de diretor coordenando a vida de Norma que, assim como nos filmes que atuou, não deixa de ser uma obra de ficção. Max, da mesma maneira que Norma, acredita na própria grandeza, na decadência dos tempos modernos, na nostalgia e no conforto da mansão, onde é possível simular a vida que um dia tiveram, ainda que em escala reduzida.
Já Betty é uma jovem roteirista, sonhadora e criativa filha de pais que também trabalharam nos bastidores de Hollywood. Por ser uma escritora engajada, Betty enxerga um lado do cinema que Norma, no alto do seu castelo, não consegue admirar: todos os trabalhadores que movimentam a indústria cinematográfica, e ao contrário das grandes estrelas, não ganham altos salários, close-up ou qualquer tipo de reconhecimento. Para Joe, ela representa os ideais e a oportunidade de escrever um roteiro substancial e importante. “Eu apenas acho que os filmes devem dizer alguma coisa”, diz Betty logo no início do filme, demonstrando preocupar-se mais com o conteúdo imaterial de um roteiro do que com o glamour e a pompa. Betty e Joe pertencem à porcentagem de pessoas praticamente invisíveis sem as quais nenhum filme jamais seria realizado.
Joe é o protagonista-narrador que se vê preso no meio de personalidades equivalentes, mas opostas. Betty e Norma estão ambas escrevendo um roteiro com Joe, paralelo que as coloca como representantes diretas do futuro e da nostalgia, da aparência e do conteúdo, do frescor e da amargura, do anonimato e do esquecimento. Embora Artie apareça pouco no filme, ele pode ser considerado a equivalência de Max, e talvez o próprio mordomo na juventude e nos primeiros anos de carreira.
Joe se cansa dos caprichos e infantilidades de Norma, decide mudar de sua mansão e a abandonar, mas não consegue pois ela o acerta com três tiros. O impacto dos projéteis faz o corpo do protagonista cambalear e cair na piscina. Ao assassinar Joe, Norma está matando não apenas seu corpo físico, mas também os símbolos que ele carrega: a juventude, o futuro, o cinema da technicolor e do som. Na icônica e delirante cena final, Norma desfila nas escadas de sua mansão imaginando os frenéticos flashes dos paparazzis, e diz: “Certo, estou pronta para o meu close-up, senhor DeMille”. Max toma seu espaço de diretor enquanto Norma desfila escada abaixo conduzindo uma última cena em close-up.
A metalinguagem da obra é evidente e refinada. Gloria Swanson em grande medida interpreta a própria história, assim como DeMillle e Stroheim; Betty e Joe representam as dezenas de pessoas invisíveis envolvidas no processo de produção hollywoodiano sem as quais nada aconteceria. Estas, ao contrário de estrelas como Norma, não foram sequer esquecidas porque nunca foram lembradas. Os passeios das personagens pelos estúdios de gravação em internas e externas, as câmeras e os microfones dão um tom especial à narrativa.
Os clássicos são clássicos porque as décadas que separam o seu nascimento dos dias atuais não foram suficientes para esgotar tudo o que eles tinham para dizer. Assim como o cinema falado substitui o mudo, a technicolor substitui as filmagens em preto e branco, o e-mail substituiu a carta que, por sua vez, perdeu espaço para o Whatsapp e para o Instagram; diversos aspectos da vida continuaram perdendo e ganhando espaço até o fim dos tempos. Esse ciclo é constante, infindável, belo e desolador. Por fim, é preciso dizer que o título em português dado ao filme é genial, até melhor que o original, muito embora no contexto estadunidense a Sunset Boulevard seja um endereço icónico em Los Angeles. Sem dúvida, Crepúsculo dos Deuses é o declínio de um império radiante e o nascimento de uma nova maneira de contar histórias.
Referências
- Territórios de Ficcionalidade no Cinema Hollywoodiano de Billy Wilder (Marcelo Flório)
- Crepúsculo dos Deuses, Narrativa Noir E Possibilidades Históricas de um Escritor em Hollywood (Sheila Maria Ribeiro Saad)
Ótimo texto! Preciso rever esse filme
ResponderExcluirObrigada!!!
ExcluirEsse filme é incrível, sempre merece ser revisitado!
O texto está perfeito! Parabéns, Victória Haydée.
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