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Agnes Grey: a história do amor perdido de Anne Brontë


Charlotte e Anne Brontë certamente se amavam, mas não eram próximas. As dificuldades de relacionamento entre elas começaram cedo: a mãe das Brontë faleceu quando Anne tinha apenas um ano, e Charlotte, cinco. Até então a irmã do meio (já que Maria e Elizabeth, as Brontës mais velhas, morreram ainda na infância), Charlotte tomou para si o fardo de cuidar das irmãs. Emily e Anne eram menores, e Charlotte se responsabilizou internamente em fazer com que elas não sentissem tanto a falta de uma figura materna. Charlotte, sendo mais velha, colocava Anne em seu colo e lia para a irmã. Inclusive, o primeiro livro que Charlotte escreveu foi um cuja história ela criou e ilustrou para Anne. Seu início inclui a menina na trama: "Era uma vez uma menina pequena chamada Ane. A mamãe de Ane estava muito doente e Ane cuidou dela com muito carinho. Ela lhe deu seu remédio". Mas todo esse peso desde criança tornou Charlotte uma pessoa mais rígida, mais prática - e um pouco amarga às vezes. Ela conhecia de perto a dor da perda e as dificuldades de tomar conta de tudo e todos, mais do que suas irmãs menores. 

Passados alguns anos, Anne foi estudar na Roe Head School, em Mirfield. Na época, Charlotte era professora lá. Era 1835 e Charlotte estava em um de seus episódios depressivos. Ela odiava seu trabalho, não suportava as crianças, e tentava se manter o mais afastada possível das irmãs que lá estudavam, para que não houvesse favoritismo. Todavia enquanto Charlotte estava depressiva, Anne se isolou em sua religiosidade e melancolia, convencendo-se de que era uma pecadora e que seria condenada ao tormento eterno por ser má. Não tardou para que ela adoecesse, provavelmente de febre tifoide, e apenas naquele momento, com a irmã quase morrendo, Charlotte percebeu que a havia negligenciado e passou a cuidar dela. Anne se recuperou e voltou para casa, entretanto o episódio depressivo de Charlotte se agravou, e ela começou a criar doenças psicossomáticas por causa disso. A ordem médica para ela, após averiguado o caso, era que ela voltasse para casa ou acabaria morrendo - se de tristeza ou outra coisa, tanto fazia. 

As irmãs Brontë

Os conflitos entre Charlotte e Anne continuaram. Não há registros de revide por parte de Anne, mas Charlotte aproveitava as oportunidades que tinha para cutucar a irmã mais nova. Embora se sentisse culpada sempre que algo ruim acontecia com Anne, a mais velha das Brontë se ressentia por sua irmã não carregar o peso da responsabilidade que ela havia tomado para si durante seus anos de infância. Além disso, Anne Brontë era querida por todos, considerada lindíssima e, ainda que tímida, possuía desenvoltura para conversar com as pessoas caso preciso fosse. Um dos conflitos que mais causaram dano à relação das duas foi a história do amor perdido de Anne. 

O amor trágico de Anne Brontë 

William Weightman era o cura, assistente do clérigo Patrick Brontë, pai das escritoras, na paróquia. Conhecido por ser um homem muito bonito e querido com as pessoas, não foi difícil conquistar a afeição de todos ao seu redor - incluindo a de Charlotte Brontë. A paixão de Charlotte por Weightman começou em 1840, quando ele enviou para as irmãs o primeiro cartão de Dia dos Namorados que elas haviam recebido. No intuito de que elas não soubessem que havia sido ele o remetente, William caminhou de Haworth até Bradford para postá-los, uma distância considerável, enviando um cartão para cada irmã com um verso personalizado dentro. Charlotte, Emily e Anne ganharam seus cartões, assim como Ellen Nussey, que estava visitando a casa delas, a Parsonage, na época. 

Weightman era um homem gentil e quis fazer uma delicadeza para as irmãs, filhas do pároco local e seu superior. Como elas nunca recebiam tais delicadezas, ele achou que isso poderia alegrá-las. Se tinha alguma intenção romântica com elas, não podemos saber. Mas o fato é que ele realmente era conhecido por ser gentil e atencioso com todos que cruzavam seu caminho. Não demorou muito para que as Brontë descobrissem a identidade do homem que lhes mandara os cartões. E embora todas tenham ficado felizes com o ato de carinho dele, Charlotte levou aquilo a sério. A afeição pelo jovem cura crescia em seu coração, tanto que a partir dali ela passou semanas desenhando o retrato do rapaz e escrevendo sobre ele em suas cartas. 

William Weightman

Um ano depois, em fevereiro de 1841, Weightman novamente enviou às irmãs um cartão de Dia dos Namorados para cada. Mas dessa vez, Charlotte mostrou-se fria, distante e desconfiada. Em carta a Ellen Nusey, ela disse: 

"Eu soube lidar melhor com isso do que lidei quando os recebemos há um ano. Estou à altura das artimanhas e artifícios do caráter de Sua Senhoria, ele sabe que o conheço... Apesar de todos os truques, ardis e insinceridades do amor... [...]"

A mudança brusca em relação ao cura nos faz pensar no que poderia ter acontecido. Mas um olhar atento do leitor para as cartas de Charlotte Brontë pode revelar pistas do que se passava na paróquia de Haworth. 

Em outra carta da mesma época, Charlotte escreve que Weightman sentou-se ao lado oposto de Anne Brontë, sua irmã, na igreja, suspirando suavemente para chamar a atenção da jovem. "E Anne é tão quieta, seu olhar tão abatido - eles são uma pintura", escreveu Charlotte. 

Quando os sentimentos entre Anne e Weightman ficaram claros, Charlotte sentiu-se traída. De acordo com relatos da época, ela era muito consciente de sua aparência: sua baixa estatura, problemas de pele e dentes faltando lhe faziam sentir-se mal. O editor dela, George Smith, chegou a afirmar que ela "teria dado todo o seu gênio e gama para ser bonita". Já Anne foi descrita por Elle Nussey como: "A querida, gentil Anne, tinha a aparência bem diferente das outras. Seu cabelo era um bonito castanho claro caído em cachos. Ela tinha adoráveis olhos azul-turquesa, e sobrancelhas arqueadas, e uma tez clara, quase transparente"

Anne Brontë

Aparentemente, o ressentimento de Charlotte por Weightman derivava das atenções que o rapaz dava a sua irmã Anne. Além de rejeitada em seus afetos, Charlotte sentiu-se traída por perdê-lo para a irmã. E não se pode dizer que Anne não tivesse nenhum sentimento pelo jovem: Agnes Grey, seu romance, é quase uma fanfic de um amor que nunca aconteceu, mas que existiu em seu interior. 

Weigthman era tão querido pela comunidade que após sua morte precoce aos 28 anos, em 1842, depois de ter contraído cólera de um membro da paróquia que havia visitado, todos os membros se uniram e contribuíram financeiramente para erigir um grande tributo a ele na igreja. Não se sabe se Weightman e Anne Brontë tinham um compromisso - de um noivado oficial não se tem evidências, mas não seria inédito um jovem rapaz propôr casamento a uma moça e esperar para oficializar o noivado até que ele tivesse rendimentos suficientes para tal, pois noivados longos não eram bem vistos na época. O certo é que, tivessem esse compromisso ou não, Anne passou o resto da vida lamentando a morte de Weightman. 

O relatório sanitário de Haworth, feito em 1850 por Benjamin Herschel Babbage, um inspetor do governo, revela que as condições do local onde as Brontë nasceram e viveram eram as piores possíveis. A expecativa de vida em Haworth em 1838 era de 19 anos. 42% das crianças nascidas no local morriam antes dos seis anos. A água potável da população era poluída pelos dejetos do cemitério superlotado do vilarejo. Existiam apenas 69 banheiros para 2.500 pessoas. Patrick Brontë, o pai das irmãs Brontë, passou boa parte da vida pedindo que o governo tomasse providências a respeito disso. Sua esposa, filhas e filho haviam morrido, e muitos de seus paroquianos também - incluindo o cura de sua paróquia, William Weightman - devido às más condições sanitárias e de higiene do local, que eram propícias a disseminação de doenças. 

Após a morte de Weightman, Anne escreveu diversos poemas lamentando a morte de alguém que amava. Um dos poemas diz: 

"I will not mourn thee lovely one, thou art torn away
[...]
Severed and gone so many years!
And art thou still so dear to me."

Em tradução livre: 

"Não vou prantear por ti, querido, tu foste arrancado
[...]
Cortado e foi-se há tantos anos!
E tu ainda és tão querido para mim."

E é bem claro para qualquer leitor de Anne Brontë e conhecedor da vida das irmãs Brontë que o Reverendo Weston, personagem de Agnes Grey, é o próprio William Weightman imortalizado na literatura. No livro, Weston é extremamente querido, caridoso e carinhoso com os membros da paróquia e pessoas com quem interage. Ele passa seus dias visitando e auxiliando os doentes, levando comida para a comunidade local, resgatando seus animais de estimação... Ao olharmos para a história das Brontë e para Haworth em 1840, não tardamos a encontrar registros que apontam todas essas tarefas e características de uma personalidade bondosa em Weightman. A diferença é que Weston não morre no livro. O jovem reverendo cultiva um amor tranquilo e paciencioso com a heroína, Agnes Grey, que de muitas maneiras é a própria Anne. Ao final, há uma declaração de amor e um casamento, seguido de uma vida confortável e tranquila de duas pessoas que se amam - tanto na ficção quanto na vida real. 

Em seu livro, Anne Brontë se concedeu o final feliz que não pôde ter na vida real. 

Referências 


Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Perfeito o texto, conhecer a história das irmãs e as condições em que viveram aprofunda o olhar sobre as obras.

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